Ousa dizer a verdade: nunca vale a pena mentir. Um erro que precise de uma mentira, acaba por precisar de duas. – George Herbert

FERNANDO MENDIOLA

Esperei Letícia encostado no conversível. Foi uma árdua tarefa deixa-la com o engomadinho. Mas precisei ceder, principalmente quando me encarou com aqueles lindos castanhos suplicantes.

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Aquele esquisito me deixou ansioso e neurótico. Uma voz dentro de mim diz que ele é uma ameaça pra mim, mas não sei se é apenas ciúmes ou minha intuição. Ainda é estranho lidar com todos esses sentimentos.

Letícia saudou aquele cara com muito entusiasmo, mas foi o olhar de Cassiano que me deixou desconfortável. Ele sente algo por Lety e não tem nada a ver com amizade. Mesmo assim não fiz nada, eu prometi que não repetiria o que aconteceu com o Tomás Moura. Entretanto eu sentia como se fosse explodir; o engomadinho não prestava atenção em nada senão ela, ainda que eu tentasse impedir isso conversando casualmente.

Eu suspiro.

Letícia é mais desejada do que eu imaginava. Estava acomodado com isso, com o fato de ninguém querê-la. Mas está me dando mais trabalho que a Márcia.

Durante o jantar enviei todos os sinais possíveis: Letícia Padilha Solís não está disponível. Só há vaga para um homem na vida dela, e eu sou. Apenas eu. É ridículo ter que agir assim porém não posso evitar. E ele percebeu. Mas não consigo tirar da cabeça a cena dos dois sorrindo um para o outro, como se fossem cumplices. Será que Letícia se sente atraída por homens de olhos claros? Balanço a cabeça. Não. Lety só tem olhos para mim. Ela me ama e o fraco dela sou eu. Isso é óbvio, certo? Tudo bem que está distante nos últimos dias... Parece um pouco mais recatada e quieta, só que isso não significa nada. Ao menos é o que espero.

Uma loira belíssima passa por mim com um olhar sedutor que só um homem muito apaixonado resistiria, apesar de tentador. Sigo-a com a minha visão periférica até entrar no restaurante. Não tem problema olhar, não é? Se Letícia pode ficar entretida com homens como Carlos, eu posso encarar mulheres bonitas... Faço uma careta.

Me recuso a me sentir culpado, Letícia está lá dentro com aquele imbecil! Bufei pra mim mesmo.

A sensação de tortura retorna como um soco no peito. Checo o horário e resmungo sobre como as mulheres são moles quando se trata de caras de olhos claros.

Eu estava perdendo a paciência quando Lety surgiu na portaria. Parecia um pouco eufórica, porém não de um jeito muito bom. Suas bochechas estavam coradas e a cena ilusória de um homem de cabelos compridos e olhos azuis surpreendendo-a num beijo invade minha mente. Estou ficando maluco, com certeza.

Eu a observo tentando parecer impassível – e sem querer prendo meus lábios numa linha fina, recusando-me a repreendê-la, especialmente porque se manteve quieta. E... Não sou um néscio – percebi como seus olhos clarearam quando me viu.

— Entre. – Ordeno fazendo um gesto para o carro. Obedientemente ela faz o que mando. Eu cruzo os braços e acompanho-a com o olhar até que está acomodada no banco do carona.

Com um suspiro me instalo no conversível e bato a porta.

Faço um voto de silêncio esperando que assim ela se manque que estou irritado e lhe lanço olhares cheios de reprimenda. Porém eventualmente desisto. Minha raiva desmanchava pouco a pouco cada vez que eu a examinava. Havia algo de diferente na postura dela – uma neutralidade e um silêncio incomum que estava começando a me preocupar. A impressão de que os papéis de repente estão invertidos não me passa despercebido.

Droga.

Repasso os acontecimentos da nossa noite e quase bato a cabeça no volante.

É claro, como sou burro.

Olho-a de esguelha. Seu rosto está completamente virado para a estrada. Deslizo o olhar ao longo do pescoço exposto dela e espanto a insana vontade de beijá-lo. Retorno a atenção para a estrada e faço uma careta.

