Todas as câmeras, televisores e habitantes de Panem devem estar com as atenções voltadas para nós. Patrocinadores, segurando suas taças de conhaque, com charutos fedorentos tremendo entre os lábios, fumaça cinzenta adentrando suas narinas enormes, apostando nas suas peças, palpitando as conseqüências, atirando fortunas numa mesa de pôquer. Mags, tento imaginá-la num ambiente assim, roendo as unhas.

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O terror me invadiu de forma avassaladora. O tempo estacionou no segundo seguinte, o silêncio caiu ainda mais intenso após o estrondo do canhão. Me senti incapaz de dar um passo, esquecendo até mesmo como se respira em meio à uma situação tão dramática e assustadora.

Flutuo por dentro, num ardor crescente que sobe por minhas vias internas e faz meus olhos lacrimejarem, a boca se entreabrir, preparada para um grito ensurdecedor, mas deixando escapar apenas um soluço inaudível e sem forças.

Zen sacudia desesperadamente, com as mãos ossudas, o cadáver flácido da garota do Distrito 5 (que deve ter morrido durante a explosão), tentando inutilmente trazê-la de volta à vida, possivelmente uma antiga aliada que se foi e o deixou sozinho de novo. Ao perceber nossa presença, ele se afasta rapidamente do corpo, arrastando-se pela areia quente, pegando a mochila e tentando ficar de pé, nos encarando com a face ensangüentada.

–- Ah meu Deus... – digo entre dentes.

Seus olhos trêmulos crescem para nós, como os de uma presa cara a cara com o caçador, pedindo misericórdia, se agarrando ao último fiapo de esperança.

–- Zen...

Ele está tão diferente.

Desde que o vi matando a garota do 6, percebi que um choque de realidade o afetou, que ele cresceu em questão de horas, amadureceu à ponto de ter a frieza de matar um oponente e iniciar sua batalha com afinco para sobreviver, os Jogos Vorazes fazem isso com a gente, fez isso comigo também.

–- Finn... é você?

Arrepios me envolvem quando Zen me vê, a emoção esmaga meu coração sem piedade, e fica impossível engolir o novelo de vergonha instalado na garganta, segurar as lágrimas, interromper o tremor descontrolado das mãos. Parece que raios percorrem entre nossos olhares marejados, envergonhados e temerosos.

Finn é você? Finn é você?

–- Não acredito, encontramos o gnomo! – a voz alegre de Dan rompe as camadas de quietude. – coitadinho, está tão ferido...

–- Indefeso, sozinho... – Seth brinca e troca sorrisos maliciosos com Dan.

–- Esse jardim está pequeno demais para nós.

O ódio me atinge, fecho a mão em volta do pomo da espada, pronto para fincá-la no coração daqueles desgraçados. Ouço meus dentes rangerem e o palpitar atropelado no peito.

Dakota continua onde está, alguns passos atrás de mim, observando a cena, preparada para me impedir de fazer uma loucura, temendo os acontecimentos seguintes.

Todos percebem minha reação protetora, pegando a espada.

–- Adivinha o que vamos fazer com você? – Dan pergunta olhando atravessado para mim, insinuando um sorriso no canto dos lábios, me provocando, cavando a própria cova.

Zen deixa escapar uma lágrima quando a lâmina do machado reluz.

Irina se precipita cautelosa, pousa a mão no ombro de Dan, e troca olhares de advertência com ele.

–- Não faça isso... – a ouço sussurrar – é o amiguinho do Finnick, temos uma aliança à zelar. Deixe o garoto ir, ele morrerá de qualquer maneira.

Sua astúcia me surpreende, não é comum Carreiristas poupar vidas. Irina é calculista, e a aliança parece ter grande importância para ela também. Depois do que a vi fazer mais cedo, desconfio que tenha um plano mais ardiloso em mente.

–- Mas, é um absurdo o que está me pedindo... – Dan protesta, surpreso.

–- Dan, se matá-lo, tudo vai por água abaixo. Não vale à pena sacrificar a aliança por essa coisa insignificante.

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–- Ele é um adversário, insignificante, mas ainda assim um tributo!

–- Chega! Abaixe esse machado, ou eu pulo para o outro lado.

