Identidade Homicida

Sorriso de plástico


Planta do Colégio

— Elsie Cotton. –o professor recitava a chamada escolar. Já era final de aula.

— Presente. – respondi sem ânimo.

— Oh, senhorita Elsie a estudante nova, não?- perguntou.

— Sim. - afirmei com uma mão apoiada na mesa segurando o queixo, a maçã do rosto parecia deformar-se. Estava quase dormindo, maldita aula de história.

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— Seja bem-vinda ao colégio, pode me chamar de Faraize. Embora as regras sejam um pouco rígidas, você se acostumará facilmente.

O professor prosseguiu com a chamada até o encerramento da aula.

Fui até o terceiro andar, local que servia como saguão entre os prédios masculino e feminino. Atravessei a passarela de vidro que levava ao dormitório das mulheres. Neste, ao longo do corredor estendiam-se vários quartos, onde dormiam, geralmente, duas garotas.

Cheguei frente à porta de meu quarto. Um monitor solicitava para que eu inserisse o keypass fronte um leitor. Uma leitura e a porta se abriu. Tão prático.

A suíte não era tão grande, tornando-se enriquecida pelos solenes adornos e tapeçarias que ali continham. Sabe o que ia ser melhor? Eu não tinha com quem formar dupla. Aquele quarto ia ser só meu.

Corri para me jogar na cama amontoada de futons.

— Tão macio... – comentei sorrindo enquanto fazia gestos semelhantes aos de alguém fazendo “anjos de neve”. Além de brando, o cobertor de algodão possuía uma essência agradável, semelhante ao chá que tia Agatha costumava preparar.

Cessei o riso e sentei-me na borda da cama com a mão do rosto. Fitei um porta-retrato que deixara em cima do criado-mudo. Eu e tia Agatha estávamos na fotografia. Tia Agatha, sempre tão otimista e jovial. “Não há quem não goste dela”, era o que eu pensava.

Levantei-me e fui em direção ao guarda-roupa. Abri-o e fitei o envelope pardo, deste, retirei os cartões vermelhos de dentro. Encarei os papéis por alguns segundos, o rumo que as coisas tomaram era inacreditável. Era uma questão de sobrevivência. Eu estava em uma situação arriscada, não poderia confiar em ninguém.

Alguém bateu na porta. Esta abria normalmente por dentro.

— Olá, me chamo Peggy. Sou a líder do clube de jornalismo aqui do colégio. É de costume nosso fazer uma pequena entrevista aos novatos. – sorria tentando parecer simpática.

— Ah... Claro. –respondi um pouco sem jeito.

— Certo. Qual é seu nome completo?

— Elsie Cotton.

— Sua idade?

E as perguntas foram fluindo assim, mecânica, e aos poucos. No final, Peggy agradeceu e despediu-se. Só assim que fechei a porta, que me dei conta:

— Não posso sair dando informações pessoais desse jeito!

Embora o sorrisinho falso de Peggy tenha me convencido de que não fui com a cara dela, ela não parecia um killer. É complicado.

O keypass alarmou. Hora do recreio, intervalo, lanchinho - como preferir.

Não havia refeitório, apenas uma cantina para a distribuição da merenda. Esta ficava na lateral do prédio principal. Havia apenas algumas mesas conjugadas ao ar-livre, pois os alunos preferiam ficar em outros lugares do colégio ou em seus dormitórios.

Decidi explorar a escola. O Keypass possui uma espécie de mapa, isso torna tudo mais fácil. Primeiro ponto: Clube de Jardinagem. Adoro flores, seria uma boa ideia!

Passei pelo corredor principal, onde troquei olhares com um misterioso garoto de calças militares.

Saí para o pátio, caminho para o clube.

Assim que entrei na enorme estufa, deparei-me com um rapaz regando algumas mudas. Um pequeno rádio tocava músicas Soft Rock antigas, em volume baixo. Era um ambiente com cheiro de incenso, trazia paz.

O garoto virou-se com um sorriso. Fiquei sem reação, as bochechas queimaram um pouco.

— A garota nova, certo? El...?

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— Elsie. - completei sorridente. Sentei-me em uma das mesas com sacos de sementes.

— Veio se inscrever para o clube de jardinagem?

— Gosto de plantas, mas mexer com terra talvez não seja para mim.

O rapaz deu um riso brando, tirou as luvas sujas de terra e estendeu a mão para um aperto.

