Kaleidoscope - Um Mundo só Seu

Cap. III – Sãos, loucos e aquela linha tênue...


- Pelo roubo a loja de conveniências Konbini e por fuga das autoridades policiais, sentencio o senhor Takashima Kouyou a seis meses de encarceramento.

Uruha, sentado no banco de madeira desconfortável, de macacão laranja e algemas nos braços, arregalou os olhos. Seis meses inteiros! Por um assalto com uma arma descarregada?! Podia sentir Kai quase se levantando atrás dele, assumindo sua parte da culpa, dizendo que “não é preciso tanto, senhor juiz, por favor!” Porém na breve conversa que pudera ter com o amigo através de uma grade, Uruha convencera Kai a fingir que estava em casa durante o ocorrido e esconder o dinheiro por um tempo. Afinal, ele só pisara no acelerador. Todo o resto era culpa do próprio Uruha mesmo.

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Também podia sentir o olhar em brasa de seu pai colado a nuca e ouvir o choro baixo de seu sobrinho, o segundo, sendo meio abafado pela mão protetora de uma de suas irmãs.

- Mediante o pagamento de uma fiança de trezentos mil yenes a pena poderá ser cumprida em regime aberto, com seis meses de trabalho comunitário supervisionado. Caso encerrado. Próximo.

O martelo de madeira ecoou pela sala quase vazia e o juiz fez um gesto para que os guardas uniformizados levassem-no dali. Arrastando os pés, Uruha ia de cabeça baixa, amaldiçoando o maldito juiz de pequenas causas e seu maldito mau-humor matutino. Tinha certeza que por seus pais, apodreceria na prisão. Desonrara a família, se deixara ser pego em flagrante.

Ser pego em flagrante era a parte mais humilhante e desonrosa de todas, porque para o bem ou para o mal, Uruha sabia que seu pai tinha uma certa consciência de onde ele arrumava dinheiro para sair, já que seu trabalho de meio período na feira não rendia tanto. Mas seu pai não ligaria desde que tudo ficasse realmente no escuro, o que não era mais o caso. Ele estava com raiva porque teria que lidar com os vizinhos, com a própria família, com os colegas de trabalho, não porque realmente achava aquilo errado. Hipócrita.

Tinha valído à pena? Uruha ainda não tinha certeza. Não se dava particularmente bem com sua família, mas também não os odiava ao ponto de preferir uma cadeia a sua casa. Ou odiava? Kai estava angustiado, visivelmente. Estava se culpando. Uruha sabia que o moreno era correto de mais, cavalheiro de mais para não sentir-se miserável com o que acontecia. Por outro lado...

Não podia negar, roubar, apontar uma arma para a cabeça de uma pessoa, ser perseguido pela polícia, era mais vida do que já tivera em todos os seus vinte e quatro anos de existência. Mais vida do que se permitia sonhar ter.

Kai o alcançou, tentando falar com ele por baixo dos braços musculosos dos guardas que o escoltavam.

- Pode deixar, Uruha, eu vou te tirar de lá.

Ele riu.

- Kai, eu vou ficar bem – mas não tinha tanta certeza quanto sua voz demonstrava. – Não banque o cavalheiro de armadura brilhante comigo. Você sabe que não faz meu tipo.

“Ele deve estar preocupado mesmo”, pensou Uruha “Nem corou!”. Kai o olhava se afastar por um longo corredor estéril e branco como se nem tivesse ouvido o que dissera. Então o olhar de preocupação se tornou um olhar resoluto como ferro e ele voltou a alcançar o loiro, quando este já estava quase desaparecendo por uma porta lateral.

- Uruha!

- Uhm?

- ...Eu te vejo em alguns dias.

Uruha assentiu com a cabeça, tentando ignorar o nó que tinha no peito. E no final, não, não tinha valído à pena.

-

Aposto que você vai rir quando receber essa carta. Sim, o amante da tecnologia, Uruha-san escrevendo uma carta a mão... veja o que a prisão faz com as pessoas. Eu tenho uma cela só pra mim agora, graças aos céus, porque naquela delegacia os outros presos não paravam de olhar para mim como se eu fosse um pedaço de carne. Não que eu odeie esse olhar, mas é melhor vê-lo na cara de algum homem bonito em uma boate legal do que preso com um bando de animais no cio.

Na verdade, eu não agüento mais o tédio. Sim, sei que só faz uma semana, mas isso é mesmo um inferno, pode apostar. Todo mundo parece estar só esperando a morte por aqui, deitados olhando o teto. Aposto que se as paredes fossem feitas de pedra, eles as estariam contando e dando nomes a elas.