–- Irina, você não faria isso... Não sabe o que está fazendo.

–- Eu acho que é você quem não sabe – não adianta sussurrar, a discussão pode ser ouvida com clareza por todos nós – Aliás, você nunca sabe.

Dan respira fundo, contrariado, mas abaixa a cabeça e concorda.

Zen entreabre os lábios rachados, perplexo. Eu lhe encaro esperançoso, e quase me escapa um sorriso. Dan se vira para mim, frustrado, apesar de ter concordado com Irina em deixar Zen fugir. É a minha vez de lhe mandar um risinho maldoso.

–- Vá! Some daqui garoto! – Irina grita com Zen. – Corre garoto!

–- Corre! Antes que eu mude de idéia! – Dan aponta o dedo para o rosto dele. – Só dessa vez, moleque, só dessa vez!

O garoto caído, continua onde está.

–- Ei! Anda! Garoto, é a última vez que você me vê deixando uma caça escapar... Fuja de uma vez! – ele volta à gritar.

Zen desobedece, me deixando preocupado.

–- Eu vou te matar seu...! – Irina impede Dan de avançar.

Zen levanta lentamente e fica de pé à nossa frente, segurando as alças da mochila com a mão esquerda, coberto de ferimentos e arranhões, fitando cada um de nós com nojo. Antes de ir, endurece a boca ensangüentada e cospe na areia, com repugnância, próximo ao bico da minha bota, saliva vermelha, quase seca.

–- Me matem – o pedido soa tão verdadeiro, que quase acreditaria nele, se a centelha de esperança ainda não brilhasse em seus olhos. – Me matem!

Meu Deus! Isso é a mesma coisa que vomitar na nossa cara, na cara da Capital, dos Idealizadores, de toda Panem. O país inteiro está assistindo um tributo se entregar! Se suicidando!

Deixo meu queixo cair de descrença.

Zen está se suicidando sem quebrar nenhuma regra, a Capital deve estar se roendo por dentro agora, fico imaginando quantas pessoas ficaram boquiabertas, descrentes com atitude do aparente insignificante e inofensivo tributo do Distrito 12.

–- Por favor... acabem comigo!

O jogo vira. Irina aperta os olhos e abre um sorriso, Dan e Seth fazem o mesmo.

Fico desesperado, há mais por trás de tudo isso, alguma coisa que desconheço, porque Dakota e Zen trocam um claro olhar de cumplicidade, eu capto o movimento dela tirando algumas adagas da mochila e se adiantando perigosamente, decidida nas passadas, pronta para matar.

–- Eu faço isso – Dakota diz e seus dois olhos castanhos claros se mexem e fixam-se em mim, com uma perversidade tão assustadora, que faz meu coração pular dentro do peito, congelando cada célula do meu corpo.

–- Claro querida... – Irina concorda – já que o gnomo quer, a cara passa a ser coroa, o jogo muda de ângulo.

Satisfeitos, Dan e Seth me lançam um olhar vingativo, uma reviravolta e eles que querem sorrir agora. Da minha falta de ação, dos meus olhos verdes esmeralda arregalados e das minhas pernas desobedientes, presas ao chão, incapazes de dar uma passada.

–- Finn... – ouço Zen sussurrar, enquanto Dakota se aproxima dele, essa desgraçada! Vadia! Ela vai matar o Zen, meu único amigo no meio de todo esse lixo! – eu te perdôo...

É muito rápido, fico cego, tudo embaçado. O som do canhão e vislumbro os cachos de Dakota pairando no ar, em posição de combate. Um corpo cai, passos desesperados, metais se chocando, tudo embaça, nuvens verdes... Eu caio, levanto cegamente e começo à correr para longe dali, tentando fugir do inferno e caindo de novo atrás de uma tamareira.

Alianças, importantes, mas perigosas. Nunca confie inteiramente em alguém...

Não sabia que devia aplicar essa palavras à Dakota, Dakota, Dakota!!!

Eu fui enganado! Ela sabia que Zen era muito importante para mim, ela sabia!

Matou, matou ele... Matou!

