Invisíveis como Borboletas Azuis

Verso 32: Favorite Girl


Stella P.O.V.

— Argh! Que droga de luz é essa?! Apaga! Eu quero voltar a dormir!

— Stella, isso se chama sol. Levanta essa bunda da cama. – Bia me cutuca com o pé. – O almoço já está pronto.

— Por favor, não me diga que foi você que fez.

— Vem logo porque nós temos muita coisa para fazer hoje.

— Muita coisa? Não me lembro de ter planejado nada.

— Para de reclamar, sua velha rabugenta! – Ela ri, deixando mechas negras e alisadas pousarem sobre seu rosto.

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Ela sempre foi bonita assim? Ou é só o sol dourado sobre seus cabelos? Não ela sempre foi assim. Tão radiante que o próprio sol tem inveja. De mãos para o alto, faço tudo o que mandou.

Não costumo demorar muito com essas coisas e hoje não foi diferente. Logo já estamos prontas para sair.

— Vai desse jeito? – Bia pergunta, examinando-me de cima a baixo.

— Hã? O que tem de errado com a minha roupa? Até você vai implicar com isso agora? – Logo me ponho na defensiva.

— Ô menina insegura! Você não mudou nada – ela ri para si mesma. – O que eu quis dizer foi “você vai desse jeito sem filtro solar ou boné”? Gente, você conseguiu ficar mais branca que antes! Nem sabia que isso era possível!

— Para falar a verdade, lá na Coreia faz parte do esteriótipo de beleza e...

— Pare com essas desculpas esfarrapadas! Você saia de noite bebendo sangue ao som de Iron Maiden que eu sei!

— Nada a ver! Era AC/DC!

Rimos juntas uma risada gostosa da qual sinto falta. É tão errado sentir falta dela assim?

— Uhu! Finalmente você sorriu!

— Hã? - Sua animação me pega de surpresa, ruborizando minhas bochecas.

— Ah, você mal sabe quanto eu senti saudade desse seu sorriso! Não foi apenas durante esse tempo que você ficou na Coreia. Não te vejo sorrindo desde... Desde aquele incidente. – Percebo a inquietação em seus olhos apenas de pensar no assunto. – Bem, é melhor não falar sobre essas coisas agora.

“Por quê?” quero perguntar, mas nada sai da minha garganta. Ela quer tanto me apagar do seu passado assim?

Antes que eu possa matutar mais o pensamento, ela enterra minha cabeça no seu chapéu de palha gigante.

— Pronto! Assim você não vai derreter no sol, ou sei lá, brilhar – Bia sorri ao ajeitá-lo em mim.

— Não acha esse treco chamativo demais?

— Claro que não! Até que combina com esse look emo, trevosa, vampira, gótica suave, “visto preto até no verão do Rio de Janeiro porque tenho tendências suicidas”.

— Ei! Hoje estou até me esforçando! Estou usando uma camiseta sem manga e um short!

— Ai, que gracinha! Ela está se esforçando! – Bia finje voz de criança e aperta a minha bochecha. – Não faça essa carinha ou vai ficar assim para sempre! Menina má!

— Afinal, para onde estamos indo?

— Copacabana! Depois de tanto tempo, você deve estar com saudade das praias!

— Têm praias na Coreia também.

— Shhhhhhhh... – ela pousa seu indicador em meus lábios. - Você fica bem mais bonita calada.

Instintivamente, encolho-me toda. Quem ela pensa que é para me fazer corar desse jeito!

— Você é tão engraçada, Stella! Continua adorável do mesmo jeito!

Pegamos um ônibus até a praia. Por causa do horário e do dia da semana, não há engarrafamento quase nenhum. Não falo em voz alta, mas só agora que percebo a falta que sentia de Copabacana e suas pessoas extrovertidas.

A areia fofa queima meus pés, assim como em todas as outras vezes que vim.

— Vem para a água! Água do mar vai tirar essa energia ruim de perto de você! – Bia me chama, já com os chinelos em mão.

— Estou sem biquíni! – Grito de volta.

— Mas gente! Um ano fora e já perdeu toda a manha? Desde quando precisa de biquíni para molhar o pé? Vem logo!

