Inquebrável

Dezoito


Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.” — Friedrich Nietzsche

LETÍCIA PADILHA SOLIS

Omar andou em silêncio ao meu lado até estarmos a duas quadras de minha casa. Foi uma surpresa desagradável quando apareceu na minha porta, mas apesar de ter sido um perfeito cavalheiro diante de minha mãe e declarar que queria tratar algo comigo, o desconforto gerado pela presença dele no meu território me fez arrastá-lo para o mais longe possível do meu refúgio. Prometi a minha mãe silenciosamente que diria a ela do que se tratava, embora eu soubesse que não poderia cumprir esta promessa. Mais uma vez... Teria que mentir.

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Caminhamos até uma praça onde costumeiramente a quadrilha de Romeu se esgueirava. Nós paramos perto do parquinho e seu Omar se recostou na grade que o cercava. Eu cruzei meus braços, é a forma que encontro pra me manter na defensiva. Algo dentro de mim grita que devo manter minha guarda alta.

— E então, seu Omar, o que o senhor quer falar comigo?

Ele enfia as mãos nos bolsos, disparando olhares ao redor da rua. Minha mente conspira que teme por um possível assalto.

— Você mora num lugarzinho bem sinistro, hein, Lety? – Provoca retornando a atenção para mim.

Meu rosto permanece inexpressivo, imune à provocação.

— O que você quer, Omar? – não tem porque ser formal.

Omar ergueu a sobrancelha prepotentemente, e então deslizou um olhar perscrutador ao longo de meu corpo até meus pés calçados. Tentei permanecer impassível quando automaticamente fui acometida por uma sensação de desconforto. Ele deu alguns passos na minha direção até ficarmos a centímetros um do outro. Seus olhos se concentraram no meu rosto, enquanto parecia imerso nos próprios pensamentos. Meu estômago revirou de aflição, mas preciso me manter infalível se a intenção dele for me intimidar.

— O que ele viu em você? – Perguntou baixinho para si mesmo.

Juntei as sobrancelhas fazendo uma careta.

— O quê? Como assim?

Ele olhou para meus lábios e eu fiquei confusa com suas palavras a seguir.

— Quero testar uma coisa.

— V-Você está me assustando. – Gaguejei.

Ele fitou meus olhos por um longo momento. E então algo inesperado aconteceu.

Omar tomou minha boca num beijo conturbado. Minha única reação foi ficar paralisada, observando a testa dele se suavizar conforme movia seus lábios contra os meus inertes. Ele puxou minha cintura, colando o corpo contra o meu. Quando sua língua entrou na minha boca, voltei à realidade e o empurrei com força.

Omar cambaleia para trás imperturbado. Um esquisito brilho perpassou os olhos dele por um mísero segundo e então sou tomada por uma impetuosa e nefasta vontade de vomitar. Forço meu estômago a permanecer no lugar enquanto busco ar.

— O que você está fazendo? – Grito e rapidamente esfrego minha boca na manga do meu casaco.

— Eu estava te beijando, ora!

— Meu Deus, isso não pode estar acontecendo comigo. – Lamento ao cuspir no chão.

Omar agarra meus braços e me puxa contra ele.

— Não seja dramática, eu sei que você gostou.

Eu me sacudo até me desvencilhar. O rosto dele se contorce numa careta.

— Vá se ferrar, seu desgraçado! Qual é o teu problema? Você tem merda na cabeça?

Omar sequer teve a decência de parecer constrangido. Ele deu de ombros, inabalável diante de minha evidente recusa.

— Você está exagerando, Letícia. Foi só um beijo.

— Por que você fez isso?

— Porque eu quis.

Meu queixo cai e meus olhos ficam esbugalhados.

— Caceta. Eu não consigo acreditar. Foi para isso que você veio?

Omar levantou os ombros com uma expressão pensativa.

— Sim e não. Na verdade pretendia abordar você de outra maneira, mas quando notei seu desprezo... Comecei a me questionar que reação teria.

A normalidade com que verbalizou àquelas palavras me encheu de ódio. Minhas mãos formigaram e nem me atentei ao que iria fazer, mas Omar segurou meu pulso antes que eu lhe desse uma bofetada.

— Não se atreva, Lety. Não sou tão bonzinho quanto o Fernando.

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Não me intimidei diante de seu tom. Para mim, Omar não passa de um babaca, de um tremendo patife. Puxei meu pulso abruptamente.

