Juntos Contra o Clichê

Tudo está mal quando termina mal


Abri os olhos e reparei o quarto ainda escuro. Virei-me para a janela, sentindo falta do sol que me acorda todos os dias. Igualmente escuro. Tateei o criado mudo procurando pelo meu celular, curiosa sobre o horário. O brilho forte quase me cegou. Massageei os olhos com os dedos antes de olhar para a tela novamente. Dez para as cinco da manhã. Só pode ser brincadeira. Larguei o celular e virei para o outro lado, querendo voltar a dormir. Depois de vinte minutos sem conseguir apagar, levantei, estressada por ter acordado bem mais cedo que o normal.

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Assim que coloquei todo o meu peso em minhas pernas uma dor forte me despertou ainda mais e, como um baque, as lembranças de ontem me atingiram. Fugi de alguém que era membro de uma gangue de cor e, para piorar ainda mais, fugi de um guarda. A autoridade que estava ali para zelar por nossa segurança. Eu sou uma procurada pela polícia!

Troquei de roupa rapidamente e peguei algo para comer na cozinha antes de me enfiar no sofá de baixo, vigiando se o jornal local comentar alguma coisa sobre mim. O meu tremor voltou ainda mais forte, já que a adrenalina havia deixado meu corpo. Estava certa que a qualquer minuto a polícia derrubaria a porta e me renderia em meio a disparos. Me arrastariam pela rua algemada. Essa cena sempre ficou espetacular em séries, mas realmente não quero passar por isso. Então era assim que os bandidos nas séries ficavam mesmo demonstrando total confiança e calmaria?

O jornal terminou e nada foi comentado sobre o meu caso. Suspirei, aliviada. Engoli o resto do pão que estava enrolando para comer pela minha ansiedade. Por algum motivo minha madrinha não quis me acordar ontem quando chegou do trabalho. Gostaria de pergunta-la, mas não estava psicologicamente preparada para repassar a mentira da mensagem de ontem para ela, frente a frente. E, com isso, decidi sair mais cedo para a escola. Enviei uma mensagem para ela dizendo que estaria lá mais cedo para continuar ajudando minha amiga. Mentiras e mais mentiras. Sinto-me tão mal por isso.

Meu corpo inteiro ainda doía muito, andar por quarenta minutos certamente não ajudou nada. Estava tão paranoica que a cada passo olhava para todos os lados, com medo de uma das pessoas das quais estava fugindo me interceptar. Para o meu alívio, nada aconteceu.

Atravessei as portas de vidros que acabaram de abrir e caminhei até minha sala. Fiquei encolhida na carteira durante muito tempo, repassando diversas vezes o que aconteceu ontem. Estava ferrada. Completamente fodida. Poderia ter arriscado contar alguma outra para o guarda do que apenas ter fugido daquele jeito, deixando-me ainda mais culpada!

Fui uma das primeiras alunas a chegar à escola. Por tudo estar tão quieto passei a ouvir constantes vibrações dentro da minha mochila. Retirei meu celular e vi o número desconhecido na tela. Ignorei. Não quero atender e acabar falando com alguém suspeito. Podem ser tanto os loucos da Noite Prateada quanto o guarda, que de algum modo pode ter conseguido meu celular. As vibrações continuaram por todo o tempo até os alunos começarem a chegar. Ignorei todas.

Não vi Gabriel dentro da sala. Precisava muito contar para alguém a idiotice que fiz, desabafar, implorar para que ele bata na minha cabeça até esquecer a merda de ontem. Decidi ir atrás de Maria Luiza, na sala ao lado. Assim que passava pela mesa dos professores, passando pela enorme janela dando vista para frente da escola, o meu mundo desabou. Era um carro. A porra de um carro de polícia. Permaneci estática por alguns milésimos, que pareciam anos, tentando assimilar o que estava acontecendo.