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Como pude ser tão desatento? É claro que está chateada com minha atitude no restaurante. E com razão. Fui muito imaturo. Contorci meu rosto. Preciso arrumar uma desculpa razoável para poder convencê-la a passar o resto da noite comigo, ou meus planos de amá-la vão por água a baixo. Como não pensei nisso antes? Que burrice. Acho que estou passando tempo demais com o Omar. Sua imbecilidade é contagiosa ao que parece.

Pensei em dizer-lhe que eu fiquei preocupado porque os meus amigos são amigos em comum da Márcia – mas não faria sentido. Primeiro porque não estávamos num encontro e segundo, Letícia estava fora da zona de suspeitos. A contradição dessa desculpa pode deixa-la ainda mais aborrecida. Apeteceu-me que talvez o certo é ser honesto. Eu já estou abarrotado de mentiras. É justo que eu seja sincero, Letícia merece isso. Que eu pare de mentir.

Eu sei que a princípio ela vai ficar um pouco chateada, mas vou compensá-la.

Furioso comigo mesmo, decido chama-la.

— Lety.

Tento me desculpar quando ela me responde, porém a indiferença na voz dela quase me deixa em pânico. “Não faz diferença”, é o que ela diz. Mas sei que faz, sim. Que deve ter doído bastante.

— Eu... fui um completo idiota. Agi como um imbecil esta noite e você não merece isso.

Ela dá de ombros e diz que entende. Neguei com a cabeça, me sentindo infeliz. É sério que ela vai agir assim? Não... Pretende me condenar? De alguma forma, sinto que isso está errado. Que eu não mereço sua condescendência.

— Não, Letícia. Não precisa ser gentil comigo, não precisa... Fingir que isso não te doeu.

Olho-a por um segundo. Seus olhos se fecham e continuo, voltando a prestar atenção no trânsito.

— Não sou digno de você, eu não te mereço. Mas não posso... Viver sem você. Será que... Você pode me perdoar?

Pego sua mão desejando sentir sua pele.

Eu sinto sua atenção em mim e espero que esteja considerando meu pedido de perdão. Eu estou tentando ser o mais sincero possível, embora ainda tenha esperanças de lhe contar a verdade, se ela me der à oportunidade de ficarmos juntos esta noite.

Porém Letícia puxa sua mão para a longe e começo a ficar em pânico.

— Não, - diz ela com uma serenidade assustadora. – Suas desculpas... Não mudam nada, seu Fernando.

Instantaneamente sinto a mágoa atravessar meu peito. Minha pulsação acelerou e eu não soube o que pensar direito. Tentando raciocinar, estacionei o carro numa esquina, porque não queria causar um acidente. Ela me pergunta alguma coisa, mas a ignoro. Desligo a ignição e me viro para ela com os olhos suplicantes.

— Vamos conversar.

Letícia me encara com um misto de raiva e espanto.

— Negativo. Me leva de volta para casa, seu Fernando.

Decido implorar.

— Letícia, por favor, precisamos conversar.

Ela para um segundo para respirar.

— Não, seu Fernando. Me. Leva. Pra. Casa.

Eu examino seu rosto, buscando qualquer indício de hesitação. Imploro novamente.

— Por favor, Lety. Por favorzinho... Só um pouquinho. – Tomei a mão dela e a enchi de beijos com esperança de que isso a amoleça. Ela tenta puxá-la, mas seguro mais firmemente.

— Está bem, está bem! Mas que droga. – Sua voz sai ríspida, mas não me importo. Ela vai me ouvir, ainda bem.

— Me desculpe, eu...

— Seu Fernando, - ela me corta com rudeza. – eu já lhe disse que não faz diferença.

— Que merda, Letícia – grito desesperado. – Será que eu posso pelo menos explicar como me sinto em relação a isso?

Sem argumentos para isso, ela consente. Sem saber como contornar a situação, as palavras na minha cabeça começam a se embaralhar. Eu não sei como expor o que de fato sinto, então, opto por explicar-me acerca do que aconteceu antes do jantar. Completamente assustado, seguro sua mão como se minha vida dependesse disso. E tento de todas as formas ser o mais sincero e amável.

