I'm sorry

Matar ou morrer


ᨖ Asuna ᨖ

Passei dois dias (na vida real) explorando esta floresta traiçoeira. Inclusive, descobri que seu nome era Δυτικό δάσος (pronuncia-se Dytikó dásos) e que, traduzido do grego, literalmente significava-se floresta traiçoeira. Lembro que quando descobri seu nome, agradeci mentalmente pelas aulas de grego que fiz.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Tenho quase certeza que explorei cada canto e árvore nela e não tem mais nada a ser encontrado. O único item que este local me dera foi quando encontrei em meio ao topo de uma das árvores baixas, por mais estranho que seja o local, um par de botas que proporcionam defesa +15, me dando +10 de vantagem se comparado ao que eu usava antes.

Agora, falta pouco para finalmente sair deste lugar. A frente consigo avistar um deserto — que descobri através de Sylphia ser portador de grandes desafios. Olho para trás e sinto pena de qualquer um que apareça por aqui, porque já peguei tudo que poderia ser pego e ainda vai ter um tempo até que os itens e monstros consigam renascer.

Dou o primeiro passo, ansiosa para estrear o novo e confortável sapato neste calor péssimo do deserto, até que me lembro de uma parte que esqueci de ir: o riacho. Olho para trás, hesitante ao ver e ter que passar novamente pelas árvores, lamas e animais mais uma vez.

Vou? Não vou? Vou ou não? Ai, vou sim.

Passei dias olhando isto por completo, imagina se no único lugar que eu não fui tem alguma coisa? Eu pareço ter sido a primeira a passar por aqui, sem chance de eu deixar para trás algum item raro por bobagem.

E, infelizmente, eu tive que refazer todo o caminho. E mais uma vez em meio a tropeços e arranhões.

...

Antes mesmo de chegar lá ouvi ruídos ao longe. Barulho de água muito mais alto do que um riacho deveria fazer.

Infelizmente, quando cheguei a primeira coisa que tive o desprazer de ver foi um polvo humanoide distraído com a água abaixo de si. O pouco de sol que alcançava a criatura atravessava-a como se não fosse nada, com exceção de seus artefatos, que brilhavam até demais. Eu teria prestado atenção em mais milhares de detalhes, ou quem sabe até tentado fazer contato, se a cena que acontecera a minha frente não tivesse me deixado com o queixo caído.

Emergindo da água e preso a seus tentáculos, estava um dos jogadores que havia salvado minha vida e eu havia adicionado. Estou longe demais para ver seu nickname, mas sei que é algo com Ki. Kira, talvez...? Mas isso é o que menos importa agora. Tratei de me esconder melhor atrás das árvores e ser ainda mais discreta ao espiar, se ela me percebesse aqui antes que eu fizesse qualquer coisa, a minha única opção vai ser me jogar no meio da luta ou correr desesperada. E, sinceramente, não sei qual delas é a menos sensata.

Não foi difícil sentir a tensão voltar a tomar conta do meu rosto, minhas sobrancelhas contraíram-se inconscientemente, formando quase uma ruga. Segurei a bainha. Era óbvio que eles estavam nessa brincadeira a bons minutos: não era difícil ver que ele deve ter passado um bom tempo submerso, já que quando voltou a superfície a primeira coisa que fez foi cuspir boa parte da água que havia engolido. Mas nem tentava lutar mais. Vi-o, com dificuldade, fazer o gesto para abrir o inventário e em seguida fecha-lo. Será que procurava uma poção? Mas estranhei que, mesmo nesta situação, ele quase não se mexia mesmo com o HP começando a ficar amarelo. Seus braços... Não, seu corpo inteiro estava molengo, como se estivesse perto de perder a consciência. E para isto acontecer neste jogo, no mínimo, deve estar com a vida quase vermelha.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Vindo do fundo do meu subconsciente, senti que algo estava muito errado.