Enfiei minha mochila nas costas e disparei para as escadas. Não estava vendo ninguém fardado, então talvez tenha sorte de estarem trancados juntos com o diretor resolvendo a questão de entrar na escola. Cheguei ao primeiro andar e continuei sem ver ninguém uniformizado. A passos apressados, passei pela porta de vidro. Todo o meu corpo estava tremendo, mas me forcei a continuar. Do lado de fora das grades negras avistei uma cabeça ruiva. Gabriel. Minha salvação. Passei pelo pátio correndo. Gabriel se movimentou para o lado esquerdo do muro, onde não podia mais vê-lo. Não temi segui-lo, pois o carro estava do lado direito.

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Não precisei atravessar as grades negras para sentir uma mão segurando meu pulso pelo lado esquerdo. Virei meu rosto imediatamente. Farda. Um olhar severo. Não era o mesmo senhor de ontem, este era bem mais jovem, no auge dos vinte anos. Minhas pernas perderam a força, porém não me deixei ir ao chão. Fiquei encarando seus olhos estreitos durante todo o tempo que ele puxava um comunicador da cintura.

— Achei. – foi a única coisa que saiu dos seus lábios.

— Estou a caminho. – respondeu a voz do outro lado do rádio.

Puxei meu braço, tentando largar suas mãos do meu pulso, mas ele era forte demais. Nem se esforçou para me manter no lugar.

— Me deixa! – minha voz saiu fraca pela força que estava fazendo para me afastar. Nada obtive como resposta.

O seu companheiro chegou rapidamente. Era o mesmo senhor de ontem, com o mesmo olhar de compaixão que ainda não conseguia entender. O mais jovem soltou meu pulso e o senhor começou a me guiar pelos ombros para o lado oposto que havia visto Gabriel. Tentei parar nossos passos, mas o guarda mais velho era mais forte do que aparentava. Estava assustada. Tremia da cabeça aos pés.

Sem que nada interferisse, o senhor me colocou no banco de trás e o mais jovem tomou o volante. Seguimos pelas ruas enquanto eu pensava em alguma forma de me jogar do carro sem me quebrar inteira.

***

Estava em uma sala minúscula com a porta e as paredes, que davam para dentro da delegacia, de vidro. Ninguém ali me lançou repreensões, sequer notavam minha presença. Outro senhor, desta vez mais velho do que o outro que me conduziu, estava sentado confortavelmente em uma cadeira de estofado preto do outro lado da mesa cumprida que nos separava. Apoiava os cotovelos na madeira e o queixo nas mãos entrelaçadas. Parecia que enxergaria minha alma através dos óculos sem armação. Sua pele negra tinha diversas rugas pela idade avançada. A cabeça raspada deixava apenas a barba branca cobrir sua face.

— Preciso que você colabore. – pediu, com a voz rouca.

Continuei em silêncio. Já havia ignorado duas de suas perguntas. Não sei como posso sair dessa situação. Silêncio certamente não ajudará.

— Tudo bem. Vamos começar de novo. Qual o seu nome, mocinha?

Pensei outra vez se deveria permanecer em silêncio. Por fim, decidi arriscar. Meu silêncio só estava servindo para prolongar a ansiedade que estava sentindo em saber o que acontecerá comigo.

— Sophie. – murmurei olhando para baixo.

— Quantos anos você tem?

— Dezessete. – soltei sem pensar.

Minha cabeça estava a mil. Não conseguia pensar em algo específico por estar focada nas conclusões catastróficas que esta situação pode ter.

O senhor me lançou um olhar estreito e jogou a coluna de encontro ao encosto espumado da cadeira.

— Ótimo, Sophie. Pode ficar tranquila. Nada acontecerá. – agora ele tem meu olhar. Estava tão esperançosa pela sua fala que imediatamente abri os lábios para começar o relato, mas voltei a fechá-los, receosa. – Eu prometo. – disse, simplesmente.

E eu acreditei. Talvez por cansaço de mantar a situação sufocante, talvez por esperança de que nada aconteça.

— Estava saindo da escola super feliz porque minha amiga finalmente voltou a falar comigo quando um homem esquisito me agarrou pela gola e começou a me xingar falando como se me conhecesse e dizendo que faria me pagar pelo que fiz mas eu nem sabia quem ele era então fiz hora com a sua cara mas depois ele revelou uma tatuagem e...