E então começo a lhe explicar que senti vergonha por estar com ela. Porém, quando vejo a dor queimar seu olhar eu rapidamente mudo de estratégia, deixando bem claro que não a mereço, e imploro por seu perdão, fazendo questão de explicitar que não posso perde-la. Me enrolo um pouco com as palavras e acabo perdendo o fio da meada. O olhar que ela me lança me dá a impressão de alguém que está em chamas – corroído pela dor. Eu me sinto miserável, pois sou eu o causador do seu sofrimento.

As lágrimas inundam seu rosto e me aproximo, tomando-o com delicadeza nas mãos enquanto limpo-as.

— Por favor, Lety, não chore, me desc...

— Por que insistiu que eu fosse, então?

Lhe expliquei o porquê.

— Porque eu queria estar com você e eu senti que se você estivesse lá me daria sorte. E foi exatamente o que aconteceu.

Ela soltou um riso esquisito.

— Pois é, foi ótimo para você, mas pra mim...

Nossa. Eu quero mesmo me socar.

— Eu sei, eu sei. – eu me aproximo e a beijo rapidamente. – Por favor, não chore, me desculpe, eu errei.

Ela me empurra e grita para que eu a leve para casa, porém tento segurá-la, beijá-la, o que for preciso para que essa dor seja sanada. O que for preciso, penso comigo mesmo. No entanto um chiado sofrido escapa da boca dela e eu paraliso.

— Me leva pra casa! Agora! – grita ela.

Retorno à superfície emergindo do transe. Eu a observo por um momento, meu peito terrivelmente dolorido. Eu sou um merda. Eu mereço o pior desta vida. Sem escolhas, decido obedecer ao comando dela.

No trajeto até sua casa, um silêncio horrível e tenso permeava o ambiente. Vasculhei a mente em busca de uma forma de deprecar que releve. Se possível, eu fico de joelhos, qualquer coisa. Qualquer coisa para que me perdoe. Quando estaciono a porta de sua casa, ela salta rapidamente para fora. Eu faço o mesmo, parando-a no meio do caminho.

— Lety, por favor, seja razoável! Eu não queria que houvesse mentira entre nós, por isso lhe disse a verdade. Se eu soubesse... – acabo dizendo, desesperado, mal tendo consciência do que falo. Tenho a sensação de estar ficando maluco.

Entendi que falei bobagem no momento que a incredulidade aparece no seu rosto.

— Você está se ouvindo? – ela solta uma risada irônica. – Eu deveria saber que na sua cabeça, seu Fernando Mendiola, ao me dizer a verdade, você acha que está me fazendo um favor.

Sinto o chão se abrir aos meus pés. Eu não...

— Não, não é isso... Você entendeu errado...

— Eu entendi errado? Pelo amor de Deus, você nem cogitou pensar nos meus sentimentos! Se coloca no meu lugar, seja empático pelo menos uma vez nessa sua vida miserável.

Eu estaco, sem argumentos, porque ela está certa. Eu não considerei os seus sentimentos. Não pensei nela.

— Por favor, Lety, me desculpe, eu não quis dizer isso, amor. Eu te amo, por favor. – insisto, porém.

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— Amor? – pergunta ela, balançando a cabeça. – Você chama isso de amor? Se me amasse... – Ela para e eu estou prestes a ficar de joelhos. – Quer saber? Vá pra casa e me deixa em paz.

Quando a minha Lety entra, fico observando o nada.

Repasso o que acabou de acontecer na minha mente até entender o que de fato ocorreu.

Eu estraguei tudo.

Ergo a cabeça e avisto a janela do quarto dela. O que foi que eu fiz?

Profundamente angustiado, entro no carro e dirijo até o meu bar favorito. No trajeto resisti ao insano anseio de retornar para sua casa, gritar que sou irrevogavelmente apaixonado por ela e me rastejar no chão se possível, para que entenda isso. Mas não, preciso lhe dar um tempo. Eu a magoei profundamente – joguei sal na ferida. Sempre foi de meu conhecimento o complexo de inferioridade da Letícia e ao invés de provar-lhe que sou diferente de todos os outros, agi exatamente igual.