— Some da minha frente. – Praguejo. – Desapareça.

Um sorriso perverso se abre na boca dele vagarosamente.

— Claro, Lety, eu vou. Mas queria saber por que tanta raiva, tanto desprezo...

Fiquei em silêncio.

— Hmmm... — Omar se aproximou e agarrou habilidosamente minhas duas mãos. Soltei um chiado de pânico, desesperada para fugir dele. Ele apertou meus pulsos com uma só mão e com a outra, segurou meu maxilar, seus dedos apertavam severamente minhas bochechas. Resisti ao medo que me tomou.

— Me solta! – Tentei gritar.

Ele sorriu.

— Shh, Lety, não faça um escândalo. — sussurrou. — Na verdade quero ter um acerto de contas com você, já que você é inconveniente o bastante para ouvir a conversa dos outros por trás da porta.

É impossível não ficar surpresa, mas não o respondo.

— O quanto você ouviu?

Sinto meu estomago se embrulhar. Não... Se ele souber que eu descobri, meu plano vai por agua a baixo...

— O suficiente! — retruco num murmúrio.

Omar solta meu maxilar para acariciar minha bochecha. Ele pisca pra mim.

— Pobrezinha, deve ter sido horrível descobrir que o homem pela qual está apaixonada irá casar com outra. E com certeza deve odiar o melhor amigo dele por incentivá-lo.

A expressão furiosa no meu rosto quase se desmancha de alívio. Decido entrar no jogo dele.

— Sim, eu o odeio... Ele falou pra você que eu sabia, não é? – Sussurro, torcendo meu rosto numa expressão de tristeza e dor. Embora não seja difícil.

Omar larga meus pulsos ao constatar que eu estava derrotada, mas permanece próximo.

— Eu conheço vocês, mulheres. São muito previsíveis, fáceis de ler.

Fecho os olhos e comprimo os lábios para não manifestar meu pensamento na minha expressão. Eu o acho muito burro e prepotente. Ele pode saber a respeito das outras mulheres, mas certamente não de mim.

— Olha, Lety, não vim declarar guerra... Na verdade eu queria conversar com você sobre o Fernando.

Olhei bem pra ele e assenti.

— Pois então.

— Você está torturando ele, Lety. Está acabando com os sentimentos dele ao fazer esses joguinhos. Sabe que o Fernando está cheio de responsabilidades, na verdade você concordou em estar com ele assim, mas... está dificultando tudo. Eu pensei honestamente que você o faria feliz.

Eu juro que tentei manter minha expressão neutra mas a incredulidade desmanchou minha máscara.

— Como é?

Omar suspira.

— Lety, o Fernando achou em você o refúgio, o conforto dele, mas agora está tornando a vida dele num inferno. Você não percebe que está o magoando? — Ele se aproxima ainda mais e ficamos tão perto que se eu me mexer um centímetro meu rosto se choca com o dele. Omar fixou o olhar na minha boca por um momento, de novo, e eu prendi a respiração. Meus dedos ficaram dormentes. Diante do meu evidente pânico, um sorriso malicioso se formou na boca dele. — Ele tem trabalhado desde muito jovem para conseguir o cargo de presidente, e está disposto a muito para realizar o sonho dele, mas você está atrapalhando tudo com essa sua atitude, pressionando ele desta maneira. Que espécie de amor é esse?

Dou um passo para trás, mas quase me desiquilibro, completamente afetada. Meu coração sangra. Ele está tentando me manipular, me colocar como culpada. Que canalha.

— Não entendo. — sussurro.

Ele suspira.

— Fernando deve ter contado que Ariel quer desfazer a sociedade com a Conceitos. Acho que você sabe o que isso significa.

— Sim. Eles descobririam o embargo. Mas o que isso tem a ver...?

Omar suspirou profundamente, como se eu fosse uma completa idiota. Apertei os punhos.

— Fernando acha que Humberto vai impedir Ariel de fazer essa tolice, o que de fato pode ocorrer. Mas se ele terminar o casamento com a Márcia, estaremos arruinados. Nem mesmo Humberto poderá convencer o loirinho bisonho de continuar com a sociedade.

Absorvo as palavras dele, e nego com a cabeça.

— Mas está na clausura do contrato que não podem desfazer a não ser que algum dos acionistas decida comprar sua parte da empresa.