De repente, o garoto simplesmente saiu voando. Adoraria que tivesse criado asas, mas apenas foi arremessado contra uma árvore com tanta força que foi possível escutar algumas partes de seu corpo estalarem. Com um único golpe, sua vida desceu toda de uma vez: verde, amarela e agora começava a virar vermelho. Seu peito parou de subir e descer, seus olhos se fecharam e lentamente sua vida descia ainda mais, sem qualquer indício de uma pequena recuperação. Odeio mortes, não importa em qual dimensão seja. Não consegui conter o instinto e fui correndo em sua direção, tenho certeza que pelo menos uma poção eu poderia oferecer. Mas meu destino não foi muito diferente do dele: com apenas um golpe, fui parar em uma árvore a uns bons metros de onde estava.

Na mesma hora que recebi o impacto, uma dor insuportável se fez presente pelas minhas costas e imediatamente o ar escapou dos meus pulmões. Fiquei bem atordoada com o impacto, mas tive sorte dela aproveitar este momento para sorrir desafiadoramente ao invés de me atacar novamente. Com um pouco de dificuldade para me recuperar, me mantive em pé. Tentei prestar atenção em tudo que estava a nossa volta, inclusive tomar cuidado para não derrotar o inimigo tarde demais e acabar com — li seu nickname pelo canto do olho — Kirito morto. Olhei bem para a vida dele, que continuava descendo, mas agora mais devagar e tentei fazer um pequeno lembrete mental de quanto HP deve lhe restar. Uns 10%, talvez? Infelizmente o jogo não mostra o número exato quando o jogador está no meio de uma luta.

Desembainhei o florete, e nem sei porque demorei tanto a pensar em fazer isto. Ela aguardava pacientemente o meu ataque. Pensei que talvez não fosse má ideia utilizar uma skill logo de início, mas ainda não totalmente sei o que ela é capaz de fazer. Corro diretamente em sua direção e seus tentáculos — mais compridos do que aparentavam — me atacam, tentando me capturar da mesma maneira que haviam acabado de fazer com o outro jogador. Fui obrigada a ignorar tudo ao meu redor e focar apenas em desviar e contra-atacar, na esperança de acertar algum tentáculo desprevenido, sem parar de avançar em sua direção. Chegou uma hora que ficamos perto o suficiente para que a luta finalmente abandonasse a parte preliminar.

Nossos olhares se cruzaram em meio a cortes e desvios, e por mais que seja um NPC, parece que ela sentiu o mesmo frio na barriga que eu. Pensei então na primeira habilidade que veio a minha mente, que aumenta a força da lâmina em 15% e a deixa brilhando como se tivesse capturado todo o brilho do sol para si. Até o momento ambas estávamos na borda (eu, na terra e ela sem sair de dentro do riacho), mas já que ela não pretendia sair de lá, eu iria entrar. A habilidade duraria bons trinta segundos, que deveriam ser aproveitados da melhor forma possível. Graças as novas botas, consegui me mexer na água mais rápido e se tornou um pouco mais fácil lidar com o peso das minhas pernas a cada movimento. Fui para cima, até que ficamos presa mais uma vez em uma dança de movimentos que não levaria a lugar nenhum. Ninguém era acertado, mas, diferente dela, eu me cansava com o movimento repetitivo e o florete já deixava de ser tão leve. Prevendo o que aconteceria caso eu desacelerasse pelo esgotamento físico, recuei, mas ela continuou vindo para cima. Sem escolhas, desviei de todas as formas que conseguia, mas o chão não era tão regular e me obrigava a me manter atenta a possíveis tropeços e buracos ao mesmo tempo que fugia de ser capturada. Só que nada dura para sempre, muito menos eu.