— Respire para falar. Não consegui entender quase nada. – me interrompeu, alisando com uma das mãos a testa enrugada. – Um homem apareceu e o que? – abaixou as mãos, deixando seu rosto completamente a vista. A cicatriz em sua bochecha deixava-o assustador.

Despejei tudo novamente, em detalhes. Contei da Noite Prateada e como conheci aquele homem pela primeira vez. Não mencionei nenhum nome, deixando a presença de Leonardo em segredo. Limitei a dizer que ajudei um garoto sendo espancado no beco e, por um acaso, descobri que era o líder da Alvorecer Rubro. Por estar contando a verdade não me senti mal.

— Não posso ser presa, senhor! – afirmei, batendo as palmas das mãos na mesa e me levantando da cadeira. – Tenho uma vida inteira pela frente! – comecei a alterar a voz, deixando o desespero claro. Minhas mãos mexendo de um lado para o outro davam vida a minha fala. – Eu ainda quero ter trigêmeos e gêmeos e adotar mais dois! Quem poderá alimentar os cachorros e gatos que adotarei quando tiver uma casa? – o senhor me lançou um olhar confuso, franzindo o cenho. – Eu sei que isso nem aconteceu ainda, mas se o senhor me prender nunca acontecerá! Ai, meu deus, quem cuidará dos meus filhos? – tampei a boca com ambas as mãos, assustada. – Eu preciso estar livre para cuidar deles, senhor! Preciso estar livre para fazê-los, inclusive!

O senhor apoiou a testa nos dedos grossos e apontou para a cadeira atrás de mim. Obedeci-o, sentando novamente, sem me livrar do desespero.

— Você não pode simplesmente sair correndo da gente, Sophie. – alertou, esboçando um sorriso fraco. Parecia se divertir com a minha fala. Fiquei ainda mais aflita. – Mas, fora isso, você não fez nada de errado. Acalme-se. – jogou suas costas para trás, encostando-se a cadeira confortável. Coçou a barba esbranquiçada antes de continuar. – Então você se envolveu com a Alvorecer Rubro?

Congelei.

Acenei a cabeça, vidrada em sua face tranquila.

— Dos males, o menor. – soltou um suspiro cansado. Pendi a cabeça para o lado, confusa.

— Como assim? – perguntei, estranhando seu alívio. Desde quando gangues é um motivo de alívio para a polícia?

– Mesmo sendo uma dessas drogas de gangues de cor, pelo menos eles ajudam a frear as outras que só fazem besteira por aí. Às vezes nem nós conseguimos chegar tão fundo quanto eles pelas limitações do nosso sistema. – levou os dedos aos óculos, ajeitando-os em sua face preocupada.

Então até mesmo a polícia tem conhecimento das gangues de cor. Assim como Jô falou, eles realmente são famosos. Não deixei de demonstrar surpresa. Pensei que eles apenas brincavam pela cidade, mas até a polícia tenta pegar alguns deles. Incrível, de certa forma.

— Você é nova por aqui, não é? – concluiu o senhor, lançando-me um olhar esperto.

— Sou, sim. Por quê?

— Os nomes dos líderes são tão conhecidos quanto suas próprias cores. – e com isso deixou que eu percebesse que ele sacou a minha omissão sobre o nome do Leonardo. Que eu não sei mentir é de conhecimento público, agora que era tão mal assim realmente não fazia ideia.

Voltei a tremer de medo. Agora ele sabia que além de me envolver com uma gangue de cor e fugir de um guarda, menti para ele. Minha situação piorou ainda mais por causa de uma só fala.

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— Não vou te prender, Sophie. – declarou, simpático, ao perceber minha ansiedade. Esboçou o mesmo sorriso leve de antes.

Relaxei na cadeira, finalmente. Estava livre. Meu futuro ainda continuava brilhante a minha frente. Senti meus olhos arderem e, antes que pudesse impedir, lágrimas e mais lágrimas começaram a rolar pela minha face. Usei as costas das mãos para limpa-las.