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Bem, papai e mamãe não vieram me ver, só Tieme. Você conhece ela, só veio aqui pra poder me olhar daquele jeito superior de irmã mais velha e dizer que eu sou uma vergonha. Aposto que aquele capeta do filho dela puxou a mim. Se puxou, vou fazer questão de ensinar o moleque pessoalmente a ter uma “mão leve” quando for mais velho. Mas até ela é mais agradável que ninguém, Kai, e eu estou falando sério. Não ria e não faça essa cara de espantado que eu sei que você esta fazendo. Quando tiver uma folga na lanchonete, você vem?”

Uruha descansou a caneta e esticou o pescoço. Uma semana daquele marasmo e já achava que estava enlouquecendo. Pra achar que Tieme era uma companhia agradável, só podia mesmo estar completamente louco. Sua irmã era a definição de burguesa-insuportável-perfeitinha. Preferia que Hayahi tivesse vindo, pelo menos ela tivera a decência de ir ao julgamento antes de aparecer para dar sermão. Oh céus! Ele realmente queria que sua família estivesse ali?!

Uruha pulou da cama e começou a andar no espaço diminuto que tinha, sentindo-se sufocado. Não fora feito para ficar enjaulado daquele jeito, era muito cruel! Muito injusto por um simples roubo de loja. Pensara em se distrair escrevendo uma carta para Kai, ou para sua mãe – talvez ela se condoesse e pagasse a fiança – mas já amassara duas folhas achando o que escrevia sem sentido.

Pura loucura.

Sentou-se na cama, desejando poder ter pelo menos roupas descentes. Laranja nunca lhe caíra bem, deixava sua pele doentia. Era estranho pensar em roupas quando se estava preso, ou ao menos era isso que Uruha achava naquele momento. Talvez devesse estar se preocupando com sabonetes caídos no banheiro e caras enormes o molestando com força...

Nãããão... falta de sexo era justamente um de seus problemas.

Olhou a caneta caída entre as folhas de papel amassado e a pegou. Então apoiou a ponta sobre a parede e escreveu palavras simples, reforçadas varias vezes de maneira que o traço ficou completamente visível e escuro.

“Uruha esteve aqui”

Olhou para aquela marca estúpida e desejou poder apagá-la. Escrever algo mais inteligente. Uma citação anarquista talvez. Ou quem sabe devesse fazer um calendário. Droga, precisava lembrar de pedir um calendário a Kai quando ele viesse. Agora estava se sentindo deprimido, ante a possibilidade de quase seis meses inteiros pela frente. Escreveu em baixo da primeira marca, sem se dar ao trabalho de reforçar nada.

“...e vai estar por muito tempo”

- Takashima-san?

Uruha levou um susto. Deixou a caneta cair e olhou para o guarda uniformizado com cara de puro tédio a porta de sua cela. Pelo jeito, o tédio ali era generalizado, não só entre os internos.

- Sou eu.

O guarda enfiou uma das chaves enormes do molho pesado que carregava na fechadura e abriu a cela.

- Pegue suas coisas, você está livre.

O loiro ainda olhou em dúvida para as grades abertas por alguns segundos, então rapidamente pegou as folhas amassadas, a caneta e saiu. Só então se virou para o guarda para perguntar quem pagara a fiança.

- Seu pai, acho – respondeu com pouco caso, apenas o acompanhando até uma saleta conjunta. – Aquela moça vai devolver seus pertences e você pode se trocar ali – disse breve, apontando para dois lugares e então voltando a sumir por entre os corredores.

Uruha pegou de volta suas roupas, seu relógio, seus óculos e suas botas de couro preto, mas percebeu que não teria de volta a chave do carro nem sua arma. Deu de ombros, se trocou e foi liberado para a sala da burocracia.

- Cara, você tá péssimo! – Kai disse ao vê-lo chegar, com um enorme sorriso estampado no rosto. Uruha sorriu de canto ajeitando o cabelo e abraçou o amigo por um momento.

- É quase irritante essa sua mania de cumprir suas promessas...

- Ah, como se você fosse reclamar! – comentou o menor, rindo.

Então o loiro se voltou para os pais.

Sua mãe sentava-se com os joelhos juntos, os olhos fixos em algum ponto no chão e os dedos muito firmes em volta da bolsa pequena. Uruha sempre fazia brincadeiras sobre o fato de ela estar sempre vestida para velório, com roupas cinzas e sóbrias, mas ali parecia incrivelmente adequado. Principalmente se levasse em consideração o olhar assassino de seu pai. Se houvesse um velório ali, Uruha sabia que seria o seu próprio. O rosto de seu pai demonstrava claramente que ele estava sentindo dores terríveis em sua conta bancária, o que nunca era bom pra ninguém.