Falhei ao me esquecer que eu estava em seu habitat, e não o contrário. E só percebi isso quando minhas pernas foram agarradas e puxadas em sua direção, me fazendo ficar submersa antes que eu pudesse ter tempo de prender a respiração. Por sorte, meu primeiro reflexo ao ser puxada foi não soltar a empunhadura do florete de jeito algum, então, mesmo debilitada pelo peso de meus próprios movimentos, consegui cortar os dois tentáculos que me seguravam. Tratei de ficar em pé, cuspindo toda água que eu havia engolido. Não tenho muita experiência com água, mas não sabia que riachos poderiam ser tão profundos: em pé, a água quase alcançava meu seio.

Com um grito fino e agonizante, a barra de sua vida desceu e consegui me sentir menos hesitante. Na lateral esquerda superior, o cronometro da duração da habilidade marcava 22 segundos restantes. Ignorando todas as formas que imaginei que ela conseguiria atacar, o animal partiu para cima de mim no soco mesmo. Deixando de lado a injustiça de alguém que poderia usar os punhos e os tentáculos restantes, desviei: primeiro para a esquerda, direita e esquerda mais uma vez, enquanto caminhava para trás e procurava uma oportunidade para contra-atacar, o que não demorou muito a aparecer. Mirei a lâmina em sua cintura, mas seus reflexos foram mais rápidos, e com um dos tentáculos conseguiu desequilibrar a espada na minha mão e joga-la a alguns metros de mim. Da distância que estávamos, não alcança-la, então fechei os punhos de forma firme e me concentrei no que acontecia a minha frente, mesmo com a tentação da lâmina brilhante me chamando.

Quando ela atirou minha arma para longe, percebi que sua atenção se desviou para isto, me proporcionando a chance de acertar um soco diretamente em sua face — depois, meu outro punho voou em sua direção, tentando acertar seu queixo, de cima para baixo, mas suas mãos molhadas e incrivelmente não escorregadias agarraram meu pulso com força, me obrigando a chutar seu joelho para que se desequilibrasse. Antes que ela conseguisse se recuperar, desferi mais um soco em seu rosto, desta vez, com a mão direita, o qual ela conseguiu deter com seu tentáculo apenas depois de já ter a acertado. Com o braço livre, desferi uma cotovelada em seu nariz e a empurrei para o chão, de forma que seu corpo ficou metade em água e metade em terra. Com ela no chão, precisei decidir entre partir para cima ou correr parar conseguir pegar a espada, mas achei a última opção melhor quando me lembrei de todas as brigas de escola em que apanhei.

Quando a peguei, me surpreendi quando o contador de tempo da skill voltou a minha dela avisando que ainda haviam 14 segundos restantes. O monstro estava se levantando com um pouco de dificuldade, aproveitei e corri em sua direção. Tentei golpear seu rosto, mas ela conseguiu parar a lâmina com seus próprios braços! Busquei então acertar qualquer outra parte superior que pudesse estar descoberta: lateralmente, tentei cortar seu busto, pescoço e até mesmo seus ombros, mas a rigidez de seus braços sempre era suficiente para me fazer errar o alvo. O máximo que deixava eram pequenos arranhões, que causavam vazamentos de água minúsculos, e tiravam só 2 de sua vida. Me apavorei ao pensar na possibilidade de todo seu corpo ser firme deste jeito, mas se fosse, ela não estaria o defendendo, não é mesmo? Como foquei todos os ataques na parte de cima, a surpreendi ao acertar — não, acertar não. Cravar a ponta da espada profundamente em seu joelho na mesma hora que o cronometro chegou ao fim. Ela, apoiada em um joelho no chão, agarrou a lâmina com ambas as mãos e fez força para ficar em pé e me acertar com a perna saudável um empurrão muito bem dado na barriga. Busquei me recuperar apoiando a perna direita no chão atrás de mim, mas me esqueci de quão esburacada esta parte era e cai de costas, batendo a nuca com força e ficando com a visão turva por alguns segundos.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Comigo no chão e ela em pé, o corte aberto em seu joelho ficava ainda mais visível: não mostrava sangue, na realidade, a água de seu corpo vazava por ele, fazendo de seu corpo algo estranhamente transparente, como um recipiente que se esvaziava. Os dedos de seus pés (já quase invisíveis dentro da água) começavam lentamente a desaparecer, no mesmo ritmo que sua vida se tornava cada vez menor, mas, mesmo nesta situação, ela descartou a lâmina com ódio para trás de mim (com tanta afobação e confiança que nem se importou em realmente deixa-la longe). Subiu em cima de mim, sem perder tempo, acertou um soco atrás do outro. Pelo menos uns quatro. Sem conseguir enxergar direito e sentindo todos os ossos do rosto a cada impacto, até mesmo os que eu nem sabia que estavam ali, estiquei a mão direita e tateei todo o chão, até encontrar o conforto da lâmina gelada. Seu corpo havia se dissolvido até seus joelhos, os quais eram o que lhe restavam para manter o equilíbrio. Eu já estava ficando tão atordoada com um soco atrás do outro, que o único som que consegui ouvir foi do meu instinto de sobrevivência implorando para que eu fizesse algo e o grito agudo ecoando em minha cabeça quando retirei a espada de dentro de seu olho esquerdo.