— Que bom! – gritava aliviada, com a voz rouca pelo choro. – Que bom! Poderei ver minha família novamente! – soluçava e fungava alto, repassando todos os rostos das pessoas que havia deixado em outra cidade.

O senhor levantou-se de sua cadeira confortável e contornou a mesa, parando ao meu lado e apoiando uma das mãos em meu ombro. Não deixei de perceber o seu andar manco mesmo com a vista embaçada por tantas lágrimas.

Lentamente, caminhou até a porta de vidro e abriu-a, procurando alguém no meio da multidão que andava de um lado para outro no local apertado por abrigar tantas pessoas. Em poucos minutos, sinalizou com dois dedos para alguém, chamando-o para dentro. O senhor voltou para sua cadeira, suspirando enquanto se ajeitava. Logo reconheci a face que me fitava do outro lado da sala, ainda parado na porta de vidro.

— Entre, Oliveira. – o senhor do dia anterior fechou a porta e aproximou-se, firme. Parou ao lado da minha cadeira, recusando-se sentar. O mesmo olhar de compaixão dominava seus olhos castanhos claros.

— Sim? – iniciou com a voz baixa, claramente desconfortável com alguma coisa. Seus ombros estavam encolhidos e não parava de trocar o peso que apoiava em uma das pernas.

E então, em poucos minutos, o senhor contou à Oliveira tudo o que aconteceu. Minha tarefa era apenas confirmar a história balançando a cabeça quando o senhor solicitava. O seu alívio foi imediato, relaxou os ombros e libertou um breve suspiro que parecia preso em sua garganta. Apoiou as mãos enrugadas na testa e murmurou alguma coisa que não consegui entender, mesmo estando ao seu lado.

— Mais tranquilo? – indagou, ainda com o sorriso leve, preocupado com o companheiro.

— Com certeza, senhor Souza. – informou Oliveira, lançando-me um olhar tranquilo e sorrindo depois de checar meu estado.

— Por que está mais tranquilo? – virei-me para o lado, deixando a curiosidade vencer mais uma vez. Suas pálpebras levantando rapidamente avisaram-me da sua surpresa, o que me deu ainda mais vontade de saber.

— Oliveira apenas tinha pensado outra coisa quando viu o estado da sua blusa ontem, Sophie. – invadiu o senhor Souza ao perceber que Oliveira demorava a responder, puxando minha atenção.

A blusa de uniforme que usava ontem estava com a gola alargada, por pouco não exibia meu sutiã. Uma das mangas caia pelo braço e a outra estava puxada para cima. O seu estado combinado com a minha face cansada deve ter causado outras conclusões, a principal sendo uma suposta tentativa de estupro. Levei as mãos à boca, aterrorizada só de pensar.

— Você achou que eu... – comecei, mas não consegui concluir a pergunta só de pensar na possibilidade. Meu estômago embrulhou reagindo a situação.

Oliveira me acalmou, desculpando-se desnecessariamente pela conclusão precipitada. Afirmou também perdoar-me pela fuga de ontem e até elogiou a minha disposição e meu fôlego. Em meio a risadas nervosas, perguntou-me como consegui correr tanto em um curto período de tempo, tentando me fazer esquecer o assunto anterior, o que acabou surtindo efeito. Com o choque passado, disse em breves falas que treinava desde muito cedo na minha cidade natal. Conversamos por poucos minutos até Souza nos interromper.

– Fico feliz que tenhamos nos entendido, Sophie, – ajeitou a coluna na cadeira e alisou a barba esbranquiçada. – mas agora realmente preciso voltar ao trabalho. – mesmo estando me enxotando, seu tom esbanjava simpatia. – Pode acompanha-la até a porta, Oliveira?

Com a resposta positiva do guarda, comecei a me dirigir para porta, ansiosa para finalmente voltar para a minha vida. No curto caminho agradeci Souza por tudo, até mesmo pela cadeira confortável que permaneci o tempo inteiro, o que provocou uma risada dos dois senhores presentes.