- Pai...

- Kouyou, essa é sua única chance – ele disse, sem nem mesmo dizer olá. – Estrague isso e vai realmente precisar roubar para viver.

Uruha baixou a cabeça e assentiu, suspirando. Pelo menos estava livre do macacão laranja.

- E quando essa sua pena acabar, você vai arrumar um emprego de verdade ou vai começar a fazer faculdade. Não existe uma terceira opção. Entendido?

Uruha novamente assentiu com os olhos baixos e esperou que o pai se afastasse dele para voltar a falar com Kai.

- Você convenceu eles? – perguntou em voz baixa, enquanto os pais se levantavam e assinavam mais alguns papeis.

- Bom, é... eu disse que deixar você engaiolado era cruel de mais. Eles conhecem você, sabem como você é e como devia estar preso aqui dentro. Então eu disse que serviço comunitário era a punição perfeita e eles concordaram.

“Ah é... a droga do serviço comunitário” Uruha se inclinou e sussurrou de seu jeito ameaçador para Kai.

- Seja lá o que for, você vai me ajudar, como voluntário.

Kai abriu a boca para dizer alguma coisa, mas antes que pudesse falar, a mulher no balcão chamou Uruha, acenando um bolo de papeis em direção a ele.

- Por favor, assine aqui, e aqui, e aqui... e rubrique aqui...e aqui... um fiscal de probation logo fará contato sobre o serviço comunitário. Não pode deixar a cidade pelo período de seis meses, contando a partir de hoje – ela olhou para ele e sorriu daquele jeito que as mulheres sempre sorriem quando se deparam com um homem lindo e recebeu de Uruha um leve sorriso de canto como retribuição. – Boa sorte, Takashima-san.

Uruha assinou em todos os lugares que precisava assinar e devolveu a caneta a mulher com outro sorriso. Uma semana e ele estava até flertando com uma mulher! Falta de sexo lhe fazia mal. Sorte que agora pelo menos poderia dar umas escapadas a noite e ir pra cama com belos espécimes de ser humano que não exigiam nada além de gemidos altos o bastante. Mas o negócio do serviço comunitário o preocupava, nunca tivera jeito para limpar banheiros e ajudar velhos decrépitos a tomar banho. Kai definitivamente teria que ajudá-lo com isso.

Mas naquele momento, tudo o que queria era voltar para sua casa e tomar um banho bem quente, vestir roupas bem confortáveis e passar um tempo arrumando o cabelo amassado. Odiava se sentir mal arrumado e estava com saudade de todos os seus cremes, gels, potes e escovas. E de sua guitarra. Queria voltar a sua vida normal o mais rápido possível.

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Foi no dia seguinte que Uruha percebeu que iria demorar muito para poder voltar à vida de antes.

-

- É aqui que eu vou ter que trabalhar?!

Uruha, vestindo preto de cima a baixo e usando os mesmos óculos escuros do assalto, virou o rosto perplexo para o homem ao seu lado. Aquele homem era uma mistura um tanto quanto bizarra de servidor público e surfista, com seu cabelo castanho encaracolado e terno largo, gasto, usado com uma camisa verde meio aberta por baixo. Seu nome era Ogata Hiroto e ele era o seu Fiscal. E por Fiscal, Uruha entendia “babá”.

- Uhum – sem desviar os olhos do prédio a frente, o tal Hiroto sorriu de canto. – Centro Intensivo de Recuperação para Cidadãos Especiais. Mais conhecido como Circe. É uma instituição particular, você tem sorte. Nem queira saber como são os banheiros que você teria que limpar se fosse uma instituição pública.

O maior bateu a mão no rosto, os olhos fechados e suspirou. Não lhe passara pela cabeça ter que lidar com retardados.

- E o que eu vou fazer aqui? Além de limpar banheiros – disse a última frase de maneira sarcástica, fria, com aquele seu tom mais perigoso. Hiroto pareceu não notar.

- Isso quem vai decidir é o diretor. Minha obrigação é fazer você vir aqui todos os dias. Não chegar bêbado ou drogado, não tentar fugir da cidade, não ser pego fazendo alguma besteira outra vez – então o agente se virou para ele com uma expressão um tanto quanto maníaca. – E se as coisas não forem assim, minha obrigação será transformar sua vida num inferno. Portanto acho bom não ser um daqueles tipos rebeldes que dá trabalho só para chamar atenção, porque eu lhe garanto que não vale a pena. Não comigo.