Com a visão turva e em algumas partes escuras, vi-a levar uma das mãos até o olho machucado, me dando um curto espaço de tempo para tentar me recuperar. Quase a agradeci por este intervalo, já que meus pensamentos começavam a parar de fazer sentido.

—Sua puta! — Com o olho que lhe restara, me olhou com uma fúria indescritível e voou em meu pescoço, apertando com tanta força que o ar que acabei de recuperar escapou na mesma hora. Instintivamente minhas mãos apertaram seus pulsos, tentando, em vão, tira-los dali. Suas pernas haviam sumido por completo, então coloquei as minhas contra sua barriga e fiz força para a empurrar enquanto tentava me desvencilhar, mesmo que não parecesse que ela fosse sair dali. A água de seu olho jorrava diretamente na minha bochecha, com um pouco entrando na minha boca, o que não ajudava na falta de ar. Só precisava aguentar mais um pouco, logo tudo acabaria.

Me senti cruel em lhe cortar uma das mãos e furar o olho que lhe restara com meu próprio dedo. Mas era matar ou morrer. Pelo menos assim, consegui respirar.

— AAAAAAAH! — Sua voz desta vez estava rouca. E exausta, assim como eu. Nunca imaginei que um ser feito de água conseguiria chorar, e muito menos que conseguiria fazer isto sem ambos os olhos, mas foi o que aconteceu. Onde estavam seus olhos, restava apenas jatos de água saltando em todo meu rosto, e, destes jatos, lágrimas escorriam por suas bochechas. Com a mão que lhe restara, o aperto em meu pescoço voltou com mais força do que antes, mas desta vez consegui sentir a ponta de seus dedos começarem a desaparecer. Em breve isso chegaria ao fim.

—Eu só queria sobreviver — Eu nem sabia que era possível, mas agora a pressão havia crescido tanto que cheguei a pensar se seu dedo acabaria atravessando minha garganta — Assim como você, sua vadia. — E cuspiu na minha cara.

Até que, por fim, consegui respirar livremente.

Todo seu torso havia se esvaziado, restando apenas a cabeça que caiu em cima de meu corpo e derreteu na minha frente. A água escorria e formava uma poça em minha barriga, o que me fez imediatamente me virar de lado e deixar que tudo aquilo caísse na água que metade de mim estava mergulhada. Conforme afundava, a cabeça acabou de se dissolver, e a vida do estranho monstro chegou ao fim — poucos cristais se espalharam pelo vento e alguns foram até mim para me dar a experiência que recebi. Acabei ficando deitada apoiada nos cotovelos, tentando processar tudo que acabou de acontecer nos últimos minutos. Até que me lembrei do principal! Olhei para o lado e Kirito estava deitado no chão, com os olhos fechados, a vida no vermelho (agora que a luta havia acabado, claramente conseguia ver que ele estava com 18 de vida, diminuindo 1 a cada dois segundos) e totalmente paralisado. Como se realmente tivesse desmaiado, coisa que eu achei que jamais fosse possível acontecer neste jogo.

