Jogo de Palavras

Capítulo 2: Reticências...


O sinal atordoante do colégio anunciou o fim do intervalo. Iríamos tratar de assuntos irrelevantes do dia a dia. Provavelmente pediriam minha opinião, eu seria pressionado a movimentar minha boca e língua de acordo com um ritmo pré-determinado pelos colegas, emitindo palavras que se sabe lá com o que pareceriam. Não importa. O final seria o mesmo de sempre, eu acabaria sendo alvo de risos por ter me expressado mal e o sinal tratou de atrasar este último evento. Céus! Eu desejava beijar o aparelho que emitia o sinal com a intenção de agradecê-lo. Mesmo estando longe eu imaginei que algo poderia realizar esta tarefa por mim e sem pensar duas vezes me virei para o aparelho a alguns metros de altura. O sinal tentou me ajudar, mas eu estraguei tudo.

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-Obrigado! – gritei para o aparelho que silenciara, e esta palavra emitida de minha boca se dirigiu como um foguete pousando sobre o metal frio circular preso á parede e em seguida o beijou em alguma região difícil de descrever.

Virei-me para os colegas novamente e percebi a idiotice que havia feito quando ouvi risos dos mesmos que me olhavam assustados. O único que não ria era Ivan, pois estava preocupado analisando o que me motivou a fazer aquilo para poder ter uma idéia do que eu poderia ter visto.

-Você está agradecendo o alarme, Lucas? – indagou Carol, segurando outro riso.

-Talvez ele também esteja ansioso para a aula do professor Márcio. – as palavras maliciosas de Letícia pareciam fazer uma orgia no ar.

Como sempre eu caí no silêncio. Se eu fosse uma pessoa normal para aquelas pessoas este evento não teria sido chamativo, provavelmente achariam que eu estava tirando sarro, porém devido ao meu histórico de idiotices eram compreensíveis as piadinhas.

-Não é isso, ele simplesmente agradeceu por não ter que ouvir a sua voz estridente e a voz irritante da Carol por um bom tempo, pois assim que entrarmos na sala de aula vocês duas não poderão ficar tagarelando. – Adriano lançara um comboio de caminhões aterrorizantes contra as palavras das duas garotas. Tal comboio era semelhante a aquele do filme “Resident Evil” que se passou no deserto. Eu sabia muito bem que não havia feito isso para me proteger e sim porque ele se divertia com a destruição em massa.

-Vamos para a sala de aula. Se não iremos nos atrasar. - Ivan logo depois de tal pronunciamento, caminhou em minha direção e colocou a mão em meu ombro. – Objetos inanimados não sentem vergonha, não é? – acrescentou e logo depois passou por mim se dirigindo á sala de aula.

Ele me surpreendia, realmente levava a sério tudo aquilo. Tentou durante muito tempo descobrir a origem deste meu problema, portanto eu poderia ter certeza de que era uma pessoa confiável. Às vezes eu me assustava com as palavras dele assim como me assustei naquele momento, pois suas palavras simplesmente flutuavam no ar, inexpressivas até certo momento e logo depois assumiam aspectos incomuns rapidamente. O que significava aquilo? Como ele conseguia fazer suas palavras mudarem drasticamente com apenas uma frase? Neste caso assumiam o formato de peças de xadrez em um tabuleiro e atrás deste tabuleiro algumas letras se materializavam em um espelho e eu me via em tal espelho. Eu analisei as imagens e assim que estava prestes a compreendê-las elas desapareceram, assumindo em seguida o aspecto de um carrossel da qual estavam sobre os brinquedos algumas pessoas nuas enquanto os cavalos estavam vestidos com roupas sociais adaptadas aos corpos dos mesmos. As pessoas giravam sobre os cavalos expressando sorrisos nos rostos, enquanto outras davam gargalhadas. Logo depois do show, elas evaporavam como as outras palavras.

Com o tempo eu havia aprendido a ignorar imagens extravagantes, especialmente as das palavras de Ivan. Como eu havia prometido contar tudo que eu via para o garoto, eu não poderia deixar de contar sobre estas imagens também.

Dentro da sala, assim que a aula começou, o professor Márcio tratou de realizar a chamada. Todos respondiam o tal do “presente” que se materializava em forma de seta sobre a cabeça de cada aluno emissor da palavra. Dependendo da personalidade da pessoa ela assumia diversas formas. Digo isto, porque Ivan havia me explicado este fenômeno mais ou menos assim. Eu já havia percebido isto, mas não conseguia ter plena confiança nesta hipótese até ouvi-la do menino nerd.

