Infinite

Súplica


Acho que nunca entendi direito minha relação com Marck Soltier.

Nós nos conhecemos no laboratório de Christina Mendez lá nos Estados Unidos. Tínhamos uma coisa em comum: A paixão pela ciência e pela natureza, especialmente as plantas. Afinal, esses eram requisitos básicos para estar naquele laboratório, então não deveríamos ficar especialmente surpresos com ninguém. A não ser que essa pessoa fosse completamente apaixonada pelas plantas, como era o meu caso, ou extremamente inteligente, como Marck. Eu sempre me achei uma pessoa inteligente, e não acho que eu não seja. Mas Marck? Um gênio. Ele inventava coisas absurdamente inteligentes, práticas, úteis, bonitas, enfim… Ao menos um grande adjetivo deveria ser atribuido. Eu e Marck sempre fomos considerados a dupla perfeita do laboratório. Mas, na verdade, as coisas não eram perfeitas assim.

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Apesar disso tudo, eu e Marck nunca nos falamos direito. Dificilmente nos juntávamos para alguma coisa. Raramente trocávamos mais do que “bom dia”. Pois é, embora todos no laboratório, inclusive nós dois e a própria Christina, soubessem que os dois grandes prodígios de lá eram a dupla perfeita, essa dupla perfeita não era de verdade. Era só uma suposição. Por que não passava disso? Não sei, só nunca deu certo. Toda vez que sugeriam isso pra mim, eu desconsiderava. Nunca imaginei realmente que eu pudesse ser dupla de Marck ou ter alguma relação mais profunda do que dividir o mesmo laboratório. Mas, agora que estou olhando para ele, um infinite âmbar à beira da morte, ele não parece ter para comigo a mesma indiferença.

Marck indica um lugar no chão ao seu lado para que eu sente, e assim o faço, pois temos muito o que conversar.

– Marck, como...

– Ssshhh... Calma. Eu sei que há muitas dúvidas. Mas também há tempo de sobra. Melhor seguirmos a história em ordem cronológica, não acha? - Aceno positivamente. A voz de Marck é baixa, apesar de clara e serena. As forças dele estão começando a se esvair. Marck começa a contar tudo, a responder todas as perguntas que eu tenho feito a mim mesma sobre ele. – Começando do começo. O começo do que você não sabe. Eu sei que você nunca deu muita importância pra mim. Mas eu sempre te admirei. Sempre soube que você era especial, só não sabia que seria tanto assim. A primeira infinite – Marck ri como se fosse uma velha lembrança. Ops, é uma velha lembrança. – Mas essa não é a parte importante. O que importa é que, a partir do momento que você se tornou notavelmente especial para o laboratório, eu soube que as coisas dariam errado. Quando você foi divulgada e aquele rebuliço foi gerado, eu entendi. As pessoas nunca iriam aceitar o que havíamos feito. E as coisas só piorariam com o passar do tempo. Então, me preparei para isso. E a primeira coisa que fiz foi aprimorá-la. Tinham trancado você naquela cápsula que eu ajudei a projetar. Não permitiam que ninguém fosse até a estufa, só com uma autorização prévia de Christina. Mas eu ia. Às vezes, eu ia simplesmente para observá-la em seu sono. Outras vezes, eu ia testar experimentos. Por várias vezes abri a cápsula para fazer eles darem certo. Chegou o dia em que eu soube que havia funcionado, o resultado de um conjunto de experiências, testes e outras coisas. Depois disso, eu abri a cápsula e deixei aquela foto. Uma foto minha, para que você se lembrasse quando acordasse.

– Marck... O que exatamente você queria fazer para me aprimorar?

– Simplesmente deixar você ainda mais parecida com as plantas, e menos parecida com os humanos. Você sabe, as plantas sentem a natureza...

– Sendo ameaçada a uma parede de distância.

– Exatamente. É um poder incrível que os humanos não têm. Os infinites, também não. Mas eu fiz com que você se tornasse à primeira e única infinite a ter. Eu não te escolhi simplesmente porque você estava adormecida à minha disposição. Eu nunca quis me aproveitar de você. Mas eu te conhecia bem o suficiente para saber que você concordaria.

– Tudo pela ciência – digo, emocionada.

