Iguais, porém opostos

Como vivos e mortos


No fundo, Bo Ra detestava seu jeito impulsivo de tomar decisões e resolver as coisas. Jamais admitiria isso, nem para si própria, mas sempre perguntou-se como Taehyung conseguia ser tão calculista e previdente naquilo que fazia, pensava, observava e dizia — afinal, ela não se lembrava da última vez que o vira discutindo com alguém, agindo por impulso ou fazendo algo extremamente mundano, como ter uma crise de risos.

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Talvez, agir feito um robô como ele era habituado a fazer tivesse lá os seus benefícios.

Se o seu cérebro fosse artificial e o seu coração de pura lata, ela provavelmente não estaria arrependendo-se da sua última decisão naquele momento. Depois de Taehyung aceitar o seu pedido, eles entraram em um dos carros da família Kim (ela, pela primeira vez), aquele que era de uso exclusivo do filho mais novo, e iniciaram um trajeto um tanto incômodo. Ele não quis dizer para onde estavam indo, pois sabia que ela simplesmente saltaria do carro na primeira oportunidade que tivesse e terminaria o trajeto por conta própria; e Bo Ra, por sua vez, não cogitou perguntar. Ela não sabia ao menos se estava fazendo a coisa certa, apenas acatou a ordem que pulsava em seu interior.

Algo simplesmente a mandava fazer aquilo, ir até aquele homem.

O barulho dos motores do veículo sendo desligados interrompeu um silêncio que já durava mais de meia hora, uma consequência do fato de quem nenhum dos dois jovens sabia o que dizer para o outro — eles não tinham, exatamente, um assunto em comum para discutir e matar o tempo. A última coisa que Taehyung dissera fora as coordenadas para o seu motorista, sem que Bo Ra conseguisse lhe ouvir e, por isso, lembrou que precisava limpar a garganta antes de começar a falar. Já Bo Ra, entretida demais com suas próprias tentativas de adivinhar onde estavam apenas com a visão que tinha pela janela escura do banco de trás, nem percebeu quando ele o fez.

— Antes de você descer, eu preciso lhe contar como as coisas chegaram a esse ponto. — ele iniciou, pegando-a de surpresa. Como havia um vidro negro separando-os do motorista, ele se sentia um pouco mais confortável para dizer o que precisava.

— Que ponto? — indagou, tentando não transparecer o quão nervosa realmente estava.

Foi a vez dele de se surpreender. Ela ainda não tinha notado onde estavam. Provavelmente por não querer encarar Taehyung, Bo Ra não conseguia ver do lado de fora do carro por completo e, por consequência, os dizeres escritos em uma espécie de placa de mármore que estava justamente atrás do garoto, quase no meio da calçada de ladrilhos, e assim ler o nome do lugar. Para melhor andamento da conversa, ele decidiu que ela, em algum momento, conseguiria fazê-lo por si só.

— A sua avó lhe contou como eu descobri a verdade? — perguntou, porém sem fitá-la diretamente.

Bo Ra engoliu em seco, sem nem perceber que sua última pergunta havia sido ignorada. Pigarreou, ainda sem entender onde Taehyung queria chegar, e continuou:

— Sim. — afirmou. — O filho dele pediu ajuda à sua família quando ele adoeceu, e foi quando você e a sua irmã descobriram.

Ela não se sentia confortável o suficiente para recontar a história que sua avó lhe dissera e, muito menos, em dar títulos àquelas pessoas. Irmão, pai... ela não conseguia pronunciar tais palavras sem que seu estômago se revirasse, por isso, torceu para que Taehyung tivesse lhe entendido.

Ele tinha, pelo menos.

— Ele teve câncer. — disse, direto. Sabia que Bo Ra não gostava de rodeios e, de bônus, não havia um jeito delicado para contar aquela informação. — Leucemia, mais especificamente.

Repentinamente, Bo Ra sentiu como se o ar dentro do carro tivesse sido sugado para bem longe dela. Não sabia exatamente como reagir àquilo.