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Carol havia sentado no lugar de uma aluna que faltara, este lugar se encontrava na primeira fileira. A garota estava com a intenção de avistar melhor o professor. Eu particularmente não entendia o que aquelas meninas viam nele, pois ele tinha o rosto redondo, nariz pequeno, boca pequena, um cabelo muito curto, estava um pouco acima do peso e o que era chamativo nele talvez fosse apenas o sorriso brilhante, com dentes regulares e aparentemente saudáveis. Ele tinha uma aparência comum. Nem olhos verdes que são os olhos que a maioria das pessoas consideravam como símbolo de beleza primordial ele tinha. Eram negros e brilhantes como os da Letícia. Com certeza o brilho nos olhos não era originado por um vácuo na mente como o da garota, vácuo este que facilitava a propagação de luminosidade que contribuía para o brilho nos olhos. Os olhos do professor possuíam uma característica semelhante à de suas palavras, sempre muito bem iluminadas e transmitiam vitalidade aos 38 anos.

Não conseguia entender o que fazia o professor atrair tanto as duas e mais uma porção de garotas no colégio. Havia a hipótese de que a sua simpatia sobressaia a sua aparência sem graça e talvez esta fosse a explicação do seu sucesso. Poderia ser também esta a explicação de eu não me dar bem com as pessoas, pois eu poderia ser tudo menos simpático.

Enquanto eu me perdia nos pensamentos, o professor prosseguia com sua aula de história. Com esforço procurei ceder atenção a ele, porém um bilhete sobre minha cadeira me chamou a atenção.

“Eu gostaria que você fosse a minha casa hoje, para discutirmos sobre aquele assunto, pode ser? Além disso, hoje é sexta-feira. Temos que lançar novos desafios.''

O bilhete era de Ivan. Era comum receber bilhetes como estes. Afinal, como era o meu único amigo, também era o único que eu visitava praticamente todas as tardes. Logo depois de ler o bilhete, olhei para Ivan que se encontrava na cadeira ao lado da que estava na minha frente bem no meio da sala. Por algum motivo ele gostava de se sentar no centro.

Troquei a grafite da minha lapiseira e respondi o bilhete lentamente com a intenção de observar as reações do dono das palavras misteriosas. Este quando viu o fragmento de papel sendo respondido, procurou não desviar a sua atenção da aula evitando assim qualquer manifestação do professor em relação a sua pessoa, contudo não obteve sucesso e em um dos movimentos de fraqueza devido à curiosidade que lhe dominara, foi pego por uma pergunta que o amarrou com uma corda de náilon brilhante. A pergunta era referente à aula, sendo assim Ivan se concentrou para respondê-la.

- Bom, eu acho que a Tríplice Aliança era composta pela Alemanha, Itália e deixa-me ver... – as palavras de Ivan se transformaram em morcegos raivosos que aos poucos com suas mordidas tentavam romper o náilon. – Ah sim! Também era composta pela Áustria-Hungria. – novos morcegos surgiram e junto com os anteriores conseguiram finalmente rompê-lo. – Mas o fato de a Áustria-Hungria fazer parte do bloco incomodava os italianos, devido à questão das ''cidades irredentas''– como se não fosse o suficiente, um batalhão de morcegos agora se dirigia ao encontro do professor.

-Muito bom, meus parabéns Ivan. Não podemos esquecer que a Itália uniu-se à Alemanha em represália à França, que frustrara a pretensão italiana de conquistar a Tunísia. – tais palavras ditas pelo professor de História, assumiram a forma de um míssel que ao atingir um dos mocegos explodiu violentamente incinerando os demais, fazendo-os despencar do ar até atingir o chão e logo depois começaram a se transformar em cinzas.O professor caminhou em seguida alguns passos pisando em um dos morcegos que debatia no chão. – Você me surpreende a cada pergunta. – acrescentou, enquanto o morcego dava o seu último grunhido desaparecendo em seguida junto com a manifestação das outras palavras.

Eu me divertia com o show, porém aguardei Ivan se recompor para analisar o bilhete que eu havia lhe devolvido discretamente. Após o garoto agradecer a observação do professor, se reconstou na cadeira e finalmente percebeu o fragmento de papel amassado e dobrado as pressas.Aguardou alguns instantes até o professor desviar a atenção e em seguida abriu o bilhete para espiar o conteúdo.

“Eu gostaria que você fosse a minha casa hoje, para discutirmos sobre aquele assunto, pode ser? Além disso, hoje é sexta-feira. Temos que lançar novos desafios.

Claro...chegarei no mesmo horário de sempre...desta vez preparei algumas interessantes..portanto prepara-se para enfrentá-las...’’

Assim que terminou de ler, ele escreveu mais alguma coisa no bilhete e tratou de me entregar sem se preocupar com o professor. Sorte que o mesmo não percebeu.

“Eu gostaria que você fosse a minha casa hoje, para discutirmos sobre aquele assunto, pode ser? Além disso, hoje é sexta-feira. Temos que lançar novos desafios.

Claro...chegarei no mesmo horário de sempre...desta vez preparei algumas interessantes..portanto prepara-se para enfrentá-las...

