Lado Obscuro

Capítulo 3 - Diante do perigo (Parte I)


Segunda-feira, 31 de Janeiro

Depois de um café da manhã improvisado – tirado da sacola de comidas da dona Clarisse do dia anterior, ou seja, um pacote de torradas e o pote de Nutella – e uma última arrumada na cozinha que Kentin bagunçou no dia anterior fazendo a janta, eles resolveram passar o penúltimo dia antes do início das aulas conhecendo as redondezas do bairro nessa nova cidade.

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Alexia usava um vestido amarelo florido de alça fina e uma sapatinha branca simples, levando no ombro direito uma bolsinha pequena com o celular, a carteira e um pacote de chiclete de menta. Sua corrente de ouro e o pingente em formato de coração vazado – presente de sua melhor amiga, Samara, da cidade de onde viera – cintilava delicadamente no pescoço sob a luz do sol. Os cabelos balançavam livres ao vento enquanto saltitava pela calçada.

Kentin, andando alguns passos atrás de Alexia, a admirava em silêncio. Ele vestia um moletom leve verde-musgo e uma calça preta de lona, carregando nas costas uma mochila marrom lisa cheia de comida, andando sobre seus tênis pretos básicos de todo santo dia e com as mãos no bolso do moletom.

A discrição era a melhor forma de passar despercebido, e ele precisava disso. Ele só não imaginava que nessa confusão de uma vida dupla – que ele se esforçava para fingir ser apenas uma, até para si mesmo – iria se apaixonar perdidamente por sua vizinha. E com certeza não é fácil sustentar essa aparência de nerd e esse cabelo tigelinha ridículo na frente dela. Já havia perdido as contas de quantas vezes quase desistiu de fingir ser um garotinho fraco e feio e ser aquilo que realmente é simplesmente para tê-la nos braços. Mas ele sabia que esse segredo não deve ser revelado diante dos outros pelo bem de todos, então sempre engolia esse impulso e ficava ainda mais recluso.

Andaram a esmo pelas ruas, viram aleatoriamente nas esquinas, até que deram de cara com o portão do grande – e único – parque da cidade. Alexia abriu um sorriso radiante, ciente de que atrás desses arbustos e grades veria muitas e muitas flores, seus grandes amores. Sem avisar Kentin, saiu correndo parque adentro alegremente.

Kentin demorou alguns instantes para perceber que os cabelos azuis haviam se distanciado e, quando finalmente percebeu, acelerou o passo em direção ao pontinho azul e amarelo que já quase sumia de vista entre as árvores. A mochila chacoalhava pesadamente em suas costas, mas Kentin nem parecia sentia seu peso. Aliás, ele não sentia mesmo o peso, literalmente.

Não precisou de muito esforço para alcança-la, já que Alexia havia parado logo depois das árvores densas. Kentin entrou na clareira onde ela estava e se encantou com a cena.

Raios de luz entravam pelas brechas que as folhas deixaram no alto daquela clareira, iluminando flores de todas as cores e tipos que rodeavam a garota de cabelos azuis ajoelhada entre elas, sorrindo de uma forma divinamente ingênua, com um olhar apaixonado e puro de admiração pela natureza. Se algum artista do século XV passasse diante da clareira nesse instante, teria exclamado ”Ô, divina musa, aspirante a deusa! Permita-me retratá-la?” sem pensar duas vezes. Realmente parecia aquelas cenas de filme.

Kentin esboçou um sorriso e tirou uma foto de Alexia em meio às flores com seu próprio celular de forma discreta, para guardar de recordação. Ele queria se lembrar de todos os bons momentos que passava com ela, e o que seria melhor do que uma foto para isso?

Alexia estava tão imersa na beleza das flores que nem percebeu que estava sendo clicada. Ela tocava cada espécie de flor carinhosamente, nomeando cada uma na cabeça. Seu sorriso quase não cabia mais na cara. Adorava cada pétala e cada aroma de cada flor, porque eram belas sendo o que elas eram naquele lugar natural e perfeita. Sem modificações genéticas feitas pelo homem, sem cores artificiais. Tão verdadeiras, tão.... Complexas! Eram obras coloridas da natureza, e a natureza era um universo de mistérios incríveis que Alexia amava procurar entender.

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— Lex, você está com a cara de quem vai engolir essas flores de tanto amor. – disse Kentin encostado na árvore com um sorriso torto.

— Ha. Ha. Me deixa! Afinal, não é todo dia que a gente vê uma beleza dessas!