— Então... —iniciou, mas teve de pausar sua fala para tentar descobrir o que queria dizer. — O filho dele foi pedir ajuda para pagar o tratamento?

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Com um longo gesto feito com a cabeça, Taehyung negou. Ele fitava o vidro escuro que os separava do motorista, pois sentia como se o seu pescoço estivesse petrificado naquela direção.

— Ele foi pedir a sua ajuda. — respondeu, tentando ser o mais imparcial possível. — O pai dele havia sido internado às pressas, precisando de um transplante de medula óssea. Como eles não conseguiam encontrar ninguém compatível, minha tia acabou por contar a ele sobre você. Ele estava extremamente constrangido, porém igualmente desesperado, porque as chances de você ser compatível eram consideráveis demais. — Taehyung pausou e, de escanteio, conseguiu ver a expressão profundamente afetada de Bo Ra. — Ele ainda não tinha se dado conta de quem o pai dele realmente era.

No fim das contas, não importava o que estivesse sentindo ou pensando naquele momento, Bo Ra chegou ao menos a uma conclusão, depois de tomar para si alguns segundos para pensar: não podia julgar o rapaz. Jamais teve de fazer algo tão humilhante para salvar alguém que amava, mesmo já tendo passado pela decepção de descobrir verdades dolorosas. Ela não conhecera aquele homem e, por isso, tinha quase certeza do que teria feito se seu filho tivesse conseguido chegar até ela e pedir sua ajuda — contudo, tomaria sua decisão baseada no fato de que não fora criada por ele. Com fortes laços afetivos envolvidos, talvez pensasse diferente.

Mas aquela não era a hora para isso. Na verdade, pouco lhe importava qual era a situação ou o contexto, tanto do homem quanto do seu filho, naquela época. Seu pensamento podia ser egoísta, mas isso também não era importante. Sentiu uma súbita necessidade de ouvir o resto daquele história e, esquecendo-se de que ainda não sabia onde estavam, ela virou-se para Taehyung.

— E então, sua mãe o expulsou? — indagou, e ele não soube decifrar o porquê dela querer saber justamente aquilo.

— Sim, mesmo que pelas próprias razões dela. Ela proibiu que ele chegasse perto de você e lhe enviou para aquela colônia de férias. — respondeu, sem vergonha de expor a personalidade difícil de sua mãe.

Afinal, não era como se Bo Ra não a conhecesse. Por sua vez, a garota deixou escapar um riso nasalado amargo. Lembrou-se de como, repentinamente, a senhora Kim resolvera ser gentil com ela e lhe presentear com uma semana em uma colônia de férias, quando ela tinha por volta de quatorze anos.

— Eu sabia que aquilo não era generosidade. — murmurou, mais para si própria.

Nunca é, Taehyung completou mentalmente, sem denunciar que havia escutado as palavras de Bo Ra.

— Mas ela não conseguiu ser rápida o suficiente. — foi o que ele acabou dizendo. — A noona escutou a conversa dos dois, investigou e não demorou a descobrir a verdade. — pausou, abaixando a cabeça sem ao menos perceber. — As coisas pioraram muito depois daquele dia.

Instintivamente, Bo Ra o fitou. Taehyung parecia perdido em memórias e, pela primeira vez, Bo Ra o via tão aéreo. Ela conseguia imaginar o caos que teria sido na família com a descoberta de Taeyuna, considerando ainda como as relações entre os Kim já eram frágeis e instáveis e, mesmo sem realmente ser culpada por aquilo, ela não podia evitar de sentir-se assim. Quis dizer alguma coisa, mas não soube exatamente o que. Virou-se para Taehyung mais uma vez, pensando que talvez encontrasse as palavras certas na expressão abalada dele.

Acabou encontrando, na verdade, algo muito além disso.