Sou relutante ao entrar na água, porém Bia não desiste. Ela joga tanta água na minha direção que em pouco tempo já estou encharcada. Droga! Não consigo me rebelar contra a felicidade que paira ao redor dela. E por que eu faria isso?

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Após brincar a tarde inteira como crianças, nos sentamos à beira da calçada, esperando a água sobre nossos corpos secar. Falamos sobre o mundo e quem vive nele, sobre o universo, as estrelas, o fundo do mar, embaladas pelo balançar dos pés de Bia. Falamos de tudo, menos nós.

No entanto, alguma hora esse assunto viria. E essa hora é agora.

— Como é que foi esse tempo lá na Coreia? – Ela pergunta, mas apenas por seu tom de voz já sei que não quer ouvir a resposta.

É como se perguntasse “como está sendo a sua vida sem mim?”.

— Ah, conheci umas pessoas legais. Também conheci um pessoal na área da música que pode me ajudar.

— Sério? – Ela diz sem grande animação. – E está a fim ou namorando alguém?

Chegou a pior questão.

— Não sei. Tem um cara, mas não tenho tanta certeza assim.

— Um garoto? – Bia se surpreende genuinamente.

— Sim.

— Ah.

— E você? Já arranjou alguém aqui no Brasil?

— Não... Eu não arranjei ninguém desde que... Desde que...

Sua hesitação em falar me irrita profundamente.

— Desde que nós namoramos?! – Completo-a enfurecida. – Por que tem tanto receio em falar isso? Você tem vergonha de mim?

— Não, Stella, não é isso. – Ela esconde o rosto entre as mãos.

A sua voz, a qual perdeu a natural calma e fica entalada na garganta, me perfura o coração. Não era a minha intenção chateada... Isso dói tanto... Por que eu tenho que sempre acabar chateando os outros?!

— É que... – ela tenta continuar – Eu pensei que você não quisesse lembrar disso. Foi por causa desses meus descuidos que eu destruí a sua vida. Sou muito egoísta mesmo... Só porque nunca tinha acontecido nada comigo, não significava que não aconteceria com você. Me desculpa, desculpa...

Bia nunca chora. Nunca chora, mas hoje está chorando. Sinto meu coração se esfarelar como a areia dessa praia.

— Não é culpa sua. Eu que fui muito rude! E meus pais...

— Mas, - Bia me interrompe – apesar de eu saber disso tudo, eu não consegui não falar sobre isso. Sei que agora a sua vida já mudou, que conheceu pessoas legais, que até já gosta de alguém. E fico feliz por você. Porém todo esse tempo eu estive pensando em você. Tudo lembrava você, como eu poderia ter feito para darmos certo. Me desculpe, mas mesmo hoje eu ainda te amo muito. Nenhuma garota tem um temperamento tão chato e um jeito tão fofo quanto o seu.

Procuro palavras, mas não as tenho para responder.

— Eu não deveria dizer essas coisas, desculpe – ela continua. – Sempre sou eu a a atrapalhar a sua vida. Não quero fazer isso de novo por causa dos meus sentimentos egoístas. Você já tem toda a sua vida arrumada na Coreia com o seu avô, com os seus amigo e com... alguém que você gosta. Não tenho direito de te fazer sentir culpada pela minha tristeza. A única culpada sou eu.

— Pare já com isso! – Deixo a frustração transpassar minha voz. – Não aguento mais te ouvir pondo a culpa em si mesma. E pare de repetir que eu gosto de outra pessoa! Eu não sei, tá? Como pode isso? Por que eu não consigo me sentir calma nos braços de ninguém além dos seus? A mais errada aqui sou eu! Além de cagar toda a nossa relação por besteira, ainda meti uma terceira pessoa nessa história, dando falsas esperanças, mentindo até para mim mesma. Porque é isso o que eu sou, uma grande mentirosa! Minto tanto que quase acredito que não sinto!

— O que... O que você quer dizer com isso?