— Me chamo Jade, prazer. – continuava a sorrir.

Era um sorriso verdadeiramente simpático, não como o de Peggy.

— Acho que não preciso me apresentar. – ri soltando sua mão.

— Então, o que te trouxe aqui? Gostaria de alguma planta medicinal?

— Não, nada. –dei um suspiro com o olhar evasivo.

— Bem... –Jade soprou com um ar de cansaço. – Preciso terminar isto aqui. – abaixou-se ao lado de alguns vasos de plantas.

— Precisa de ajuda?- levantei-me da mesa, agachando-me ao lado de Jade.

— Bem, já que se dispõe. – sorriu.

Ficamos um bom tempo trabalhando em conjunto. Jade era um rapaz amável e sensível, é custoso encontrar rapazes assim. Embora esse tipo de garoto não faça muito o meu biótipo.

— Será que pode pegar aquele saco de adubo? – apontou para um dos cantos da estufa.

Dirigi-me ao lugar indicado, onde visualizei que grande parte das plantas daquela estufa, eram ricas em toxina. Oleander, Mala mujer e...

— O que você plantou aqui? São “Trompetes de anjo”? –disse aproximando-me para tocá-las.

— N-não!

Cessei meus movimentos.

— Não... Toque-as... – continuou entre pausas.

— M-me desculpe. – Constrangi-me. Droga Elsie, você acaba de conhecer uma pessoa e já faz besteiras!

Jade abaixou o olhar. Depois de alguns segundos em silêncio, o rapaz retornou a levantar o olhar, agora mais alegre:

— Elsie, já que quer tanto me ajudar, será que poderia buscar uma coisa para mim? – o sorriso retornou em seus lábios.

— Ah, claro. Acho que seria uma boa oportunidade de conhecer a escola melhor. – sorri com um ar embaraçado. Pensei também como uma forma de enterrar o acontecimento de segundos atrás.

— Preciso que me traga um balde. Só isso. – seu sorriso tornava-se cada vez mais largo.

Senti arrepios só de observar sua última feição. E se ele fosse um killer? Eu posso parecer um pouco exagerada, entretanto, quando se trata de um “jogo” de sobrevivência, você não pode confiar em ninguém. O que não se difere muito de uma vida usual.

Certo. E agora? Em que diabos eu encontraria um balde? E por que eu aceitei fazer isso mesmo? Ah é! Porque eu sou uma idiota.

— Deve ter alguma despensa de limpeza nessa escola. Mas seria um tipo de lugar que o keypass não mostraria, naturalmente. – dizia para mim mesma enquanto caminhava pelo corredor principal, um lugar deserto.

Escutei uma vociferação vinda de alguma das salas fechadas. Era a voz de um homem, grave e firme. Parecia vir da sala da detenção, decidi dar uma espiada. Péssima ideia, Elsie.

Assim que me aproximei da porta, a maçaneta começou a girar. Merda, merda! Corri para me esconder na lateral de algum dos armários.

— E você ficará sem o seu videogame como punição! – um estrondo da porta fechando-se ecoou pelo corredor.

Um homem de grande porte foi em direção ao pátio. Seus passos chegavam a soar pesados.

Corri para frente da porta da sala de detenção. Apoiei as costas e respirei fundo, num alívio por não ter sido pega.

Mesmo o homem tendo batido a porta com tanta intensidade, estava mais solta do que eu esperava. Meu peso foi empurrando-a para trás. Para trás, para trás. Até que estatelei a cabeça no chão da sala de detenção.

Comecei a me contorcer no assoalho, virando de um lado para o outro com as mãos da cabeça. A dor era imensa.

— Merda, merda, merda! – resmungava.

Parei de contorcer-me ao escutar alguém rindo próximo a mim; era a voz de um garoto. Parecia ter convulsões de tanto rir. Voltei-me com desprezo para o rapaz.

— O-olá novata. – o garoto tentava disfarçar o riso. Sentava em uma carteira próxima à porta.

— Está rindo do que?! – levantei-me com a mão da cabeça, espremendo os olhos.

— N-nada. –virou o rosto com a mão na boca. Provavelmente, tentava conter o riso.

— Ah, fala sério, por que essas coisas só acontecem comigo?!

— Não se sinta mal com isso. Foi engraçado.