Atrás da cabeça baixa de Taehyung, havia uma enorme placa de algo que aparentava ser mármore. Cravada na mesma, letras negras formavam duas palavras nítidas e, ao mesmo tempo, assustadoras: cemitério público. Sem perceber, Bo Ra esticou-se na direção da placa e, consequentemente, de Taehyung; o que o assustou. Contudo, ele nem ao menos teve tempo de perguntar o que estava acontecendo.

— O que aconteceu com ele? — ela indagou. — Com aquele homem?

Taehyung, por fim, deu-se conta de que Bo Ra havia finalmente notado onde estavam. Por fim, ele não estava errado quando acreditou que ela descobriria sozinha, só não soube dizer se isso era algo bom ou ruim. Engoliu em seco.

— Ele conseguiu um doador compatível, mas não a tempo. — deu a notícia, finalmente fitando Bo Ra. Ela parecia surpresa, porém não exatamente abalada. Taehyung esperou mais alguns segundos, apenas dando a ela algum tempo para o que quer que ela precisasse. — Você disse que queria encontrá-lo. Ele está na rua doze.

Dito isso, o rapaz virou-se na direção do cemitério. Naquele momento, percebeu que, por mais que se sentisse na obrigação de levar Bo Ra até o pai, por qualquer motivo que fosse, aquela era a única razão pela qual ele concordara com o pedido dela: tinha certeza de que o homem não iria machucá-la, pelo menos não ainda mais do que já fizera. Sabia como Bo Ra reagiria, o que pensaria e o que faria a partir daquele momento; além disso, sabia como ela precisava daquilo. Por isso, daquele momento em diante, Taehyung tinha a sua consciência limpa.

Contudo, quando a porta do veículo foi aberta e ele deixou de sentir a presença de Bo Ra próxima dele, que deu lugar ao vento frio que corria lá fora, Taehyung se assustou e virou-se para o outro lado bruscamente. Num piscar de olhos, nem Bo Ra e nem sua bolsa estavam ao seu lado, e a porta do veículo era fechada sem cerimônias. Voltou-se para a fachada do cemitério mais uma vez, vendo a garota segurando sua bolsa com firmeza e atravessando os portões de ferro sem olhar para trás, apesar de não parecer apressada. Ele chegou a levar sua mão até o puxador que abria sua porta, porém a deteve assim que tocou no plástico preto — o que diabos faria indo atrás dela? Além disso, Bo Ra precisava fazer o que quer que necessitasse sozinha. Ele tinha feito a sua parte e, daquele momento em diante, não se meteria mais na vida dela.

Abaixou o vidro que o separava do motorista.

— Podemos voltar para casa, agora. — disse.

Bo Ra não chegou a ver o carro partir, pois já estava caminhando pelas ruas do cemitério, entre os mais diversos tipos de túmulos. Ficava nítido nos mínimos detalhes como, mesmo aquele sendo um cemitério público, os familiares e amigos dos falecidos esforçavam-se para manter o lugar com um ar que beirava ao agradável. Havia árvores frutíferas que estavam podadas e bem cuidadas por todos os lugares, ainda que aquela não fosse a estação do ano mais propícia para frutas — além disso, a maioria dos túmulos, mesmo desgastados pela ação imperdoável do tempo, tinham flores e lembranças ao redor.

As pessoas ali enterradas, com certeza já foram e ainda eram muito queridas.

Então, Bo Ra alcançou o alto da rua doze. Não havia nenhum nome ou nada em específico que lhe dissesse isso, com a exceção dos números um e dois pintados sobre os paralelepípedos num tom de branco já amarelado, formando o número doze que não chegava ao tamanho dos pés da garota. Talvez fosse ação do seu subconsciente, mas ela não gostou do lugar logo de cara — tinha um ar mais cinzento e quase nenhuma flor. Talvez, aquela fosse a rua dos esquecidos e indigentes. Demorou alguns segundos para começar a caminhar pela rua, e o iniciou a passos lentos e desconfiados. Por um momento, quis voltar correndo. Retornaria para casa, deitaria no colo de sua avó e esperaria que tudo se resolvesse e terminasse bem por si só; mas, então, lembrou-se que nada na vida funcionava assim, ainda mais depois da infância. Bo Ra não era mais uma criança assustada e, justamente por isso, acreditou que tinha forças o suficiente para continuar seu caminho pela rua doze.