— Eu sei. Mas precisava mesmo enfiar a sua cara nelas? Depois entra uns pólens aí nas suas narinas e vou ter que ficar aturando crise de espirro o dia todo. Pense bem sobre isso. – brincou, ciente de que ela não ia sair de perto das flores tão cedo. Alexia simplesmente riu e mostrou a língua antes de voltar a sua atenção para as delicadas flores. Pensou um pouco antes de sentar-se ao lado dela. Alexia olhou para ele sem entender, cabeça entortando em sinal de questionamento. Sorrindo, Kentin tirou das costas e abriu a mochila. – Já que vai ficar paquerando as flores, então vamos fazer um piquenique aqui.

— Seria perfeito! – exclamou Alexia, abraçando Kentin pelo pescoço alegremente e deixando-o atordoado antes de larga-lo e puxar a mochila para si. – Mas EU arrumo o piquenique, você faz muita bagunça com comida, e eu não quero sujar esse lugar perfeito. Até porque pretendo voltar aqui muitas e muitas vezes, sim?

Kentin se recuperou do abraço apertado que recebera e fizera seu coração disparar loucamente, endireitou os óculos que escondiam os seus olhos claros e assentiu abobado. Alexia conseguia leva-lo a um estado de choque só com um abraço.

Fizeram um piquenique com toda a comida que tinha na mochila (biscoitos, geleias, salgadinhos, chocolates, latinhas de refrigerante, bisnaguinhas e um pote de patê de atum) e ficaram deitados na clareira, uma cabeça batendo na outra, admirando as folhas e o sol, sentindo o aroma das flores. Nisso ficaram até o pôr do sol. Depois, guardaram tudo em silêncio, jogaram o lixo numa lixeira que tinha na beira da clareira e saíram do parque.

— Lex, tem comida em casa ainda?

— Sinceramente, não. Vamos passar no mercado então?

— Vamos, eu estou com vontade de comer uma refeição daquelas!

— Mas, Kentin, você acabou de comer quase a comida toda da mochila! – exclamou Alexia, espantada com a fome infinita de seu amigo. Na antiga cidade, ela só o via na escola e nos fins de semana, sendo que nem sempre ficavam juntos o dia todo, então ela não sabia da quantidade de alimentos que ele consumia todos os dias. Kentin suspirou. Talvez esse seu apetite todo a fizesse ficar desconfiada, era melhor maneirar na frente dela. Terá que arranjar um jeito de arranjar comida quando ela não estiver por perto.

— Verdade, esquece o que eu disse. É gula. – disfarçou Kentin com um sorriso torto. Alexia balançou a cabeça rindo e seguiram em direção ao mercado.

Estavam chegando ao mercado, passando por uma rua quieta e vazia, mas Kentin se distraiu com uma vitrine de uma loja de games. Tinha saído o novo jogo do Mário Galaxy para Nintendo DS! Alexia virou-se para trás, estranhando a parada repentina de Kentin, seguiu o seu olhar e sorriu. Ele estava esperando esse jogo há meses.

— Vai, entra e compra. Eu espero.

Kentin nem esperou ela repetir, correu para dentro da loja como um maníaco viciado. Alexia gargalhou e encostou na parede de fora, ao lado da vitrine. Porém, fora do campo de visão de quem estava dentro da loja.

Ela olhou para sua direita e viu dois homens se aproximando. Imaginando que fossem apenas pessoas passando pela calçada, ela ignorou e olhou para a esquerda. Foi a pior atitude que ela poderia ter tomado.

Só sentiu um braço agarrando sua cintura e os seus braços, puxando-a bruscamente para trás, de encontro a um corpo masculino que andava para dentro de um beco de costas.

Ela ia gritar, mas sua boca foi tampada firmemente por uma outra mão. Era uma mão firme e áspera.

— Pega logo a corrente, Tom! – sibilou o homem que a segurava contra o seu próprio corpo. Ele prendia as mãos de Alexia na frente do seu busto com um braço ao seu redor na altura das costelas da menina, suspendendo-a alguns centímetros acima do chão, enquanto a outra mão tapava sua boca com muita força, fazendo-a levantar um pouco a cabeça. – Certeza que é de ouro.

Ela dava chutes no ar, mas de nada adiantava. O homem que a segurava era muito forte. O outro homem, supostamente o Tom, andava na sua frente, encarando inexpressivamente seu rosto delicado de garotinha desesperada. Alexia estava a ponto de chorar. Ia ser violentada ou assaltada? Ou sequestrada? Ou queriam matá-la? Era um desespero completo. O terror a engolia por completo. Por que deixara Kentin entrar na loja sozinho? Por que não entrara com ele? Por que tinha que ser com ela?