Desculpe, não poderia deixar de comentar isto. A explicação do seu hábito de escrita de sempre separar sentenças por meio de reticências, talvez seja que não concorde com a idéia de que um pensamento possa ser expresso totalmente por meio de certo número de palavras. Desta forma, você utiliza as reticências porque acredita que entre as palavras existem uma infinidade de idéias importantes não transmitidas, e também acredita que meras palavras limitadas não possuem o direito de aprisionar tais idéias e muito menos que um simples ponto tenha tal direito. Conversaremos mais sobre isso em minha casa, contudo guarde isto em sua mente, veremos as conseqüências mais adiante. Até. ‘’

Não seria apenas um hábito? Puxa vida, eu acho que eu não era o único louco daquela sala de aula. Mas a hipótese era interessante, isto eu não poderia negar. O que ele queria na verdade com isto?Ele já havia me dito que descobriria o motivo deste meu hábito idiota, mas eu não levei a sério quando disse. Eu estava para explodir, não precisava raciocinar tanto e ainda mais sobre umas insignificantes reticências.

Algumas horas depois eu estava a caminho de casa, dentro do carro de meu pai. O caminho não era longo, mas era o suficiente para iniciar uma conversa cotidiana.

-Então, como foi na escola hoje? – perguntou, e me olhou com os olhos castanhos enquanto aguardávamos o sinal vermelho se retirar da cena. Eu estava mergulhado nos pensamentos, teorizando sobre a tarde que passaria na casa de Ivan algumas horas depois. De repente, senti um cutucão e percebi que eram as palavras de meu pai que procuravam chamar a atenção.

-Sim?Disse alguma coisa? – indaguei, direcionando o olhar para a face madura com os aspectos característicos de uma idade avançada.

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Meu pai passou as mãos nos cabelos lisos negros com alguns fios grisalhos e suspirou profundamente. Sua boca ressecada se moveu mais uma vez.

-Perguntei como foi seu dia na escola. – suas palavras tinham um aspecto cansado, pude perceber com isto que sua manhã no trabalho havia lhe roubado bastante energia.

-Foi legal. Tive problemas hoje em entender algumas explicações de matemática, mas com a ajuda do Ivan acho que hoje conseguirei aprender tudo direitinho. – meu pai sabia que ele era meu único amigo, e que ele me ajudava nos exercícios que deveriam ser resolvidos em casa. – O Ivan me convidou para ir até a casa dele hoje. – eu não gostava de ser direto. Tinha problemas com atos de submissão, pois eu detestava autoridade.

-De novo? Você não foi lá ontem? – tais palavras que meu pai lançara, eram tão bem protegidas como os carros blindados do Adriano. Se eu ao menos conseguisse manifestar as palavras como Ivan, com certeza conseguiria destruí-las. O pior de tudo é que naquele momento eu resolvi arriscar.

-Você sabia que a Tríplice Aliança era composta pela Alemanha, Itália e Áustria - Hungura? – onde estavam os morcegos sanguinários? – Mas o fato de a Áustria – Hungura fazer parte do bloco incomodava os italianos, por causa das “cidades irresentas’’ – minha nossa, me arrepio de tanta vergonha de lembrar isso. Eu era péssimo em História. Minhas palavras ao invés de se transformarem em morcegos sanguinários tornaram-se moscas. Inúmeras moscas que infestaram o carro, eu me incomodei com elas e rapidamente tratei de cobrir meu rosto com as duas mãos. Meu pai me olhou com um olhar de pena, talvez achasse que eu estava envergonhado pelas minhas palavras erradas, mas não era vergonha, eu simplesmente estava protegendo meu rosto contra as moscas. Antes fosse a vergonha pelas palavras erradas, mas eu não havia percebido os erros grotescos.

Ele segurou o riso. Claro, até eu seguraria se não estivesse na minha pele naquele momento. A luz verde da esperança acendeu, mantendo-o ocupado por alguns segundos. Foi tempo suficiente para o homem de trajes sociais com sua maleta sobre o banco do carro refletir sobre suas palavras.

-Chama-se Áustria-Hungria e talvez você queira dizer “cidades irredentas”. – suas palavras acariciaram meu boné preto de detalhes prateados semelhantes aos de Adriano. Meu pai era advogado, ele não deixaria passar uns erros tão grotescos de português como aqueles. Percebi que ele se preparava para complementar sua fala, talvez com uma explicação básica sobre o contexto histórico da qual eu havia retirado tais palavras mutantes. Porém, por algum motivo desistiu da idéia. Sabe-se lá o motivo. Talvez não quisesse piorar mais as coisas.

Até aquele momento, eu não havia percebido ainda meus erros grotescos. Às vezes a ignorância é uma benção, mas somente às vezes, ou melhor, quase nunca. Deduzi que os morcegos não vieram me socorrer devido às palavras pronunciadas incorretamente. Estava preparado para arriscar mais uma vez, mas como o silêncio dominara completamente a cena, não adiantaria infestar o carro de morcegos sem haver alguma presa. Aos poucos eu entendia o motivo de eu preferir o silêncio certos momentos. O silêncio era o único dispositivo para a fuga deste mundo estranho em que eu vivia. Este mundo era guiado pelas palavras, e ele não poderia existir se não fosse por meio delas, pois o cessar das mesmas poderiam destruir tal mundo. Não posso deixar de confessar que isto me incomodava um pouco.