– É, você sempre dizia isso. Foi o que disse quando se voluntariou. E, além disso, você sempre foi a garota especial. Eu sabia que você estava destinada a grandes coisas, mesmo antes de você se voluntariar e tudo o mais. Bom, o que eu fiz nos experimentos foi, a grosso modo, pegar a capacidade de comunicação e detecção das plantas, e transmitir isso a você. Não foi nada fácil, eu demorei anos para conseguir. Mas consegui. Mas, nesse meio tempo, o soro continuava a dar errado. O soro que transformou você foi mudado várias e várias vezes. Estudado, testado, aprimorado, mas continuava matando as cobaias. O último que deu errado foi um baque. Todos no laboratório já estavam frustrados, tentando entender o que você tinha de especial. Foi divulgado que Christina Mendez morreu de morte natural, ela já estava um tanto envelhecida na época. Mas ela não morreu de morte natural.

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– Ela testou o soro. O último que deu errado.

– Isso. Ela morreu como todos os outros.

– Sempre sinto vontade de culpar Christina Mendez por tudo, mas não consigo. Não sei por que, é como um instinto.

– Ela realmente foi a grande causadora disso tudo. Cometeu erros, e morreu tentando consertá-los. Ela não queria você naquela cápsula, mas foi preciso. Foi a única saída que ela encontrou. Ela estava te protegendo.

– Eu estou viva por causa dela, não é?

– Sim. Mas a morte dela foi uma motivação para todos nós. Eu peguei os estudos que ela deixou, e consegui entender as coisas, até porque eu tinha te estudado para fazer os experimentos. Era uma coisa simples. Passamos o tempo todo nos perguntando o que você tinha e nós não. Mas a situação era inversa. Você não tinha um sistema imunológico completo. Seu sistema incompleto não tinha os anticorpos que bloqueavam o soro.

– Então todas aquelas pessoas morreram por serem perfeitas, ao contrário de mim. Elas foram mortas por elas mesmas. Por sua perfeição.

– Isso. É por isso que, hoje, o soro é feito em duas etapas. Primeiro, um soro que modificamos. Ele é compatível com os anticorpos, mas quando se une a eles, os mata. A reação não provoca nenhum efeito colateral. Só depois, aplicamos o soro comum. Foi assim que todos no laboratório se tornaram infinites. Divulgamos isso, e transformamos seus pais, e um outro casal...

– Seiji e Kori Hime. A partir daí eu sei. A invasão, as execuções.

– Sim, mas vamos voltar. Um detalhe ficou para trás. Eu consegui o novo soro, o soro duplo. E, quando eu fiz isso e me transformei, parti para a próxima etapa. Uma espécie de kit de primeiros socorros para infinites. Eu comecei um experimento para conseguir criar isto. – Marck me mostra o cubo brilhante.

– O que é?

– Um filhote de sol. Eu fiz uma estrutura toda espelhada, com várias pequenas peças, parecido com um prisma invertido. Com uma sequência de lupa, concentrei a luz do sol em um feixe e projetei na estrutura, que criou uma luz e uma energia tão forte que uma partícula de sol se formou. Eu a encapsulei nesse vidro especial. O primeiro item estava pronto. O segundo foi o ar. Amy, uma grande diferença entre plantas e infinites que você talvez não conheça é a troca gasosa. Fazemos a mesma troca que os humanos, então eu só precisaria de uma “máquina” que fizesse o processo inverso.

– Uma planta.

– Ali está ela – Marck aponta. A planta é uma roseira, que está plantada... Dentro de um infinite morto? Marck percebe minha expressão de dúvida. – Pois é, minha querida. O terceiro item era terra fértil. O quarto, água. Eu não tive tempo de produzir, mas não precise. Esses corpos possuem isso em abundância. Isso seria mais ou menos como um canibalismo entre humanos, mas sabemos que as plantas são diferentes. Folhas e cascas de fruta são excelentes adubos para qualquer planta, por causa dos nutrientes. Então, eu sobrevivi a partir deles. E desse cubo de luz solar. Mas, agora estou morrendo. Bom, já faz um tempo. Mas... O oxigênio dessa planta não está mais atendendo à demanda. Felizmente, vou morrer só disso mesmo.

– Não! Você vai aguentar. Eu vou tirar a gente daqui.

– Você pode fazer isso, querida. Eu não. Mas você? Você tem o poder das plantas. Lembre-se que elas têm o mesmo poder que você. Elas sentem a natureza ameaçada a uma parede de distância. Você é parte da natureza, Amy. E está sendo ameaçada.

Respiro ofegantemente. Essa é a minha chance.

– É verdade – o som mal sai da minha boca. – Eu posso fazer isso. Posso pedir ajuda a elas. Mas elas... Atenderão?

– Se convencê-las.

Me coloco de pé. Eu sou a minha própria chance de sobreviver. Ergo os braços, e começo a gritar.