— Engraçado porque não foi com você. – resmunguei, procurando alguma coisa que se assemelhasse a um balde pela sala. Nem que fosse uma lata de lixo, qualquer coisa.

— Está procurando o que? – ele esticou o pescoço parecendo interessar-se mais no assunto.

— Um balde. – inspecionei debaixo da mesa de professor.

— Por que alguém procuraria por uma coisa dessas? – arqueou uma das sobrancelhas.

— É o que eu me pergunto. – respondi secamente. Eu já estava me arrependendo de ter concordado pela procura. – Sabe aonde posso encontrar um?

— Já tentou ir ao armazém de limpeza? – apoiou os cotovelos sobre a mesa e o queixo sobre os dedos entrelaçados.

— Como se eu soubesse onde fica...

— É bem fácil de chegar. Eu vivo me escondendo lá quando o inspetor Jack fica bravo. Jack é aquele cara que saiu da sala agora pouco. Ele me odeia. – riu serenamente.

Seu riso me fez paralisar por alguns segundos. Demorei em responder.

— Pode... Me falar onde fica? –fiz beicinho franzindo as sobrancelhas.

— Eu vou com você, cansei de ficar nisso aqui. –levantou-se bocejando.

— Mas você não pode, está na detenção!

— Esquece isso. Vamos fazer o seguinte: Eu te ajudo a achar a despensa e você recupera meu PSP depois.

— O que houve com ele?

— Inspetor Jack o levou. – cruzou os braços, irritado.

Ter que cruzar o caminho daquele cara não era uma boa, tinha quase o dobro do meu tamanho. Mas eu queria concertar minha “dívida” com Jade, não é legal acabar de conhecer uma pessoa e fazer papel de idiota. Na verdade, não havia motivos para temer Jack, era apenas um inspetor. Depois de pensar tanto, concordei.

Estávamos fronte a porta do corredor principal, esta levava ao pátio.

— Deixa eu te explicar uma coisa. – sussurrou o garoto. - O depósito fica na parte de trás do colégio. Você vai lá e eu fico por aqui, ok?

— O que? Por quê? Tá vacilando. – franzi as sobrancelhas.

— É sério, não posso sair daqui.

— Por que? O inspetor não está por aqui.

— O problema não é ele. Tem um pessoal dessa escola que não pode me ver, eles sabem que estou da detenção. Se me verem do lado de fora, com certeza vão me dedurar. – desviou o olhar.

— Sua relação com os outros não é muito boa, não é? –sorri provocativamente.

— Com toda certeza. – riu.

Alguns alto-falantes espalhados pelo colégio anunciaram:

Pessoal, pessoal! Corram todos para o telhado! Ocorrerá a maior briga de todo o colégio!

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— Essa voz é a Peggy? – questionei.

— Briga!- comemorou o garoto.

— Pare de brincadeira, é uma oportunidade perfeita para irmos lá atrás.

— Mas...

— Se ir lá pra cima, com certeza o inspetor vai aparecer no meio da briga e te notar. Assim você voltará para a detenção.

Consegui convencê-lo. Encontrei o balde na despensa, e de lá, seguimos para o Clube de Jardinagem. Depois eu o ajudaria com o videogame.

— Então você conheceu o Jade? – perguntou.

— Sim, ele pareceu simpático.

— Só parece...

— O que quer dizer com isso? - perguntei arqueando uma sobrancelha.

Chegamos ao Clube. Nenhum sinal de Jade, nem dos incensos, nem da música tranquilizante.

Fitei um papel vermelho no chão e agachei-me para pegá-lo.

— Se abaixe...! –antes de completar a frase, o garoto me empurrou pelas costas. Houve um estrondo violento.

Levantei-me vagarosamente do chão enquanto tossia. Uma fumaça impedia a visão.

— Ei, garoto! Cadê você?! - minha tosse progredia cada vez mais.

— Elsie, não respire isso! Essa fumaça tem essência de Strychnos!

— Que?! – perguntei enquanto olhava ao redor, tentando identificar de onde sua voz soava.

— Uma planta medicinal. Seus sintomas se assemelham aos de entorpecentes. Tente ficar calma!

Passos aproximavam-se aos poucos. Um sinal de presença aguçava cada vez mais, até que uma silhueta apareceu entre a névoa.

— O que achou do cartão? – Jade uma máscara respiratória para não inalar o produto. – Vamos, não precisa se segurar. Eu sei que você também é um killer. Uma pessoa comum confundiria o tóxico “trompete de anjo” com um lírio. O que você não fez.