— Cala boca, eu sei o que estou fazendo. – respondeu Tom, remexendo nos bolsos laterais do vestido de Alexia. Sorte que ela havia deixado a sua bolsa dentro da mochila que estava com Kentin, com seu celular e sua carteira. Bufando de frustração por não encontrar nada nos bolsos da garota, Tom passou para o pescoço de Alexia. Tirou a corrente de ouro rudemente, machucando a pele delicada dela. Agora Alexia estava com os olhos marejados de medo. Medo dos próximos passos dos bandidos.

— Olha direito se é ouro puro mesmo.

— É de ouro sim. – sussurrou Tom analisando a corrente de perto. Olhou novamente para Alexia ao esconder o colar no bolso e sorriu maliciosamente. – O que mais você tem aí, gatinha? Será que tem algo escondido debaixo de suas... Roupas?

O bandido levantou as mãos e pousou-as uma de cada lado de sua cintura fina. Alexia não pensou duas vezes e deu um chute torto, porém forte, na sua canela. Entretanto, parece que ele nem sentiu o chute, e ainda sorriu com a rebeldia da menina. Suas mãos ásperas foram escorregando lentamente pelas laterais de seu corpo, contornando suas curvas, até pararem na barra do seu vestido, no meio das coxas. Alexia desejou estar morta naquele momento para que não precisasse viver os próximos momentos que a esperavam. À essa altura, já havia desistido de lutar, estava congelada de terror. Não adiantava. Os caras não sentiam dor, pelo amor de Deus! Fechou os olhos e esperou pelo pior.

Kentin entrou na loja e correu direto para a prateleira em que estavam os jogos. Encontrou em menos de dois segundos (Cara, a capa era cintilante! Não tinha como não ver de longe!) e correu para pagar, já que deixara Alexia na porta esperando. No caixa, enquanto o atendente esperava sair o cupom fiscal da máquina de cartão, Kentin olhou pela vitrine. Alexia não estava lá. Ué? Com receio, ele nem pegou a sacola para embalar o jogo, simplesmente catou a caixinha e saiu correndo para fora enquanto enfiava o seu bebê recém-adquirido na mochila de qualquer jeito.

Abriu a porta da loja abruptamente e olhou para os dois lados. Sem sinal de vida, exceto um carro parado no semáforo. Kentin sentiu um arrepio na espinha e soube que Alexia estava correndo perigo naquele instante, próximo de onde ele estava. Reparou que à sua direita havia um beco escuro, a quatro metros da porta da loja. Correu para lá, pois era o lugar mais lógico que via.

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Assim que entrou no beco, parou. Conseguia enxergar dois homens. E a Alexia.

E um dos caras estava... Levantando o vestido dela?

Kentin sentiu uma fúria inacreditável se despertar no seu interior. Suas veias formigavam, pedindo para que ele se libertasse. Sentia o poder inundando o seu corpo, seus olhos dilatando de tensão e prestes a mudar de cor. Era uma sensação descomunal. Começou a andar em direção aos homens que tocavam na sua garota.

Mas de repente, ele parou. Um momento de lucidez em meio ao quase descontrole: ele deveria se revelar diante de Alexia e salvá-la das mãos desses bandidos imundos, sabendo dos perigos que isso acarretaria para ela depois? Ou ele deveria se acalmar e encontrar um jeito de livrá-la deles e manter o seu próprio segredo em paz?

Essa sua hesitação poderia ser o fim de Alexia.

***

Samara piscava em sua cama, confusa com o apitar de um e-mail vindo de seu notebook, que a acordara. Ela o esquecera ligado antes de cair no sono. Levantou lentamente, enfiou os pés nas pantufas macias e se arrastou até a tela brilhante em meio à escuridão de seu quarto. Com alguns cliques, ela abrira a caixa de entrada e leu o assunto do e-mail. Seus olhos se abriram de choque. Finalmente! Já estava achando que não ia mais acontecer!

“[URGENTE] Abertura de vaga - Sweet Amoris”

***

Em instantes, Kentin soube a decisão certa, fez de tudo para se acalmar e voltou até a entrada do beco de costas.

Fez uma concha com as mãos, levou até a boca começou a berrar com toda a sua força.

- POLÍCIA! SOCORRO! TEM DOIS BANDIDOS AQUI AGARRANDO UMA GAROTA! AJUDEM! POLÍCIA! GENTE! AQUI!! SOCOOOOOOOOOOOOOORRO!

E saiu correndo. Para longe do beco.