— Que eu gosto de você! Sempre gostei! Mas eu quis expulsar isso da minha vida. Achei que teria uma vida normal na Coreia se arranjasse um namorado. Estava com medo demais de voltar, de dizer que te amo. Estava com medo demais de ser feliz. Eu nunca esqueci de você, mas estava com medo dos meus pais. Eu mentia tanto para mim mesma que era aquilo o que eu queria que quase acreditei. Só que sempre faltava algo. Era estranho chamá-lo de algo além de melhor amigo porque ele não passava disso para mim. De quem realmente gosto eu não podia lembrar, afinal seria recordar o quão covarde, egoísta e mentirosa eu sou. Desde que cheguei aqui eu tenho pensado muito, sabe? Está tudo dando tão errado, tão errado... Aqui no Brasil todas as minhas mentiras evaporaram com o calor. É como se a realidade me desse um tapa na cara e, meu Zeus, como está doendo! Lá na Coreia, tentei me convencer de que valeria a pena continuar vivendo daquele jeito mesmo que me faltasse algo. Era como viver dentro de um cercado, estava segura ali dentro, mas não tinha liberdade para explorar o resto, mesmo que esse resto significasse perigos terrível. A verdade é: não posso ser eu mesma lá. Seria melhor eu arriscar a minha felicidade aqui? Ou é melhor continuar na mesmice de lá? Não são perguntas retóricas, estou perguntando porque não sei. Ainda estou pensando.

— Isso quer dizer que... ?

— Eu gosto de você. Desculpe por enrolar tanto. Você não tem ideia do esforço que faço para empurrar essas palavras para fora da minha garganta. Principalmente para uma mentirosa como eu. Mal consigo falar isso na minha cabeça, imagine em voz alta.

Penso estar chorando, mas não estou. Já chorei demais durante essa viagem. Se tem algo para chorar, não é por amar alguém. Nâo é por essa pessoa te amar de volta. Muito menos por ela estar perto. Agora, eu devo sorrir. Pouco a pouco, sei que estou me livrando dessas amarras imaginárias ciradas pela minha covardia. Agora, nesse momento, eu posso ser feliz, mesmo que por um instante.

— Posso te abraçar? - Bia me encara com um rosto perplexo.

Abraço-a antes de responder.

— E precisa pedir isso? – Percebo o soluçar de Bia assim que respondo, se afundando cada vez mais em meu abraço. – Não chore. Não fique com pena de mim. Não chore logo agora que estou começando a me acertar, começando a ser eu. Vamos ficar felizes juntas, ok?

- Eu te amo.

— Eu também te amo.

Passarmos minutos em silêncio até que os soluços de Bia se transformaram em risadas. Quero ficar assim para sempre, mas tenho muito a acertar ainda.

— Se não for abusar demais, queria pedir a sua ajuda para uma coisa.

— Pode falar. – Bia responde despreocupada.

— Quero falar com meu pai. – Percebo minha voz se alterar um pouco mas continuo mesmo assim. – Eu vou ter que voltar para a Coreia logo, não queria deixar de falar com ele, eu me sentiria muito mal se fizesse isso. Só que da última vez, não aguentei nem vê-lo. Ele está o fantasma do que costumava ser. Não sei como aguentaria conversar com ele. Eu preciso que você esteja do meu lado.

— Mas os seus pais não vão reclamar? Não vai trazer problemas? O sei pai não gosta da gente junto, não é?

— Mas eu gosto. E quero que meu pai goste de mim como sou. Não vou mentir mais, nem para mim nem para os outros.

— Eu vou sempre estar do seu lado – ela sorri com o canto da boca para mim.

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— Por favor, segure a minha mão o tempo todo! Não largue em momento nenhum, ok?

— Ok! Já está quase no horário de visitas. Vamos?

— Vamos. – Respondo com uma certeza que nunca tive antes.

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Antes de atravessar a porta espelhada, lanço um olhar de desespero para Bia. Agarota refletida na porta me impede de continuar. Ela me parece tão definhada, pálida como se estivesse doente, saudável como não queria. Preferia que tal cólera tivesse atingido a mim. Pelo menos, eu não teria um motivo tão concreto, dolorido, brutal para encará-lo. Uma desculpa tal, uma muralha que minhas mentiras não superam. No entanto, logo sinto um aperto forte em minha mão, uma presença por entre meu medo, uma esperança. Bia está aqui. Ela não vai me deixar fugir (de mim, de tudo). Corrigindo, eu não vou fugir. Não tenho do que fugir.