— Como você sabe disso? – Pergunta Omar, a testa torcida.

Dou de ombros.

— Eu sei de muita coisa.

Ele expira e gesticula no ar.

— De qualquer maneira, Ariel pode acionar algum advogado para burlar isso. E então, o que acontece?

Fico muda.

— Nós vamos pra cadeia, Lety. Mas isso não é o pior... Vai arruinar o Fernando, arruinar a vida dele.

Não acredito. Isso está mesmo acontecendo? Ele está tentando me chantagear emocionalmente.

Abaixo o rosto e olho para os meus pés. Minha cabeça começou a embaralhar e isso é muito desorientador.

— Você quer que eu continue sendo apenas amante do seu Fernando, é isso? Que continue me submetendo a ele enquanto se casa com a dona Márcia?

Escuto Omar suspirar novamente. Por fim, ele responde:

— Sim, é basicamente isso.

Eu esguichei uma espécie de arquejo. Por um momento, sou tomada por um insano e intenso desejo de praguejar toda porcaria de raiva que tenho por eles. Aperto os punhos e inspiro profundamente.

— O que eu ganho com isso? Vou apenas sofrer. – questiono.

— Você quis ficar com ele sabendo disso, Lety. – declara ele e infelizmente o cretino tem razão. – Você aceitou ser a outra, por que está tão resistente com isso agora? O que mais quer? Dinheiro? Se for isso, você sabe que o Fernando não vai hesitar em te dar tudo que puder. Uma viagem para qualquer lugar do país, um salário mensal para viver como bem entender... Pode até usar esse salário para fazer plásticas, você precisa.

O baque que as palavras dele causam em mim é desesperadora. Então, o plano de me enviar para longe continua de pé.

— Seu Fernando sabe que você... que você veio aqui?

Ele analisa meu rosto.

— Não sabe. É por isso que estou aqui.

Eu não acredito.

— Isso tudo porém não explica uma coisa...

Os olhos de Omar brilham.

— É mesmo? O quê?

— Por que diabos me beijou?

— Curiosidade, — respondeu simplesmente, dando de ombros. — estava curioso para saber como era o gosto de uma mulher exótica como você. Agora entendo porque você conseguiu fazê-lo se apaixonar por você... Fascinante.

Meu peito arde de ódio, porém não consigo dizer nada. Estou incrédula demais. Ele sorriu.

— Bom, espero que você pense no que eu falei e pare de agir com egoísmo. — ele fez menção de tocar meu rosto mas me afastei. — De qualquer maneira se você quiser um homem que a faça companhia quando o Fernando estiver com a Márcia, pode me procurar. Será um prazer entretê-la, monstrinha.

— Prefiro morrer. — sibilo. Omar solta uma risadinha e parte.

Observo-o desaparecer ao virar esquina trêmula dos pés a cabeça.

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Que merda acabou de acontecer aqui?

Volto para casa sem acreditar, mas cada vez mais obstinada a ferrar com eles.

Quando mamãe abre a porta pra mim e vê meu rosto, sei que ela sabe que algo muito ruim aconteceu. Mas quando lhe digo que preciso ficar sozinha, ela permite sem relutar. Sigo para o meu quarto, para o lugar onde encontro refúgio.

Olho para a pintura feita por mim na parede. Ao trancar a porta, mal consigo me conter antes de desabar. Arrasto meu corpo pesado até beira da cama e meus joelhos cedem, batendo no tapete num estampido. Estou exausta e a mórbida sensação de devastação e vazio me invade ao mesmo tempo. Desta vez não consigo derramar uma lágrima.

Fecho as pálpebras e repasso os acontecimentos do dia.

Muitas emoções de uma vez só. Estou sendo esmagada, mas preciso resistir até o fim. Ainda que eu seja moída em pedacinhos a cada dia.

Penso no Fernando e no Omar. Esse cara é realmente muito imbecil. Ele é tão altivo, tão confiante de si mesmo, que nem considera que descobri a verdade. Acha que meu problema é o casamento do Fernando com a Márcia.

Quero sorrir por isso, quero sorrir por eles serem estúpidos. Mas tudo que sinto é vazio.

Mas esse é meu destino. É meu destino sofrer.

Não faz diferença.

Omar Carvajal, você não perde por esperar.

Você e Fernando Mendiola estão nas minhas mãos.