Me levantei apressadamente e corri em meio a tropeços, também estava fraca. Quando cheguei nele, abri o inventário e me apavorei quando não encontrei nenhuma poção. Absolutamente nada. Enfiei a mão dentro do mini baú na minha cintura e também não encontrei nada. Apavorada e sem saber o que fazer, me ajoelhei ao seu lado e deixei de lado qualquer coisa que fizesse sentido. Não posso desistir antes de esgotar todas as possibilidades.

Tentei me lembrar pelo menos parte do que aprendi na aula de natação. Assim, me aproximei enquanto entrelaçava meus dedos e os colocava no centro de seu peito. Qual era a velocidade mesmo...? Dois por segundo e um a cada trinta, eu espero.

E comecei. Pressionei para baixo, assim como lembrava, duas vezes por segundo até ter feito isto trinta vezes. Inclinei seu rosto com cuidado um pouco mais para cima e fechei suas narinas com dois dedos em forma de pinça, depois, encostei meus lábios nos seus e soprei por cerca de um segundo. Soprei uma segunda vez e retornei as massagens.

Massagem, sopro. Massagem, sopro. Não sei quantas vezes repeti isso, mas depois de uns trinta segundos chegou uma hora que estava quase tão sem ar quanto ele. Enquanto respirava profundamente, senti uma culpa enorme por ter focado na coisa errada todo este tempo, ainda mais sabendo que devia isto a ele e a seu grupo, já que eles me salvaram. Se não fosse por eles, eu já teria deixado de jogar Sword Art Online logo no primeiro dia.

Sabia que me restara pouco tempo, sua vida beirava o fim e os números marcavam 6/350. Mais sessões de massagens e sopros, com a única pausa sendo a obrigatória para realizar o procedimento. Ele ainda estava aqui, e ainda estava com algo na barra de HP, e isto era o suficiente para que eu não desistisse.

E então, eu dei o último sopro. Mesmo quando ele tossiu quase na minha cara e praticamente vomitou toda água que havia dentro do corpo dele ao meu lado, eu senti uma felicidade indescritível. E um alívio imenso, mesmo que em seguida pareça que uma bigorna tenha caído em cima de mim.

Me deitei a sua esquerda, um pouco afastada, sentindo o cansaço tomar conta. Cada parte do meu corpo doía, minhas articulações e cabeça latejavam. Sem contar que sou sensível ao estresse, então cada vez que fico bem nervosa tudo ataca de uma vez só. Olhei para a direita quando os sons e gemidos acabaram, e meus olhos encontraram os seus.

— O que houve...? Como você...? Ainda estou um pouco confuso, mas vi você chegar e depois fiquei preso em um estado semiconsciente muito estranho. Mas obrigado.

— É uma história complicada. E só estou retribuindo o favor. — Dei um sorrisinho, e ele fez o mesmo enquanto dava um aceno rápido com a cabeça.

Por alguns segundos ficamos em silêncio, apenas aproveitando o alívio que era conseguir respirar e sentir os poucos raios de sol que nos alcançavam na pele. Decidi tentar puxar algum assunto, tentando entender mais como tudo aconteceu.

— Ei — Ele olhou para mim — Por que você está sozinho por aqui? Se perdeu do seu grupo nessa “pequena” floresta? — Falei ironicamente, tentando pensar em algo a mais para dizer — Passei um bom tempo aqui e não achei ninguém, mas se você quiser posso te ajudar a procurar. Eles devem ter poções e...

— Não estou mais com eles. — Me cortou, um pouco frio mas não tão grosseiro.

— Não?

— Não.

— E por quê? Se não for ser muito intrometida...

— Passei uns dias sem poder jogar por obrigações fora daqui — Percebi que ele se referia a vida real — e eles decidiram que se tornarem os melhores jogadores, ou seja lá quais sejam seus objetivos individuais, é mais importante do que uma amizade de um bom tempo. Mas tudo bem. Cada um com suas escolhas. — Tentava se mostrar conformado, mas era claro que não se sentia assim.