Uruha pensou que devia se encaixar bastante na descrição, mas não disse nada. Porém encarou com firmeza os olhos do outro, sem medo. Não teria medo de um cara que não parecia mais velho que ele e ainda fazia o tipo meio idiota de pessoa. E era baixinho. Então fez um leve gesto com a cabeça, assentindo e Hiroto-san o conduziu para dentro do prédio.

Ali dentro estava frio, foi só o que Uruha pode notar antes que um grito afeminado chamasse sua atenção.

- PON!

Um homem alto, da altura de Uruha, com cabelos castanhos claros e olhos azuis acinzentados apareceu no fim de um corredor, saltitando até eles alegremente. Hiroto sorriu amarelo, parecendo levemente corado. Uruha baixou o rosto e soltou uma risada pelo nariz.

- Olá, Shou.

- Oh, seu safadinho, você sumiu! E quem é esse rapaz lindo ao seu lado?! – os olhos contornados de lápis do rapaz se voltaram para Uruha. – Ah sim, o garoto problema. Como é seu nome mesmo, criança?

O maior baixou os óculos e mostrou seu olhar mais perigoso ao outro. Como aquela “coisinha saltitante” tinha coragem de chamá-lo de criança?! Ou garoto problema? Ora, por mais que usasse roupas que pareciam ter sido desenterradas do armário de seu bisavô na era disco, ainda não era mais velho que o próprio Uruha.

- Takashima Kouyou, Shou. E me desculpe não ter aparecido depois daquele... hum...jantar...

- Oh, Pon, eu não esperava que você aparecesse. Takashima, hum? O diretor já me deixou instruções a seu respeito. Você vai começar limpando os banheiros e se terminar ainda hoje, pode começar a organizar as pastas do arquivo. Depois, vai repintar as paredes. Pon? – a ‘coisinha’ conseguia falar mais rapidamente que Kai e seus olhos pulavam de um para outro sem se ater ao rosto de nenhum dos dois. – Quer provar minha nova receita de massa italiana? Garanto que melhorei desde a última vez.

- Ahn... claro, Shou, qualquer dia desses marcamos. Desculpe mas eu tenho que voltar e arrumar uma papelada, ele está entregue.

- Oh sim, claro. Bem, eu vou buscar suas roupas, dear, não saia daí.

E ele sumiu outra vez, com seu trote rápido. Uruha se virou para o outro homem.

- Você fez sexo com ele?! Ew!

Hiroto apenas lhe lançou um olhar malévolo e deu as costas. Uruha continuou a falar, num tom sarcástico.

- Ele por acaso usa camisinha rosa? Talvez use uma sunguinha com rabo de coelhinha da playboy...

Porém o homem de terno largo já deixara o prédio pela porta da frente e Uruha riu sozinho esperando a “coisa fofa” voltar. “Pon... apelido engraçado. Uruha pon...Urupon desu...”

- Ah!

E ele voltara de repente, fazendo o maior se sobressaltar em meio a seus pensamentos.

- Você não fugiu, já é um começo. Bem, vista isso e eu vou lhe mostrar o armário de produtos de limpeza e os banheiros – e jogou para ele um macacão laranja.

Uruha olhou o macacão por um segundo.

- Claro, tinha que ser laranja... – resmungou.

- Hahaha, dear, você é engraçado. Venha, vou te mostrar onde se trocar. A não ser que não ligue de sujar essas suas lindas roupinhas de marca...

- Não, obrigado. E me chame de Uruha – respondeu seco e o seguiu.

Entraram em um corredor e ele continuou a falar incansavelmente, enquanto o loiro dispensava-lhe a mínima atenção. Passaram por uma porta de folha dupla aberta, que dava para um salão de recreação coberta e com grandes janelas. Varias pessoas estavam lá, montando blocos coloridos ou simplesmente olhando o nada. Uruha passou reto, então parou e deu dois passos para trás, olhando outra vez.

Sentado a uma mesa de madeira cheia de minúsculas peças de quebra cabeças, estava um rapaz com cabelos cor de mel e olhos concentrados, azuis. O rapaz ergueu os olhos ao se sentir observado. Seus olhares se chocaram por alguns segundos, então ele voltou a baixar o rosto, pegando uma peça qualquer e a encaixando em algum lugar.

O rapaz do parque, com a síndrome de As-qualquer-coisa.

Ruki.

oOo