– Oh, plantas de toda a Terra! Seres grandiosos e majestosos! Antiga herança da natureza! Sintam minhas lágrimas! Ouçam meu choro! Eu preciso da sua intervenção! Oh, plantas, de pequenas sementes a grandes árvores! Eu conheço suas habilidades! Eu sei de suas capacidades! Entendo seu sentimento! Vocês são o que há de mais precioso nesse mundo! Vocês sentem a aflição da natureza quando ela chora por seus filhos em perigo! Oh, plantas, desde seu surgimento no mundo vocês cumprem o papel que lhe foi designado! Nunca questionaram os motivos de seu destino, apenas o realizam! Fizeram isso perfeitamente desde o início até agora. Os animais, eles também fizeram! Plantas e animais nunca negaram suas origens! Até que os humanos chegaram, e decidiram questionar. Decidiram desobedecer! Por conta própria, mudaram as regras. Se viram donos do mundo, passaram a pensar que o universo girava em torno deles! Mas a natureza é um lugar de iguais, onde cada um tem seus direitos e deveres. Os humanos abusaram de seus direitos! Esqueceram-se de seus deveres! Maltrataram cada parte da natureza em troca de fama e dinheiro! Oh, plantas, os humanos chamam a si mesmos de seres racionais! Mas eles destroem aquilo que a única coisa de que eles precisam: a natureza! Eles poluem, matam, destroem, por motivos míseros! Na natureza nunca houve distinção entre seres da mesma espécie. Mas os humanos distinguiram a si mesmos! Criaram o preconceito, e passaram a humilhar seu iguais! Plantas, esses são os seres racionais? Seres que não entendem seu lugar no mundo, não entendem o conceito de respeito! Mas vocês, plantas, aguentaram caladas. Continuaram obedecendo, sem questionar o motivo de tanto sofrimento e destruição! Prosseguiram com seu destino, e seu único propósito: ser útil à natureza! Vocês nunca se revoltaram, nunca moveram um galho sequer. Apenas aceitaram tudo o que lhes foi imposto. E eu digo, plantas, que os humanos não são os seres racionais! Não são os seres inteligentes! Vocês, plantas, antigas, grandiosas, majestosas, são as rainhas da natureza, os seres mais inteligentes e admiráveis do mundo! Vocês sentem a natureza ameaçada a uma parede de distância! Mas eu... Plantas, eu também sinto. Eu, os humanos, os infinites, somos parte da natureza. E a guerra corre lá fora. Os humanos estão caindo pelos seus erros, pelo ódio em seu coração. E eu, estou caindo pela pureza, pela vontade de tentar ajudar. Eu senti a natureza ameaçada naquele garotinho. Plantas, vocês sempre sentiram, mas nunca puderam interferir. Eu sinto, e eu posso interferir, e quando fiz isso, me prenderam, e agora, ameaçam minha integridade. Ah, plantas, eu suplico! Vocês aguentaram o ódio humano por tantos milênios! Eles têm todos os seus defeitos, mas são parte da natureza! Os infinites também não são perfeitos, e estão matando a natureza! Acham que têm esse direito! Plantas, sabemos que, mesmo com tantos erros, a natureza estará incompleta sem os humanos. Essa matança tem que acabar! Eu tenho que ajudar! Eu posso fazer com que me ouçam! Mas antes de ajuda-los... – As lágrimas caem, e eu também. Me prostro de joelhos. – Eu preciso de ajuda! Plantas, eu estou aqui, eu meio aos meus companheiros infinites, em meio à natureza morta, que se foi sem que desse falta! Estou cercada por essas paredes, e me sinto enraizada! Impotente! Sinto a destruição, mas não posso impedir, não posso sair! Apenas eu e o meu casulo... Plantas, me libertem! Vocês esperaram por tanto tempo, aguentaram muito tempo, mas chegou a hora de intervir! Chegou a hora de mostrar aos humanos o que vocês sentem, e o que podem fazer! Plantas de todo o mundo, eu suplico, intervenham por mim!

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Caio completamente no chão, com a cabeça sobre Marck. Eu estou envolvida em minhas próprias palavras. Tudo o que eu disse é a mais pura sinceridade. Marck Soltier acaricia meu cabelo, me consolando.

– Muito bem – diz ele. – Você foi bem, Amy.

– E agora? - Sussurro.

– Agora, temos que esperar a natureza agir.

– Você acha que vai demorar?

– Você tem que me dizer. As plantas sentiram seu apelo?

Tento encontra-las. Ao longe, encontro grandes árvores japonesas de milhares de anos. Sinto suas raízes se mexerem sob a terra. É algo incrível e inimaginável.

– Sim – digo, quase sem reação. – Sentiram.

– Então esperemos, minha infinite. Chegou a hora da intervenção.