— Ah, se te consola um pouco você não foi o único abandonado. Quando eu entrei nessa floresta eu encontrei um jogador que agia como você. E aparentava também, até no nickname. Acabou que você... Quer dizer, ele, matou um jogador e eu acabei salvando a garota que era a dupla do falecido.

— Como assim ele parecia comigo? E até o nickname?! — Fui interrompida.

— Sim, mas é uma longa história. A menina que eu salvei, Sylphia, me explicou que o que eu via era alguém da minha lista de amigos e para ela funcionava do mesmo jeito. Eu via você e ela via o próprio colega, só que ela teve sorte de não ser enganada, já que quem ela via era a própria dupla. Estou sendo muito confusa?

— Eu nem sabia que isso era possível... — Ignorou completamente minha pergunta, então preferi levar isto como um “sim” silencioso — Mas isso é uma habilidade? Ou algo que se possa aprender matando algum monstro específico, como um buff temporário?

— Tudo que eu sei foi ela que me contou. Parece que ele é um Transmorfo, que é uma classe rara, um jogador só tem a oportunidade escolher esta classe a cada cinco mil jogadores inscritos. E a chance de conseguir fingir ser dois jogadores distintos simultaneamente é uma a cada dez.

— Nossa. Esse jogo é uma caixinha de surpresas, né? E eu nem sabia que eu já era velho o suficiente para usar esta expressão. — Riu, e o acompanhei, mas logo voltei a expressão de antes.

— E aí? Posso terminar a minha história triste de cachorro que caiu da mudança ou vamos desviar o assunto novamente? — Silenciosamente sua atenção voltou a minha voz — Ficamos amigas e nos adicionamos, mas depois daquele dia ela não ficou mais online. E olha que eu entrei todos dias, mas fiquei explorando cada canto dessa floresta como desculpa para esperar ela aparecer. Não rolou. Pelo menos consegui um item legal e um pouco de experiência.

— Se já havia visto tudo, por que voltou? Ouviu meu berro desesperado? Ah, é, verdade, uma pessoa não consegue gritar em baixo da água.

— Nossa, que piada criativa. Uau. — Tentei não ser tão rabugenta, mas é mais forte do que eu — Acontece que, quando eu estava saindo, me lembrei que o riacho eu não explorei. E eu não sou burra de ver cada canto e matar cada monstro que vive aqui e deixar só uma parte para trás né? É a mesma coisa de estar jogando minecraft, encontrar ouro e não cavar em volta para ver se tem diamante.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Meu Deus, quem ainda joga minecraft?

— ...Eu.

— Credo. — Ele bateu com a própria mão na testa, decepcionado — Mas, continuando, então você tinha esperança que a sua amiga estivesse por aqui?

— Exatamente.

— Mesmo não vendo o nome dela na lista de amigos?

— Ela poderia ter me excluído sem querer e por isso seu nome nunca mais apareceria ali, já que o botão de excluir é bem do lado do de chamar alguém no bate-papo. Também poderia estar em apuros demais para pedir ajuda. Mas não se engane, essa busca toda foi 90% interesse em encontrar algum item bom, não sou tão iludida assim.

— Se você diz...

— É sério.

Em silêncio, me permiti voltar a olhar para o céu brilhante acima de nós. Agora, os raios de sol se juntaram a uma brisa agradável que balançava as folhas de toda vegetação que estava a nossa volta. Com a mente em outro lugar, olho para o garoto ao meu lado, e dou um pulo para me sentar quando percebo uma coisa.

— Meu Deus! Sua vida! Eu quase esqueci. — Me mantive sentada com os braços apoiando meu peso no chão — Precisamos encontrar algo para você, eu não tenho poção. Você tem algo? Se você sofrer qualquer tipo de arranhãozinho é morte na hora.