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Kim Myung Hyun

Ela parou assim que avistou o nome cravado grosseiramente na lápide de concreto. Lembrou-se de sua avó o pronunciando uma única vez, entre seus soluços amargados há não muitas noites. Além da grama meio amarelada que já começava a crescer, não havia nada ao redor de onde o homem estava enterrado, nem sequer um arbusto. Bo Ra sentiu-se aliviada — ele não merecia nenhum enfeite, fosse este dado pela natureza ou por sua família.

Então, ela percebeu a situação na qual se encontrava: estava ali, encarando uma lápide com um nome, uma data de nascimento e outra de falecimento, sem absolutamente nada que indicasse afeto ou consideração da parte de quem a colocara ali. Chegou a imaginar o que sentira a viúva ao descobrir a verdade sobre o seu marido, mas ela logo afastou esse pensamento. Sinceramente, não dava a mínima para a mulher.

Na verdade, Bo Ra sentiu-se fria por dentro quando avistou aquele nome, como se algo dentro dela estivesse tão morto quanto o homem enterrado à sua frente. Tinha lágrimas nos olhos, mas as mesmas eram mais uma reação biológica do que sentimental.

Resolveu, então, que aquela seria a hora ideal para colocar para fora o bolo em sua garganta.

— Eu odeio você. — foi a primeira coisa que disse, tão involuntariamente que chegou a se espantar. — Nunca vi seu rosto ou ouvi sua voz, e isso faz com que eu me iluda o suficiente para acreditar que tive alguma sorte nessa história. Mas isso não importa, porque eu não preciso conhecê-lo para odiá-lo. Na verdade, ao contrário do que eu acreditava até agora há pouco, eu jamais deveria conhecê-lo.

Assim, de frente para a lápide cinza, ela percebeu que, de algum modo, ela queria vê-lo assim. Encontrar o homem que arruinou a vida de sua mãe saudável e feliz faria extremamente mal a ela e, por mais perverso que alguém poderia achar que o seu pensamento fosse, ela preferia saber que ele estava morto.

Ninguém, jamais, deveria conhecer alguém como aquele homem.

— Eu soube que o seu filho mais velho tentou chegar até mim, numa tentativa desesperada de salvá-lo. — continuou, apenas dizendo as coisas que sentia necessidade de colocar para fora. Respirou fundo. — Eu sinto muito por ele, mas eu não teria lhe ajudado. Mesmo que fôssemos compatíveis, eu nunca daria a você a chance de viver, porque isso seria a minha morte. — pausou, fitando com atenção as letras na lápide. — Você nunca teria encontrado a sua salvação em mim.

Ela não se sentiu mal por estar dizendo aquelas coisas, especialmente porque as palavras retratavam como ela realmente se sentia. Bo Ra acreditava que guardar todo aquele ódio e nojo só para si acabariam lhe fazendo ainda mais mal, terminando de quebrar os frágeis cacos que sobraram dela.

— O que me dá forças para continuar e reunir os meus pedaços, é saber que você não teve e nem terá essa chance. Eu sou forte e vou conseguir, leve o tempo que levar; mas você, por outro lado, não. — pausou e, naquele momento, sentiu as lágrimas gélidas molharem suas bochechas. Mesmo assim, sentia como se aquilo fosse apenas uma consequência biológica da carga emocional que estava colocando para fora. — Quero que saiba que, do fundo do meu coração, eu fico feliz que esteja morto.

Era disso que ela precisava. Cuspir todas aquelas palavras, sem ninguém para lhe julgar ou lhe dizer o quão imorais elas soavam. Nunca, em toda a sua vida, havia sentido o que estava sentindo naquele momento, aquele misto de sentimentos obscuros e maléficos — contudo, acreditava que tinha todo o direito de fazê-lo num momento como aquele. Ela odiava aquele homem com todas as suas forças, e o fato dele agora saber daquilo era um alívio.

