Caro motorista,

Que fatídico dia, não?

Quero que saiba que penso em você. Imagino quem você foi e quem tornará a ser depois do acidente que matou a nós dois, de maneiras diferentes. Gosto de imaginar que você tem uma família, que alguém irá te abrir os braços quando chegar em casa.

Casa.

Há quanto tempo você esteve fora mesmo? Ouvi dizer que não é da cidade, que talvez seja de outro estado. Quantas horas de viagem, até que trilhasse minha vida? Não o culpo; na verdade, ninguém deveria culpá-lo, nem mesmo você. Eu é que lhe devo um pedido de desculpas; acho que nós dois somos responsáveis pelas partes, e o destino se encarregou de juntar tudo e fazer com que fosse real. De todas as pessoas que poderiam estar lá, você estava, e coincidências não acontecem – pelo menos, é o que dizem – então isso deve significar alguma coisa. Tem que significar.

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Sabe, eu não conheço você; me pergunto se você é o tipo de pessoa com quem eu me sentaria num bar, e beberia uma cerveja, no fim de semana. Pude notar que tem um terço pendurado no seu espelho retrovisor. Se tivéssemos tido esse encontro no bar, talvez você tivesse me falado sobre Deus. É assim que se escreve, né? Sempre com o d maiúsculo, pra simbolizar que ele é superior e mais poderoso que tudo. Como se Deus precisasse dos nossos códigos de linguagem para continuar mantendo seu poder. Por favor, permita-me rir! Enchemos tudo de símbolos e significados escondidos, quando Deus deveria ser simples. Talvez ele seja, e talvez eu devesse ter acredita nele. Talvez eu devesse ter feito um esforço um pouco maior.

Aquela noite, do acidente, foi simples. Foi só fechar os olhos, com a certeza de que seria a última vez. Mas você ainda vai abri-los outras tantas, que nem mesmo você pode contar. O que peço é que deixe esses dias correrem, ao invés de te corroerem; correrem como quem faz uma maratona e se orgulha. Nem adianta tentar desacelerar o tempo, ele não escuta, não vê, não sente. Ele só cura e, se não cura, anestesia. Todas as vezes em que uma memória nos atinge em cheio, na boca do estômago, e dói, é porque paramos no tempo.

Olha, o que eu tô tentando dizer, é que tá tudo bem pra mim, é que ninguém aqui tem que ficar remoendo o que aconteceu. Digo isso porque eu te vi lá, no cemitério, quando colocavam terra sobre um caixote que abriga meu corpo. Eu te vi no canto, meio escondido atrás da árvore, encarando a lápide fresca. Você não deveria carregar esse fardo, ele não é seu. É das pessoas que me conheceram e tiveram a má sorte de me amar.

E não precisa me dizer, eu sei que apesar de você não ter feito parte da minha trajetória, meu nome deve ter sido talhado na sua mente.

Minha família pode te contar uma centena de histórias, se você pedir, sobre como "ela era talentosa, bonita, engraçada" e etc. Todos vão falar sobre quem eles pensam que eu fui, mas não sobre quem eu era. Esta é a consequência de desaparecer, você não tem mais o direito de dizer às pessoas o quanto elas estão equivocadas sobre você mesmo. Já reparou que depois que a pessoa morre, ninguém parece se importar com os defeitos? É como se estivesse proibido, ou fosse uma terrível falta de etiqueta, lembrar que "a Catarina" era um pé no saco quando insistia em fazer as coisas do jeito dela, ou que "ela" nunca aceitava estar errada. A pergunta que fica é a seguinte: por que reforçam tanto os defeitos, se pretendem esquecê-los todos?

Enfim, eu não queria escrever nada disso. Era pra ser outro tipo de carta, e aqui estou. Me desculpe, eu realmente não sei o que estou fazendo. Eu queria poder lhe escrever palavras tão bonitas, que resolveriam tudo, mas eu não sei como fazer isso. É muito mais difícil partir, do que eu imaginava, mas penso que depois desta carta, não haverá motivo algum para continuar aqui. Desculpe-me o transtorno que causei. Por favor, me perdoe.

Sabe, ás vezes, eu penso que momentos antes da batida, tudo paralisou (como naquela propaganda de limite de velocidade, lembra?) e nós dois descemos dos veículos, na cena congelada, e nos olhamos nos olhos. Se você se concentrar bastante, vai poder lembrar que tentou me convencer a desviar o volante, mesmo que não evitasse o choque.

"Pense em todos os mínimos detalhes e mudanças que te colocaram no meu caminho, literalmente." Eu disse a você. "É, indubitavelmente, um milagre."

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Esta era eu, me agarrando com todas as forças às minhas certezas e crenças, com medo de voltar atrás. Com medo de desistir. Mas a resposta que saiu da sua voz ainda ecoa na minha cabeça, bem mais alto do que qualquer grito que já morou aqui.

"Se a morte é um milagre, minha amiga, a vida também é."