Sua resposta foi uma risadinha. Aquela risada que você dá quando você se sente superior a alguém, ou, pelo menos, age com tanta certeza que acidentalmente acaba com um ar arrogante.

Para o meu constrangimento, o menino começou a despir-se na minha frente. Agradeci mentalmente por ele ter começado pela camiseta e não pelas calças.

— Que porra é essa? — Fiquei em pé, indignada — Quem você tá pensando que é? Só porque conhece uma garota em um jogo acha que pode fazer o que quiser? Escuta aqui, seu...

— Fica calma e observa a mágica acontecer. — Ele se atirou na água de costas, ficou cerca de dois segundos submersos e então emergiu. Ele apontou para cima da própria cabeça com os dedos e percebi que sua vida já havia passado do vermelho ao amarelo.

— Mas que merda aconteceu aqui? — Falei, perplexa. Geralmente sou uma pessoa educada, quanto no comportamento quanto em palavras, mas quando ficava irritada palavrões saem sem freio.

— É a água. Não ouviu falar sobre o bug que fez as criaturas mudarem o comportamento? — Neguei com a cabeça — Te garanto que é algo tão estranho e novo quanto uma classe que consegue absorver a forma de seus amigos. O criador, ou seja lá como o chamem, fez um monstro feito para torturar o jogador até que morresse. — Vendo a minha expressão, ele fez uma careta também — Sim, bem doentio, né? Era fácil colocar um fim nisso, não exigia uma força exagerada para para-lo, mas, a partir do momento que ele conseguisse te capturar, a sua morte era certa. É impossível escapar. E, para não pensarem que ele quer sempre prejudicar os jogadores, ele criou também um monstro... Não, ela nem merece esse título. Uma criatura gentil, que foi feita para auxiliar todos que passavam por ela e abençoa-los com bônus, vida e essas coisas que todo mundo gosta. O que rodeava o sádico era só caos e destruição, mas o gentil vivia em um ambiente que só do jogador adentrar já fazia com que sua vida fosse recuperada. — Eu escutava atentamente a história, imaginando como seria o ambiente de cada um — Acabou por haver um bug e as personalidades foram trocadas. Então, não seria incomum encontrar um ser generoso em meio a um pandemônio, e...

— Uma criatura sádica em meio a um riacho gentil. — Completei, entendendo onde ele queria chegar.

— Exatamente.

Como ele não foi muito longe, quando ele se agachava, (ou, talvez, estivesse sentado) a água chegava até seu peito — o que era muito estranho, já que por algum motivo o criador do jogo resolveu não colocar mamilos em ninguém. Fiquei um pouco menos constrangida quando parei e pensei que tanto faz, é só um jogo. O corpo de quem está por trás talvez nem seja assim, ou quem sabe seja até uma menina como eu. É só um abdômen e um peito sem mamilos (me esforcei para não debochar na segunda parte). Nada demais. E nada que não seja visto em praias também.

— Agora é a sua vez. — Ele me falou. Ergui uma sobrancelha em resposta, então o garoto apontou para a minha vida. Só agora eu havia percebido que ela estava quase tão vermelha quanto a dele — Vamos, tire a roupa.

E eu não sei quem ficou mais sério. Nos encaramos por bons segundos, tempo suficiente para que eu desconsiderasse tudo que eu havia pensado. Não era só um jogo, este corpo tem algumas pequenas diferenças do meu — o tamanho dos seios já é um bom exemplo — mas eu jamais ficaria nua em frente a um desconhecido. Com mamilos ou sem.

— Relaxa, eu só estou brincando! — E riu da minha cara. Mas riu muito mesmo. — Eu tirei porque depois de passar tanto tempo submerso, eu não ia suportar mais sentir a camiseta pesada pela água mais uma vez. Mas sabe que, pensando bem, não seria má ideia você tirar mesmo. Ei! Não me olhe assim! Desta vez foi em um sentido de que seria ótimo você tirar e lavar isso. Sério. Isso está podre.