— Espero vê-los mais vezes! – afirmei, antes de passar pela porta de vidro. – Quer dizer, em uma situação diferente, claro. – sorri e ambos me acompanharam.

Ao passarmos pela porta a voz do Souza alcançou-nos. – Mande um abraço ao Josias por mim, Sophie. – e acenou com a mão. Confirmei com a cabeça, mesmo sem conhecer nenhum Josias. Pensava em perguntar sobre a pessoa, entretanto Souza pendurou de volta o telefone na orelha. Posso pergunta-lo sobre da próxima vez.

Cruzamos o extenso balcão da frente depressa, evitando algumas pessoas. Oliveira cumprimentou a moça que estava com o telefone pendurado da orelha com um breve aceno e obteve como resposta um largo sorriso. Esbarramos em várias pessoas durante o trajeto, mas não pareceram se importar. Tive o desprazer de sentir meus pés serem pisoteados três vezes.

Depois de sobrevivermos à multidão apertada, atravessamos a porta dupla da entrada, também de vidro. Ver o céu azulado e sentir o calor infernal novamente me fez voltar a chorar pela minha liberdade. Tornei a limpar as novas lágrimas com as costas das mãos. Oliveira deu tapinhas em meu ombro ao mesmo tempo em que dava risadas reservadas do meu drama.

Desci os poucos degraus agradecendo por não ter sido forçada a ver o sol nascer quadrado daqui em diante. Saltitei e rodopiei por cada um dos degraus, comemorando por tudo ter acabado bem.

— Liberdade! – gritei, em êxtase, ao colocar os pés na calçada, finalmente deixando o domínio da delegacia.

— Sophie! – a voz masculina invadiu meus ouvidos.

Reconhecendo-a, virei minha cabeça às presas, ainda não acreditando que ele tenha vindo aqui, mesmo deixando claro diversas vezes que não se importava com o que acontecia comigo.

— Gaby! – respondi, desta vez ainda mais alegre por encontrar meu melhor amigo. Ao seu lado, com uma expressão preocupada, está Maria Luiza. – E Malu também!

Corri de encontro aos dois com os braços abertos. Pulei e agarrei o pescoço de cada um e puxei-os para perto de mim, de modo que eu ficasse entre eles. Maria Luiza retribuiu gemendo baixinho e Gabriel resmungou sobre a dor que provoquei ao pular, mas logo acabou cedendo, deixando o abraço em grupo completo.

— O que estão fazendo aqui? – indaguei ainda colada em seus corpos, rindo e chorando ao mesmo tempo, alegres por tê-los comigo.

— Nós vimos você entrando no carro deles e achamos que tinha dado merda. Você quase nos matou do coração, caralho. – o braço de Gabriel a minha volta enrijeceu.

— Estávamos tão, tão, tão preocupados. – o aperto de Maria Luiza aumentou. – O que aconteceu depois que eu fui levada?

Contra a minha vontade, desgrudei deles, a fim de explicar as loucuras que ocorrem neste curte espaço de tempo. As lágrimas não paravam de rolar. Estava extremamente emotiva por vê-los tão preocupados comigo.

Estava pronta para começar a contar quando alguém limpou a garganta um pouco mais atrás, do lado esquerdo, próximos à parede cinza da delegacia. Virei o rosto, estranhando o gesto. E, para minha total surpresa, Jô me fitava aliviado.

— É bom saber que está tudo bem com você, senhorita. – disse, aproximando-se. A ausência do tom cantarolado denunciava a preocupação recente.

— É. – completou a voz rara de Gigante, surgindo do lado do companheiro.

Os fitava confusa, sem conseguir formular uma frase para a situação.

— Vamos, você também. – Jô bateu nas costas de alguém que estava escondido atrás do seu corpo esguio.

— É, bom, é legal e tal que você esteja inteira. Ainda. – disse a figura que surgia ao lado dos companheiros totalmente envergonhado. Pedro coçava a cabeça e mantinha os olhos nos tênis.