O choro é tão profundo que dói soluçá-lo. Nem sei mais onde estou, ou quem segue atrás de mim, seguro minha barriga e me dobro contra uma tamareira, deslizando por seu caule cheio de fiapos.

O Zen morreu...

Ouço vozes e passos desesperados próximos, que ecoam, ecoam, ecoam...

Outra explosão.

Desmaio.



–---------



Treze, catorze, quinze... e está pronto.

Passei a tarde inteira vagando pela praia, procurando as conchas mais lindas. Quando as encontrei, peguei uma agulha, uma linha e demorou muito para que eu conseguisse passar o cordão por ela. Depois foi mais fácil, furei as conchas, e atravessei cada uma delas, uma após a outra, todas juntinhas, o resultado foi um belo colar de conchas.

–- O que você está fazendo, Finnick? – ouço sua voz e me apresso em esconder o colar na mochila. Quando viro vejo seus olhos azuis fixos em mim.

–- Eu, bem... eh... – gaguejo, sentindo o familiar formigar nas bochechas – estou, hum...

–- Ora, pode ficar tranqüilo, tudo bem se não quiser me dizer. – Annie diz suavemente, a voz melodiosa me confortando.

O vento fresco traz o cheiro de vida, e faz as ondas quebrarem à alguns metros dos meus pés. Vim até aqui para ficar um pouco sozinho, conversar um pouco com o mar, sussurrar desabafos sem importância, catar conchas. Mas a rara companhia de Annie é melhor que tudo isso, ouvir sua voz, sua respiração, ver seu sorriso, tudo fica em minha memória durante dias.

Ela se adianta e fica ao meu lado, mirando o horizonte.

–- Na verdade... – começo, engolindo em seco e tomando coragem – Eu fiz algo para você. – digo de uma vez, com a cabeça baixa, envergonhado.

Não quero que nossa amizade acabe porque me apaixonei por ela.

– Espero que goste.

–- Para mim? O que... – são como cristais, os olhos brilham quando vêm o colar rústico que tiro da mochila. – Eu amo conchas... – fica de frente para mim, sorridente – Você que fez?

–- Sim... – afirmo.

–- Ficou tão lindo...

–- Deixa eu colocar pra você? – pergunto, insinuando um sorriso, tímido e apaixonado.

–- Claro. – responde.

Dou dois passos para frente e nossos corpos ficam à poucos centímetros de distância. Ponho o colar com todo cuidado em volta de seu pescoço pálido e fino, depois nos encaramos, olho no olho e suspiramos.

–- Finnick... – sussurra.

–- Oi?

–- Você me ama? – a pergunta me faz empalidecer, fico sem palavras, apenas encarando-a, ambos presos na corrente entre olhares.

O mundo flutua ao redor, só existimos nós dois aqui e agora, eu e Annie.

–- Sim – revelo – eu te amo como nunca amei nenhuma garota, a minha vida inteira.

–- Então, agora que eu sei, eu posso fazer isso – sua mão macia é urgente, pega minha nuca e o beijo estala no segundo seguinte.

Mágico, eruptivo.

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Eu a abraço protetoramente, como sempre quis fazer desde o dia no mercado.

–- Me dê sua mão – peço e sinto seus dedos envolverem os meus. – Vem comigo.

Minutos depois estamos no imenso rochedo, vendo as ondas se quebrarem nas pedras logo abaixo.

–- Faremos isso juntos.

Annie concorda, meio temerosa.

–- Agora!

Corremos pela superfície acidentada da rocha e saltamos, para imensidão azul celeste.



–-----------



Meus olhos pesam ao se abrirem.

–- Ele acordou... – ouço a voz esganiçada.

–- Shiii! Fale mais baixo, pode ter alguém por perto! – os sons ecoam, tudo está sombrio, confuso, minha cabeça dói.

–- O Finn abriu os olhos, veja... – alguém pousa as mãos em meu peito e balança. Tudo dói, estou ferido em vários pontos, lembro da segunda explosão. – Finnick, você está bem?

Pisco, estou tendo alucinações, acho que estou morto...

–- Finnick? – escuto a voz aguda familiar.

–- Deixe ele em paz, Zen... – Dakota sussurra – Teremos tempo para explicar tudo depois...