Nunca vou me esquecer do que transpassou no seu olhar. Como se estivesse sendo destruída em mil pedaços. Como se tivesse sido lançada no fogo.

O que eu devo fazer? Que merda!

Bato as mãos no volante e rosno pra mim mesmo.

O que eu devo fazer?

Estaciono o carro na porta do bar e jogo minhas chaves na mão do manobrista. Não lhe digo nada, simplesmente atravesso o hall da entrada.

O barman percebe que não estou para companhias quando me sento na banqueta. Com a mão no rosto, peço uma dose de uísque. Começo a pensar na minha vida e tudo que estou perdendo. O tudo é definitivamente a Letícia – embora eu ainda tenha esperanças de reverter essa situação. Especialmente porque ela tem minha cabeça nas suas mãos. Tenho que ser criativo, abrir a mente, arranjar uma forma de me redimir. Senão eu a perco. E perde-la significa não só perder a mim como também a Conceitos. Antes fosse só a minha cabeça que estivesse na jogada, porém não posso destruir tudo o que meu pai construiu ao longo dos anos. E se a Letícia se virar contra mim...

Por Deus. Como sou imbecil. Magoei a mulher que amo e tudo que penso é na Conceitos. Que terrível, mas... Embora eu esteja apaixonado por essa mulher, essa palhaçada começou quando tive a burrice de colocar minha empresa no nome dela. Senhor, o que eu faço? E se eu a perder? Que complexo. Minha mente está divergindo entre a mulher que amo e a empresa. Penso em libertá-la de tudo isso, o certo seria despedi-la de uma vez, afastá-la de mim. Mas eu sou egoísta demais – eu quero os dois. Preciso dela tanto quanto preciso do ar para respirar. E quero continuar na presidência para orgulhar o meu pai e provar ao Ariel que sou apto para o cargo – mesmo que para isso eu use meios desonestos.

Sorvo o uísque num só gole, sentindo a queimação descer pela minha garganta. Meu peito pesava dolorosamente, os olhos sofridos de Letícia não saiam da minha mente.

Empurro meu copo na direção do barman desejando mais.

Conforme o tempo passou, o fluxo do bar foi diminuindo e eu me tornei cada vez mais simpático com o Barman, que descobri se chamar Isaías. Algumas mulheres vinham e iam, tentando puxar conversa, mas as ignorei, não deixando de pensar nos olhos castanhos sofridos de minha amada.

— Isaías, - chamei ele, - você tem alguém que ama?

Ele sorri.

— Tenho.

— Como ela é? – pergunto, sorvendo mais uma de inúmeras doses de uísque.

Isaías secou um copo com um pano de prato branco e se apoiou no balcão.

— Um mulherão. Além de linda, é inteligente, boa moça... – ele parecia encantado ao recordar-se dela.

Os cantos da minha boca se alargaram.

— Eu também tenho alguém que amo, mas nós começamos da forma errada.

O barman franziu a testa.

— Que droga.

— É... – disse eu, rindo com ironia. – O pior é que estou noivo de uma outra mulher.

— Nossa, - assoviou. – Ao menos ela é uma gata, né?

— Não para os padrões convencionais, mas... Ela tem alguma coisa...

Ele assentiu.

— Você se apaixonou por ela. – declara ele. Aquiesci, bebericando o uísque novamente. – Então por que não deixa sua noiva e fica com ela?

— Porque há muita coisa em jogo.

— Tem dinheiro nisso, presumo.

Solto uma risada seca e me viro para ele.

— Você é muito perspicaz, hein?

Ele dá de ombros.

— Acredite, você não é o primeiro a passar por isso. Mas te aconselho a desmanchar esse relacionamento. Não é todo mundo que encontra um amor verdadeiro e, se você a deixar por causa de dinheiro, nunca será feliz.

Dito estas palavras, Isaías seguiu para o fim do balcão a fim de atender um outro cliente. Continuei pensando no assunto até altas horas da madrugada, me entupindo de bebida até mal lembrar do meu nome.