— Eu tive uma ideia — falei a Sali em uma tarde que tínhamos ido até a praça que costumávamos nos encontrar. Estávamos na nossa árvore e não tínhamos nenhuma tarefa para realizar; era sexta-feira.

— Que ideia?

— Amanhã eu vou para a casa de meu pai, como em todos os finais de semana. E você bem que poderia ir junto. Sabe, é uma daquelas oportunidades que você estava esperando.

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Apesar de meu evidente entusiasmo com a ideia, Sali pareceu retraída. Encolheu-se mais que o necessário naquele típico dia frio no sul do Brasil.

— Guto, eu não sei… — sua voz estava baixa.

— Olha, eu até pensei em tudo. Você pode falar para sua mãe que vai viajar com uma amiga.

— Claro, porque eu sou exatamente do tipo de pessoa que costuma viajar com amigas.

Eu sabia de todas as dificuldades e problemas que meu plano teria e estava disposto a enfrentá-las, mas fiquei verdadeiramente magoado com a recusa imediata de Sali. Ela nem ao menos tentaria?

— Sali?

Ela desviou o olhar.

— Não dá, Guto. É sério, eu… não posso — depois de ter dado seu recado, saiu da árvore. Já tinha atravessado uma boa parte do gramado quando a chamei.

— Desse modo… você vai recusar a todas as oportunidades que a vida oferecer, Sali?

Ela ficou alguns segundos simplesmente parada. Não me olhou.

— Não todas. E talvez eu seja mesmo uma idiota. Mas sim, eu recuso essa oportunidade. Bom final de semana, Guto.

Ela se foi. Afastou-se da árvore e da praça até que eu a perdesse definitivamente de vista. Na primeira vez que ela tinha se afastado de mim, eu tinha ficado triste pela mera falta de companhia e pela sensação de não saber o que tinha feito para perdê-la. Ela tinha ficado ausente por quatro dias.

Daquela vez, de alguma forma, foi ainda mais estranho. Quase duas semanas depois de seu primeiro desaparecimento, vê-la se afastar até perdê-la de vista foi doloroso. Tive sua companhia quase todos os dias e nossos laços se estreitaram ainda mais; pareciam infinitamente intrincados. Quis que ela voltasse. Quis correr atrás dela e impedi-la de continuar. E comecei a sentir saudade antes mesmo de perceber que a sombra de seu corpo tinha desaparecido.

Temi que fosse eterno.

O que eram aqueles sentimentos? Ela podia ir assim que quisesse. Éramos apenas companheiros e amigos, eu nem mesmo confiava a ela meus sentimentos. Quase nunca contava sobre mim, meus sentimentos, meus medos. Apenas… a tinha. E não pensei que isso pudesse significar tanto para mim.

Peguei o meu celular no bolso e disquei o número que já havia decorado. Ela atendeu apenas na terceira tentativa.

— Guto?

— É insuportável. A coisa toda. É insuportável ver o Edgar com ela — ou talvez somente vê-la todos os dias —, é insuportável ver o Rafa crescendo e pensar no quanto as pessoas são cruéis e no quanto ainda vão fazer ele sofrer. É doloroso ver que meus pais estão tomando rumos diferentes e, ao mesmo tempo, sinto tanto orgulho por eles finalmente estarem seguindo em frente depois de anos presos no passado. É incrível ter te conhecido e passar dias na nossa árvore conversando ou lá em casa, simplesmente estudando. É agradável ter a companhia de Lipe e Bia e ficar pensando em maneiras de juntá-los — respirei fundo. — Tenho medo, muito medo, do próximo dia, do que me espera. Tenho medo de ser enterrado vivo — não pude evitar um riso fraco. — Gosto de te ver vestida com moletons meus, porque eles ficam desproporcionais para você. Gosto da sua trança, mas tenho muita curiosidade: como é seu cabelo solto? — fiz uma pausa a fim de me lembrar de mais algum fato que quisesse ressaltar, quando fui interrompido pela voz melodiosa de Sali.

— Guto? — mas o seu tom era alegre. Quase pude imaginar um sorriso em seus lábios. — Por que me disse tudo isso?

Fechei meus olhos e sorri, apoiando a cabeça no tronco da árvore.

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— Um dia você me disse que queria que eu compartilhasse as minhas coisas com você não porque você era uma boa conselheira, mas porque eu confiava em você o bastante para isso.