Respirou fundo, deixando escapar de seus pulmões o ar que vinha guardando há dias, assim como o peso em sua consciência. Sorriu. Não, ela não estava feliz, mas agora sabia que poderia ser, ainda que isso pudesse demorar a acontecer. Fitou o nome de Kim Myung Hyun mais uma vez, esperando que aquela fosse a última. Dali em diante, Bo Ra esqueceria que aquele homem sequer existiu.

E, o primeiro passo para isso, era dar as costas para aquela lápide sem graça e fria.

E foi o que ela fez. Já na saída do cemitério, ainda segurando firme a sua bolsa, Bo Ra estava prestes a deixar aquela mancha do seu passado para trás quando algo a impediu — ou melhor, alguém. Acabou por esbarrar em um rapaz alto e de ombros largos, que caminhava com a cabeça baixa e usava uma roupa de formando; algo um tanto atípico para aquele tipo de local, mas não o suficiente para desviar a atenção de Bo Ra dos seus próprios pensamentos.

— Desculpe. — ela disse, curvando-se. Ao fazê-lo, conseguiu ler um nome escrito em um adesivo de identificação colado sobre a beca preta.

Seokjin.

Ele parecia mais velho do que ela, então, estaria se formando na faculdade?

— Eu é que peço desculpas. Estava tão distraído que não a vi saindo. — ele disse, retirando o chapéu quadrado de cima de seus cabelos negros e lisos.

A conversa dos dois estranhos resumiu-se a isso, já que ambos encontravam-se mergulhados fundo demais em seus próprios pensamentos para notarem um ao outro. O máximo que fora capturado pela percepção de Bo Ra fora que, apesar do breve sorriso do rapaz ao desculpar-se pelo esbarrão, ele parecia estar carregando consigo um enorme fardo. Contudo, a grande maioria das pessoas que perde alguém muito próximo possui aquela aparência, especialmente se for algo recente. Para ainda visitar o cemitério, a pessoa a qual aquele rapaz perdera deveria ter sido muito importante para ele.

Ele aparentava tristeza, ao passo que Bo Ra sentia-se extremamente aliviada que a pessoa que fora visitar, de fato, jamais seria capaz de sequer respirar novamente.

***

Pela primeira vez em sua vida, Bo Ra sentiu como se estivesse realmente voltando para casa. Desde o dia em que conseguira formular pensamentos sensatos o suficiente, ela sentia como se não pertencesse a todo aquele mundo em que viviam os Kim, e isso incluía a vida na mansão —por isso, sempre que voltava para a casa anexa, depois de alguns dias fora, nunca sentia como se estivesse retornando para a sua casa. Mas foi diferente naquele dia. Claro, ela ainda tinha sentimentos pesados e conflituosos dentro de si mas, mesmo com toda aquela tempestade, sentia-se revigorada ao ponto de tentar enxergar as coisas ao seu redor com novos olhos.

Quando sua avó a abraçou, sentiu-se protegida. Fora um longo e apertado abraço, repleto de um silêncio um tanto significativo, e ela sentiu-se grata por ter alguém como sua avó em sua vida, porque aquele era o único tipo de afeto do qual precisava.

Gratidão. Aquela sim era um palavra que não rodeava o seu vocabulário há algum tempo. Ela não sabia ao certo o porquê, mas talvez fosse de fato por ter vivido tanto tempo naquele mundo fechado e mesquinho, especialmente no Kobe Suwon. Resolveu testar o significado da palavra naquele dia, antes de voltar para casa, quando esperou no quintal de Jimin que o mesmo regressasse da escola. Ele se espantou quando a viu sentada nas escadas da sua varanda, com uma bolsa média ao seu lado, e logo perguntou o que estava acontecendo. Ela o agradeceu por toda a ajuda, deu-lhe um longo abraço e disse que não precisaria ficar na casa dele, pois já sentia-se pronta para retornar para a sua.