— Adoraria negar, mas... — Olhei para baixo, o meu vestido antes branco agora estava em uma mistura de amarelo e marrom, com várias manchas de lama, sujeira, e, de brinde, com alguns pequenos cortes de golpes que me acertaram ou quase — não tem como.

— E pra piorar ainda é o vestido inicial do jogo.

— Olha quem fala, acha que tem direito de criticar os outros só porque colocou uma camiseta nível três e usa a calça inicial. — Sua resposta foi um sorriso tão debochado quanto o meu.

Quando terminei de falar, entrei devagar na água. Por sorte, estava morna (e nem sei como isto aconteceu, já que o sol mal alcançava o riacho) então não precisei reunir muita coragem para entrar por inteiro. Imediatamente percebi que a teoria de Kirito estava mais do que certa: bastou mergulhar a maior parte do meu corpo que na mesma hora senti todos os músculos relaxarem, a cabeça parar de apertar, a visão deixar de ficar turva e os cortes nos pés pararem de arder.

Com uma mão, prendi a respiração no nariz, e, como conheço bem vestidos e a tendência que eles têm a flutuar, tomei cuidado para segura-lo enquanto mergulhei completamente de baixo da água, molhando meu rosto e meus longos cabelos cor-de-céu. Quando retornei à superfície, não sentia nem mais o latejar dos socos ou o grande inchaço. No reflexo da água, vi que meu olho roxo começava a voltar a cor normal — não seria necessário mais do que alguns minutos para que tudo voltasse ao lugar. Consegui me mover até mais perto da borda e me posicionar estrategicamente para ficar deitada e ao mesmo tempo manter a água longe de qualquer via respiratória.

— Nossa, em poucos minutos você já parece bem melhor. — Ele me falou — Menos roxa e inchada.

— Você também.

E o silêncio reinou mais uma vez.

Tentei puxar algum assunto mais uma vez.

— Já nos encontramos duas vezes aleatoriamente, e nas duas nos salvamos. Que coincidência legal, né?

— Pois é, eu também estava pensando nisso agora!

A pausa que fizemos me fez pensar que mais uma vez o silêncio tomaria conta, mas ele seguiu falando.

— Sabe de uma coisa? Daríamos uma dupla legal. Dois espadachins. E nós não jogamos tão mal também, sem contar que os dois já fomos abandonados, então a chance de fazermos isto um com o outro é baixa. — Fui pega de surpresa pela proposta, era a última coisa que eu esperava.

— É, soa bem uma dupla de espadachins. Mas será que isto não daria briga? Vamos supor que juntos derrotemos um monstro e ele dá apenas uma espada rara ao morrer, vamos duelar até a morte para decidir com quem vai ficar?

— É impossível. Nós nem usamos o mesmo tipo de espada, olha a diferença da grossura da minha para a sua. — Tinha me esquecido completamente deste detalhe. Eu não tenho nem ideia do que responder. É o que eu queria, não é? Uma dupla, alguém para me fazer companhia nem que fosse virtualmente. — O que você acha? Se não quiser, não vou te forçar.

— É... Interessante.

— Interessante?

— Quer dizer, fui pega de surpresa. Não esperava por isso.

— Olha, por mim tanto faz. Não precisa pensar tanto, não é um pedido de namoro. É só responder sim ou não.

Fiquei um pouco hesitante. Nunca fui boa em confiar nas pessoas, e muito menos virtualmente, sem nem saber quem é. Mas talvez seja melhor assim. Nenhum sabe quem o outro é, somos só companheiros de time em busca de um objetivo em comum.

Ou talvez nos tornemos amigos, como eu sempre quis.

E se eu for deixada de lado, tudo bem, já estou acostumada.

Não vejo nenhuma grande desvantagem na verdade.

— Aceito!

Abri um largo sorriso e ele também. Não sei se ficou tão feliz quanto eu, ou se sequer tinha motivos para isto, mas me pareceu verdadeiro o suficiente.