Ouvi apenas sua respiração por alguns segundos.

— E essa hora chegou.

Foi como um sopro ouvi-la dizer aquela frase. Foi suave e delicado, gentil e brando; quentinho.

— Sim. Essa hora chegou.

— Eu fico feliz, Guto — ela sussurrou. Apertei o telefone contra a minha orelha. — E eu… sinto muito por ter saído desse jeito todo dramático.

Ri.

— É, foi realmente dramático.

— É que… pra mim é tão complicado. Eu odeio mentir para minha mãe e achei que fosse ultrapassar demais os limites impostos.

— Você não cometeria um crime.

Ela ficou em silêncio.

— Sali?

— Eu tenho medo de chuva. E cemitérios. E eu nunca tive um ex namorado. Todos os meninos que me apaixonei na vida não me correspondiam e todos aqueles que me queriam eu rejeitava. Deve ser a ordem da vida. Mas eu sempre pensei que quando fosse a pessoa certa seria recíproco, sabe? A minha mãe é legal e é a minha melhor amiga, só que não entende ou não se lembra como é ser jovem. O meu pai é bem legal também — ela respirou fundo. — Eu sou organizada e tenho horários pra tudo. E não sou muito de sair para festas, mas amo dançar. Ou amava. Faz algum tempo que já não faço mais isso…

— Sali?

— Achei justo confiar em você — pude imaginar seu sorriso. — Já que você confiou em mim.

— Uau.

— Ficou sem palavras?

— É, acho que foi isso.

— É legal deixar as pessoas sem palavras.

Ri.

— Eu gosto de ficar sem palavras.

— Outra troca justa.

— Então…

— Então?

— Por que não volta para nossa árvore?

Ela ficou alguns segundos em silêncio.

— Tudo bem.

.

— Eu não sei mais o que fazer! — exclamou Lipe. Quando voltei à minha casa no fim da tarde de sexta, ele me esperava impacientemente. — Já tentei de tudo! E o pior, o pior de tudo mesmo, é que a gente já ficou uma vez — ele jogou a cabeça para trás. — Guto, me ajude.

Sentei em minha cama e tentei me concentrar.

— Lipe, o que você quer dizer com “a gente já ficou uma vez”?

Ele se interrompeu em um passo e me encarou demoradamente.

— Eu não te contei, não é mesmo? Tinha me esquecido desse detalhe.

— O que você não me contou, Lipe?

Ele suspirou e se sentou no chão.

— No nono ano a Bia gostava de mim, lembra?

— Como poderia me esquecer?

— Certo… então, ela se juntou ao nosso “grupo”. Eu até gostava de sua companhia. Era bem agradável e ela não era… atirada ou insuportável. Era uma garota normal que queria ficar comigo. Até aí tudo bem. Eu até mesmo pensei em ceder aos encantamentos dela, afinal, que mal teria? Era nosso último ano naquele colégio. No próximo ano eu não veria mais ela e tudo estaria acabado. Portanto, na nossa formatura, eu a levei para fora do salão de festas e… bem, você já sabe o resto.

Minha boca estava escancarada.

— E você não me contou?

— Eu não te conto sobre todas as garotas que eu fico, Guto.

— Mas é a Bia! É a nossa amiga!

Ele fechou seus olhos.

— Tô quase chegando nisso… Enfim, nós ficamos naquela noite e depois disso não conversamos mais. Era para ser somente um dia. E foi legal, porque eu gostava dela e ela gostava de mim, mas eu pensei que aquilo não se repetiria. Mudamos de colégio e eu somente conseguia pensar que estávamos entrando finalmente no ensino médio e que eu conseguiria arranjar alguma namorada legal; não haveria mais nenhuma parte do meu passado tirando você. Só que ela estava lá. Naquele primeiro dia, sozinha. E se juntou a nós. Não comentamos sobre aquela noite; foi como se ela nunca tivesse existido. O fato é que…

— O fato é que?

Ele abriu seus olhos e me olhou fixamente.

— Convivendo com ela todos os dias, conhecendo-a, eu… Droga, foi tão inevitável e impossível. Guto, eu me apaixonei por ela. De verdade. Tentei renegar e cheguei até a ficar com outras, mas não dá mais. Nós só temos esse ano. Mais um último ano. Mais um adeus. Eu não sei se vou encontrá-la na faculdade, sozinha, me esperando no primeiro dia. Só me resta esse ano. Eu preciso conquistá-la.