Aigoo... mas quem irá me proteger dos fantasmas durante a madrugada? — perguntou, risonho como costumava ser.

Ela apreciava o fato dele nunca ter lhe enchido de perguntas sobre o que tinha acontecido, e aquela era mais uma coisa para lembrar-se de ser grata. Jimin era um ótimo amigo e tudo que ela podia fazer era agradecê-lo.

Então, ao cair da noite, já reinstalada em seu quarto, ela se permitiu apenas fitar o teto branco durante algumas horas. Em alguns momentos, teve tanto em sua mente que não conseguia ouvir e compreender seus próprios pensamentos; já em outros, seu consciente parecia um deserto de tão inabitado. Seria assim até que ela encontrasse algo para depositar todo o seu foco, ou pelo menos grande parte do mesmo, e ela sabia disso.

Por isso, resolveu procurar distrações. Não sentia exatamente vontade de explorar lugares noite a fora, contudo, chegou a conclusão de que uma caminhada dentro do próprio condomínio poderia ajudá-la a organizar a estante bagunçada que era a sua mente. Sua avó assistia a um programa de culinária na televisão, e chegou a perguntar--se mentalmente, com medo, se sua neta realmente voltaria — porém, preferiu não dizer nada além de um pedido para que ela se cuidasse.

Assim, Bo Ra iniciou sua caminhada pelo gramado novamente úmido da mansão, que circulava a área da piscina e se estendia até o jardim da frente. Ela tinha de admitir que, mesmo com todas as suas opiniões formadas sobre aquela família, ela ainda adorava a área verde construída com o único intuito de demonstrar o quão rica a família realmente era. Mesmo assim, era um belo jardim. Estava tão distraída reparando o quão bem cuidada eram as flores e as outras plantas, que não reparou que, na porta da mansão, o Sr. Kim desembarcava de seu carro particular. Bo Ra não sabia, mas ele havia acabado de acompanhar Taeyuna até praticamente dentro do seu avião de volta para a França, pois queria ter certeza de que a filha não voltaria a causar problemas para a família (pelo menos não naquele país). A mulher quis se despedir de Bo Ra, ou no mínimo desculpar-se com ela por tudo, mas, mesmo com todas as brigas, o Sr. Kim não havia permitido.

Então, Bo Ra finalmente deparou-se com o homem, o seu terno importado e a sua postura rígida. Ele estava exatamente como sempre esteve, mas aquele encontro fora completamente diferente dos outros que os dois já tiveram. Agora, ambos sabiam de tudo. Pela primeira vez em sua vida, Bo Ra viu no rosto do homem uma breve mudança que poderia ser de surpresa ou espanto, um sinal de que ele esperava o pior da adolescente. Talvez, ela tivesse o direito de lhe mostrar o seu pior. Ela poderia fazer um escândalo, acusá-lo de várias coisas, deixar com que os vizinhos ouvissem o tipo de pessoa que ele realmente era ou até mesmo rejeitá-lo — e, com isso, perder tudo o que tinha. Naquele momento, encarando o Sr. Kim em meio àquele silêncio infinito, ela soube reconhecer que ele era um mal necessário. Sem ele, ela não teria onde morar, o que comer e onde estudar, tornando-a basicamente alguém marginalizado. Além disso, havia a sua avó.

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Por isso, ela decidiu que não seria nem grata e nem burra. Curvou-se brevemente para frente para cumprimentar o Sr. Kim, o que nitidamente o pegou de surpresa. Mesmo assim, o homem era experiente o suficiente para saber o que aquele gesto significava: Bo Ra estava longe de se vender e de estar fazendo aquilo por dinheiro, porém, era madura o suficiente para saber quais sapos eram necessários engolir.

Ela, por sua vez, tinha em mente que estava fazendo o certo. Afinal, o Sr. Kim, para ela, estava tão morto quanto o homem enterrado no cemitério público que ela visitara mais cedo — a única diferença entre os dois era que aquele ali, na sua frente, lhe seria útil ao invés de machucá-la.