Empurro a porta com o peso do meu corpo. Novamente, assusto-me com o disfarce espelhado que veste esse prédio, sempre iludo-me esquecendo de sua transparência. Nem consigo acreditar que minha mãe e a minha irmã viram tudo. Bem, agora não importa mais.

Assim que passamos na frente delas, mamãe se esgoela de tantos xingamentos para nós. “Aberrações”, ”endemoniadas”, “ você não é minha filha". Meu corpo treme, mas Bia logo entrelaça o braço dela no meu. Percebo em seus olhos o quanto está determinada a atravessar o corredor e tal sentimento logo se reflete em mim. Apesar de tudo, ela sempre foi mais confiante.

Quando quase o atravessamos por completo, uma voz irrompe os gritos histéricos da minha mãe.

— Para, mãe! Nós estamos num hospital – diz uma voz que não é minha. – Deixa elas em paz!

— Até você, Isadora?

— Mãe, por que você insiste em humilhar sua própria filha? Não é assim que se resolve esse tipo de coisa! Como você pode se importar mais com o gênero da pessoa que ela namora que com o que ela fez? Só deixe ela ir logo ver o papai! Vai negar o último desejo dele por puro preconceito? A única aberração que vejo aqui é você, mãe.

— Isadora, volte já aqui! – Ela corre atrás da filha ao sair do hospital.

De alguma maneira, por mais que as broncas dela doam muito, sei que Isadora me ama. Tenho muito a me desculpar com ela, mas, apesar de tudo ela me ajuda. Isadora, como ela cresceu...

Quero desacelerar meus passos, mas Bia mantém a velocidade. Por mais que eu diga que tenho que fazer isso, não significa que estou pronta. Nem tenho tempo para executar meu plano de fuga, Bia já me empurra para dentro.

Dessa vez, ele está acordado. Seus olhos cansados tornam-se vivos ao se encontrarem com os meus. Até mesmo os cantos flácidos de sua boca se erguem num esforço visceral. Pai.....´.É , você meu pai. Todas as vezes que eu disse o contrário voltam à minha mente numa tsunami de culpa. Cá, afogada entre lágrimas estou eu. De modo letárgico, ele pronuncia com carinho cada sílaba do meu nome:

— Stella....

Corro para seu abraço sem me importar com toda a aparelhagem ligada. Sua mão afaga minhas costas suave como uma pluma, não há mais força restante em seu corpo.

— Ah, que bom que você está aqui. Pensei que iria morrer de saudades! Literalmente!

— Por favor, pai, sem piadas ruins. Guarda elas para o Natal.

— Ha ha! Você sabe que eu não vou durar tanto.

— Não diga essas coisas, por favor... – As lágrimas vêm com ainda mais intensidade.

— Ah, Bia, você está aqui também.

Um calafrio sobe a minha espinha. A última coisa que eu quero agora é um ataque de fúria do meu pai.

— Que bom que vocês duas estão aqui. Eu tenho muito o que falar para vocês. Primeiro de tudo, eu te amo, minha filha. Mais que tudo, eu quero que você seja feliz. Pena que eu só percebi isso depois de estragar sua vida. Me desculpa.

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Passamos todo o tempo de visita conversando. Por mais que no fundo eu saiba que não resta muito tempo para o meu pai, nessa curta hora eu pude sorrir bastante. Na saída, também não encontramos minha mãe.

Tudo correu tranquilo até a hora de dormir. Eu já me acomodei no chão e Bia, em sua cama. As luzes apagadas. Nenhum som perturba a tranquilidade do quarto. O sono custa a chegar para mim. Na minha cabeça, tento memorizar cada detalhe do dia de hoje para guardar como minha memória mais preciosa. Porém, a voz de Bia me assusta.

— Ainda está acordada, Stella?

— Sim.

— Você tem mesmo que voltar para a Coreia?

A pergunta que eu tanto queria esquecer. Mas, não importa o quanto eu fugisse dela, eu ainda tenho algumas coisas para resolver lá. Bia...

— Não vamos falar sobre isso agora. Hoje foi um dia bom.