Antes do inverno chegar, Sara tinha outro problema para resolver: descobrir o que era aquele barulho sinistro que estava a duas casas de distância da sua.

Por mais que ela tentasse reunir todas as suas forças para finalmente resolver esse problema, por dentro Sara sabia que estava morrendo de medo, quase petrificada. Mas se não fosse ela a resolver esse problema, quem mais seria?

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Não havia ninguém.

Sendo assim, ela precisou agir.

Numa tarde no meio do outono Sara já tinha pensado em tudo.

Ela precisava, primeiramente, estar fisicamente protegida de qualquer ameaça que pudesse estar escondida naquela casa. Protegeu o corpo todo: a cabeça cobriu com um gorro, no pescoço usou um cachecol, roupas de frio grossas protegiam seu corpo e botas de cano médio envolviam seus pés. Nas mãos a mulher usou finas luvas (pois se fossem grossas ela não conseguiria escalar), e por fim achou que estava pronta.

Olhou-se no espelho e notou um detalhe preocupante. Um ponto importante de seu corpo ainda estava exposto: seus pulsos – uma presa fácil para zumbis. Dentro de casa, Sara andou em círculos em silêncio, tentando encontrar uma solução. Precisava ser algo que a permitisse lutar e se locomover, e não que a prendesse e a impossibilitasse de agir. Foi então que uma ideia louca veio na cabeça de Sara: fita adesiva.

A mulher correu pela casa à procura do objeto que agora havia se tornado precioso. Olhou no fundo de casa, na cozinha, na sala e não encontrou... Demorou cerca de 20 minutos para Sara enfim se lembrar de que a fita estava no cômodo que ela usava como ateliê de trabalho. Caminhou até o lugar e foi certeiro: lá estava a fita adesiva em cima da escrivaninha.

Sara não perdeu mais tempo, enrolou completamente seus pulsos e um pouco mais acima. Quando terminou, tentou mexer os braços e viu que tudo estava nos conformes. Mesmo que o outono nessa cidade fosse frio comparado ao restante do país, o gorro e o cachecol já estavam fazendo Sara ficar com calor – e se sentir sufocada. Ela nunca gostara muito de roupas com gola alta, que cobriam o pescoço, porque se sentia presa e com dificuldade para respirar. Talvez fosse psicológico; talvez não. Mas aquele agora era outro mundo, e Sara precisava dessas roupas, que agora haviam se transformado em sua armadura de batalha.

Pois bem, já vestida e pronta para partir, Sara levou consigo duas facas de cozinha e seu canivete. Dois nos bolsos da frente do casaco e dois escondidos atrás da panturrilha.

Pegou a escada e a corda e posicionou tudo como fez anteriormente. Desceu até a primeira casa sem problemas. Em seguida, puxou a corda, pois tinha decidido escalar até a casa seguinte caso não encontrasse uma escada.

Enquanto avançava pelo quintal deserto da primeira casa, o suor já escorria pelo seu rosto e seu coração batia acelerado e amedrontado. Todavia, Sara não iria desistir, não iria voltar atrás, afinal. Ela resolveria aquele problema de uma vez por todas.

Como imaginou, não achou nenhuma escada na casa da família Monteiro. Então, preparou a corda para começar a escalada.

A mulher fez tudo o mais silencioso que pôde. Não queria atrair o que quer que fosse enquanto ainda não estivesse no chão em posição, pronta para atacar e se defender daquilo que viesse ao seu encontro. Por isso, ela escolheu um canto do muro bem próximo ao telhado do quintal, pois assim teria uma visão do fundo da outra casa e poderia analisar melhor suas opções.

A escalada pelo muro foi fácil; o telhado, no entanto, que estava bem escorregadio. Sara teve dificuldades para subir até ali em cima, suas mãos sempre escorregando e tendo dificuldades de se prender ao telhado. Demorou, mas ela por fim conseguiu.

Sentou ali no telhado, ofegante e enxugando o suor que escorria pela testa. A mulher observou a casa ao lado e estudou cada canto. Tudo, surpreendentemente, estava na mais completa paz. Aquilo era um bom sinal? Sara não soube responder.

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Chegou a hora dela finalmente descer. Preparou a sua corda, fixando o gancho num lugar bem posicionado do telhado e começou a descida. Em instantes, ela já havia alcançado o chão. Segurou uma faca com uma das mãos e outra já deixou posicionada na cintura.