E foi sua presença que me acordou.

— O que diabos você está fazendo aqui? – soltei, estranhando completamente suas palavras de conforto duvidosas.

— Viu, Jô? Eu tento ser gente boa, mas essa daí me tira do sério! Nem ao menos agradeceu o trabalho que tive de vir aqui. – livrou-se da postura envergonhada, dando boas-vindas as rugas costumeiras na testa enquanto reclamava para o companheiro.

— Em menos de uma semana eu era a pessoa que você mais odiava no mundo! – coloquei as mãos na cintura, ignorando a parte que cobrava meu agradecimento.

— Não seja assim, Pedro. Você veio aqui fazer uma coisa, não é? – e uma nova voz preencheu meus ouvidos. A voz com o sotaque carregado e uma leve rouquidão harmoniosa que já me era familiar.

Meu olhar em questão de segundos encontrou seus orbes castanhos escuros pouco a vista por causa da franja comprida. Os lábios finos ostentava um sorriso menor do que o comum, o que me levou a pensar se ele também estaria preocupado comigo.

— Foi mal, chefe. É que ela é uma pessoa difícil de aguentar. – coçou o pescoço, incomodado por ter tirado a paz do líder.

— Realmente. – concordou Gabriel, agora ao meu lado. Pensei em protestar, mas a voz do Pedro foi mais rápida.

— Eu queria... é... isso aí. – a sua gagueira só me fazia ainda mais curiosa. Seus olhos verdes olhavam para todo canto, menos para minha direção. – Quer dizer, por aquele dia, sabe? – juntei as sobrancelhas, confusa. – Bem, o-obrigado por me defender. – murmurou por fim, aquietando a cabeça, tornando a fitar o chão.

O meu queixo caiu. Nada saía da minha boca. Apesar do pouco tempo que conheço Pedro, sua personalidade esquentada não parecia abandonar o orgulho nunca.

— Não foi tão difícil, certo? – a voz do Leonardo quebrou o silêncio. Pedro respondeu sacudindo a cabeça.

— Fala alguma coisa! Está deixando tudo ainda mais estranho com esse olhar idiota.

Antes de processar os meus dizeres, deixei tudo escapar pela minha boca. Era coisa demais acontecendo para deixar tudo somente preso em minha cabeça agitada.

— Minha cabeça tinha muita coisa para processar. Um cara me perseguiu ontem, corri de um guarda, parei na delegacia, há poucos minutos quase enlouqueci pela possibilidade de ser presa, meus melhores amigos e interesse amoroso vieram me ver, pessoas que não sei definir também vieram e Pedro, o cara que me queria que eu desaparecesse, está se desculpando. – atropelei as palavras, ainda zonza com tanta coisa acontecendo. – E olha que eu nem fui presa. Quero saber o que fariam se eu estivesse agora atrás das grades.

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Um silêncio estranho se formou. Havia falado algo engraçado, ao menos alguém estaria acompanhando minhas risadas ou se queixando, mas nada além de mim era ouvido em nosso grupo por longos minutos.

— Certamente estaríamos voltando para casa. – a voz de Leonardo foi novamente a salvação. Um curto riso foi libertado de seus lábios.

— Não precisa ser tão frio, sabia? Poderia ter ao menos ter falado algo mais legal com toda essa emoção circulando. – voltei a rir, limpando as bochechas molhadas dos vestígios de tantas lágrimas há pouco tempo.

– O quê? Queria que invadíssemos a delegacia e a resgatasse? Sinto muito, mas isso é impossível até mesmo para nós.

— Não necessariamente. Vocês também poderiam tatuar a planta da prisão em seus corpos, assaltar um banco e deixarem serem pegos para me encontrarem do outro lado com um plano brilhante.

Leonardo juntou as sobrancelhas.

— Que ideia doida.

— Você nunca assistiu Prison Break? – constatei pela sua confusão. A série era praticamente uma relíquia.