— Ela já está conquistada.

— Não tenho tanta certeza.

Respirei fundo.

— Certo. Então você está tentando conquistá-la?

— Sim.

Lembrei-me de uma ocasião que tinha acontecido semanas antes, no dia que Sali foi me esperar pela primeira vez na saída do colégio. O Lipe estava atirando todo o seu “charme” para cima de Sali e Bia, obviamente, estava sentindo ciúme.

Não pude evitar que uma risada escapasse.

— Qual é a graça?

— Lipe, você está usando do método do ciúme forçado?

Ele deu de ombros e abaixou a cabeça.

— Ah, meu Deus. Esse método é tão… Lipe, não dá certo. Porque a Bia nunca vai acreditar que seus sentimentos são somente por ela. Ela sempre vai pensar que você quer a outra menina.

Ele respirou fundo.

— Tá, o que eu faço então?

Tentei organizar os meus pensamentos para ajudá-lo, no entanto eles não se encaixavam. E, além de tudo, estava quase na hora de ir buscar Rafa no colégio.

— Eu não sei. Mas prometo que vou pensar, Lipe. E… não se preocupe, ok? Vocês ainda ficarão juntos esse ano.

A paixão no olhar de ambos era tão evidente que o mero pensamento de eles continuarem naquela brincadeira de gato e rato era insuportável. Eles tinham que viver aquele amor. Mesmo depois de tudo o que tinha passado com Laura, sabia o quanto minutos eram importantes em um relacionamento. Eles tinham que ter mais do que uma simples lembrança de um dia que ficaram no final da oitava série.

Eu estava cheio de lembranças boas do tempo que tinha ficado com Laura. Lembranças que preservaria para o resto da vida. E, mesmo que o relacionamento deles não fosse durar muito, eles tinham que vivê-lo. Prometi para mim mesmo que os uniria para que eles pudessem aproveitar um ao outro.

.

— Desculpa, eu tenho que atender — disse para meu pai e Rafa.

Estávamos em uma pizzaria na noite de sábado quando Sali me ligou. Imaginei que ela não fosse me ligar caso não fosse importante; e eu não gostaria de ignorar sua chamada, mesmo se ela quisesse apenas jogar conversa fora.

— Ah, Guto — Rafa reclamou.

— Deixe seu irmão — meu pai sorriu para mim. — Pode ir, filho.

— Valeu — levantei-me e saí para fora da pizzaria, recebendo o vento frio da noite. Poucas pessoas circulavam no lugar e fui para um canto que não tinha movimento algum para que pudesse conversar com Sali em paz. — Oi, Sali.

— Oi, Guto — sua voz estava suave. — Ocupado?

— Mais ou menos.

— Onde você está?

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— Numa pizzaria com o meu pai e Rafa.

— Ah — ela deu uma pausa. — Desculpa. Eu ligo depois.

— Não, não — ri. — Eu não me importo. A pizza ainda vai demorar para chegar. Quando eu ver que ela chegou, me despeço.

— Mas não vai querer fazer companhia para seu pai e seu irmão?

— Eles não se importam.

— Guto…

— É sério. Podemos conversar.

Inspirei profundamente o ar gelado. Escondi a minha mão livre no bolso de minha blusa.

— Tudo bem, então — ela sussurrou. — É… a Bia veio falar comigo.

— A Bia?

— Isso. Ela está perdidamente apaixonada pelo Lipe e quer conquistá-lo.

Gargalhei. Não era possível que duas pessoas apaixonadas fossem tão ridiculamente cegas e ainda estivessem separadas; tantas pessoas no mundo com amores não correspondidos e as poucas que tinham o privilégio do sentimento recíproco não ficavam juntas.

— O que foi?

— Ah, Sali — lamentei-me rindo. — Ontem o Lipe me procurou para me pedir que o ajudasse a conquistar a Bia.

— Não acredito.

— Pode acreditar.

Ela também riu.

— O que vamos fazer com esses dois? — ela perguntou entre risadas.

— Juntá-los. O que mais poderíamos fazer?

— Juntá-los — ela repetiu. — Eu aceito o desafio.

Era um bom desafio. E fiquei feliz de poder aceitá-lo ao lado de Sali.