Aquele era, sim, o dia do Caçador.

Sara perambulou por todo o quintal e não encontrou nada, nem ninguém. Por um momento, começou a achar que tinha ouvido coisas naquele outro dia. Mas ainda não era hora de voltar para casa. Alguma coisa estava ali, seu instinto sabia disso.

Foi na direção da garagem e nada também. Dirigiu-se para a entrada da casa e a porta estava entreaberta.

Sim, realmente tinha algo escondido ali.

Com cuidado, ela colocou a mão na maçaneta e empurrou a porta. Foi nesse instante que algo agarrou a manga de sua blusa e puxou Sara em sua direção.

Um grito gutural saiu da garganta da mulher e ela puxou seu braço de volta, perdendo o equilíbrio e caindo rapidamente para trás. No mesmo instante a criatura saiu, rastejante e com as mãos esticadas em sua direção. Atrás dela, algo estava vindo também.

Todo o corpo de Sara perdeu as forças quando o cheiro de podridão que emanava daqueles mortos-vivos chegou a suas narinas, toda a sua coragem se esvaiu quando ela se viu ali caída no chão, em desvantagem diante dos dois zumbis putrefatos.

Algo, no entanto, era diferente naqueles mortos-vivos. Estavam os dois completamente esqueléticos, com tufos ralos de cabelos brancos e – o detalhe mais importante –, eram ambos banguelas. A ficha de Sara caiu no mesmo instante.

Dois idosos viviam naquela casa, dois seres inofensivos que não tiveram chance ou coragem para fugir da cidade. E esqueléticos como estavam, devem ter morrido de fome e depois se transformado em zumbis.

Sara conseguiu se por de pé e caminhar alguns passos para trás, afastando-se das mãos daquele primeiro zumbi que vestia trapos masculinos e tentava a alcançar. Foi então que Sara teve um estalo. Com horror, ela finalmente entendeu tudo.

— Não, não, não, não... – Sara começou a murmurar em voz alta, quando a primeira lágrima escorreu pelo seu rosto – Não pode ser.

O zumbi banguela, esquelético e frágil, estava a centímetros de distância de Sara. Porém, sem dentes, ele era inofensivo.

Sara tentou engolir o choro e mirou a primeira faca na cabeça do zumbi idoso. Lágrimas grossas escorreram pelo seu rosto quando a lâmina afiada perfurou com facilidade o crânio do morto-vivo, fazendo-o desabar aos pés da mulher um segundo depois. Então, Sara caminhou até o outro zumbi, aquela que fora a idosa amorosa de tempos atrás, que acenava para todos e distribuía doces para as crianças da rua.

— Me desculpe, Janine – Sara disse, as mãos agora trêmulas e os joelhos temendo em falhar.

Com as duas mãos, posicionou a faca na frente de seu rosto, fechou os olhos e esperou. Ela não teve coragem de olhar quando a faca atingiu, em cheio, a testa de Janine e o zumbi caiu morto no chão, em cima do corpo daquele que um dia fora seu amado marido.

Depois disso, Sara não conseguiu. Não dava mais para suportar.

Seus joelhos cederam e ela caiu no chão, soluçando e incapaz de conter a cascada de lágrimas que agora saía de seus olhos. Todo o corpo de Sara tremia e ela estava em choque.

Naquele dia, quando ela ouviu o perturbador barulho, deviam ser os dois velhinhos, famintos e completamente fracos, correndo com todas as suas forças em direção até o quintal, atrás daquele que pudesse ser o seu salvador. Precisavam de comida, de alguém em quem pudessem contar. No entanto, não tiveram nada disso; todas as suas esperanças se esvaíram quando Sara saiu em disparada, fugindo deles e voltando para o refúgio que era a sua casa.

Foram mortos por causa de Sara.

Morreram de fome. Antes de se transformarem em zumbis, antes de virarem esses dois seres deploráveis que voltavam à vida outra vez, eles confiaram que haveria uma ajuda, uma última esperança. No entanto, não tiveram nada disso.

Por entre as lágrimas e ainda caída no chão, Sara abriu os olhos e encarou aqueles dois corpos inertes a sua frente. Suas mãos estavam cobertas de sangue, do sangue deles. Naquele instante, algo dentro dela se quebrou para sempre. Aos olhos de Sara, não havia perdão para aquilo que era tinha feito com eles.