Leonardo e eu não tínhamos muito tempo sozinho, então conversas fora do assunto da gangue era uma ocasião rara. Geralmente trocávamos poucas palavras, mas isso era agradável o suficiente. Gostaria de conhecê-lo um pouco mais, pois, antes de ser a pessoa pela qual estava apaixonada, ele era meu melhor amigo número dois, afinal.

– Espero que esse interesse amoroso que falou seja esse seu amigo laranjinha aí. – Pedro resolveu comentar alguma coisa, cortando nossa conversa amigável.

Leonardo cruzou os braços, suspirando.

— Não interfira nos rolos de ninguém, Pedro. – Jô acolheu o companheiro mais novo de modo paternal, reforçando a ideia errada.

A confusão da pessoa que era o meu interesse amoroso me incomodou. Gabriel havia dado indícios que o primo sabia da sua orientação sexual, então não fazia sentido estar desviando meus sentimentos. E, principalmente, pelo fato de já ter revelado meu interesse para ele. Mês passado, quando o salvei naquele beco, Leonardo estava me levando para casa e foi logo depois de eu recusar beija-lo. Recuso-me a acreditar que ele tenha esquecido.

— É claro que não. Estava falando de você, Leonardo. – disse, dando de ombros.

Não planejava esconder o que sentia pelo meu segundo melhor amigo. Esse nunca foi meu plano, tanto que revelei para ele assim que tive chance, há um mês.

Com as sobrancelhas juntas, Leonardo tornou a olhar em minha direção.

— O quê?

— É melhor que não me diga que esqueceu. – cruzei os braços e pendi a cabeça para o lado.

O silêncio entre nós confirmou minha suspeita.

— Mês passado. – comecei. Continuou quieto. – O beco. – o silêncio persistiu. – O dia que te salvei, Leo!

— Você estava falando sério? – a duvida genuína em sua expressão estava ao ponto de me fazer perder a calmaria.

— Óbvio que sim! – respondi, cruzando os braços.

Ótimo. Então esse tempo todo eu nem ao menos estava sendo levada a sério.

— Você não me contou isso! – invadiu Gabriel, gritando ao meu lado. Sua raiva intacta.

E, bom, havia realmente deixado o detalhe passar. As provas foram próximas da minha confissão e todos os dias fiquei presa no final das aulas com o professor Ricardo, que me ajudava a estudar história. Depois da semana de provas, quando a ficha finalmente caiu, comecei a agir como se Gabriel soubesse de tudo.

Meu amigo rugia. Tentava acalmá-lo pedindo desculpas, mas ele sempre me interrompia e começava tudo de novo.

— Você ficou brava comigo por não ter contado que éramos primos, mas, olha, você fez a mesma coisa!

— Está bem, Gabriel, eu...

— Não está nada bem!

E me deixei escutar tudo, como se estivesse levando um sermão da minha mãe. Ninguém se intrometeu na minha bronca; talvez concordassem com Gabriel, apesar da maioria ali não ter presenciado a cena. Nem Leonardo, presente em ambas, arriscou interromper o primo furioso.

Bons minutos se passaram quando Maria Luiza decidiu se aproximar de mim. Gabriel entendeu quando ela, com sua característica voz baixa, pediu uma trégua por mim.

— Vamos embora, Sophie. Já aconteceu coisa demais hoje. – Malu sussurrou próxima ao meu ouvido, pegando minha mão.

Concordei, acenando com a cabeça. O dia mal tinha começado e eu já estava exausta. Esse assunto poderia esperar, por mais que anseie em resolver tudo neste exato momento.

Estava prestes a abrir os lábios para, por fim, agradecer a presença de todos aqui e me despedir quando uma voz assustadora preencheu toda rua pela sua altura. Uma voz que conhecia de longe.

— SO-PHI-Ê. – soletrou meu nome errado de propósito. Reagi imediatamente, tremendo dos pés à cabeça.

Ao descer de um carro vermelho desconhecido e socar a porta com toda força que tinha, a figura que se transformava em uma espécie demônio quando estava com raiva marchou em minha direção com o salto alto barulhento fincando na calçada irregular.