— Ah... Então foi isso? - suspirei. - Puxa, você é esperto. – sorri sarcasticamente.

— Pare de brincadeiras! – exclamou com a voz rouca.

Rapidamente, veio em minha direção com uma longa tesoura jardineiro. Recuei alguns passos para o lado e comecei a correr pela estufa. A maldita fumaça ainda não cessara, mas pelo menos, auxiliava em minha escapatória.

— Apareça, Elsie! – Jade bradava. – Não adianta gritar por socorro, esta estufa possui painéis antirruídos, assim como todo este colégio! Ser morta logo no primeiro dia? Meus pêsames a você.

— Tenho que achar alguma coisa, alguma coisa. – sussurrava a mim mesma enquanto tateava uma mesa. A inquietação fazia minhas mãos tremerem, não sabia se Jade estava longe, ou se estava ao meu lado. Tentava inalar o mínimo possível da fumaça tóxica. E o garoto? Será que estava bem? Não queria tê-lo envolvido. O pior de tudo foi ter sido pego de surpresa.

Finalmente encontrei alguma coisa. Pela textura e a ponta, parecia uma espécie de ancinho.

— Ótimo. –murmurei.

Agora só faltava eliminar aquela fumaça atormentadora. Foi aí que me lembrei: Os irrigadores! Em uma escola tecnológica como aquela, era óbvio que teria. Outro obstáculo: Onde ficavam os irrigadores?

— Ei garoto! Você está bem?!- perguntei ao rapaz do PSP, mesmo sem localizá-lo.

— Elsie! Cadê você?!

— Eu também queria saber! –sorri desanimada. – Me responda uma coisa: Esse vidro é blindado?!- perguntava aos brados. Era arriscado, pois Jade poderia me localizar.

— Não. Por quê?!

— Obrigada!

Segurei o cabo do ancinho com força, contei mentalmente até três e estilhacei um dos painéis de vidro. A fumaça começou a dissipar-se lentamente.

Um vulto aproximou-se rapidamente por trás. Ao tentar desviar para o lado, levei um raspão da tesoura no ombro. Não era profundo, mas o suficiente para sangrar.

— Vadia! – as pupilas de Jade comprimiram-se.

Flexionou os pés sobre o solo e impulsionou o corpo para frente. A tesoura foi em direção ao meu rosto, coloquei o ancinho à frente para defesa. Ambos os objetos friccionavam entre si.

— Vamos, diga quais são suas ambições aqui. – disse Jade. –Deixe-me adivinhar: Quer ajudar alguém querido?

Sim, sua hipótese estava certa.

Trinquei os dentes, tentando impeli-lo para trás.

— Quanta inocência... –riu. – O simples prazer de matar já me deixa animado! –exclamou. – Fazer pelos outros é inútil! No final, eles sempre irão se esquecer de você!

Minha força parecia diminuir aos poucos. Meus braços já estavam mais trêmulos que o habitual. Talvez eu já tivesse inalado uma quantidade considerável da fumaça.

— Elsie, abaixa! –exclamou o garoto do videogame.

Como num reflexo, fiz o que pedia. Um punho fechado atingiu o maxilar de Jade, e este, caiu desacordado. Levantei-me com espanto e encarei-o no chão.

— Está tudo bem?- perguntou o rapaz.

Assenti com a cabeça, ainda tremendo um pouco. Checamos a respiração de Jade; tudo em perfeito estado. Era a oportunidade perfeita para eliminá-lo, mas... Acho que não estava pronta para esse fardo.

Naquele instante, eu tinha me dado conta de que o sorriso de Jade sempre foi falso. Eu estava enganada em pensar de que ele era dócil. Bem feito para mim.

Depois de toda a perseguição, uma ideia veio em mente. O garoto parecia já desconfiar de Jade, sabia sobre o veneno das Strychnos e o mais estranho: soube reagir sobre pressão; como se soubesse que qualquer coisa ruim
poderia acontecer.

— Elsie me dê o ancinho e saia daqui.

Toquei-lhe o ombro:

— Espere, não é legal te chamar só de “garoto”. - dei uma pausa.- Qual é seu nome?

— Claro, como pude me esquecer? – sorriu balançando a cabeça. –Armin. Melhor assim? Se sente mais confortável?

— Sim. – respondi com um riso brando.

Armin retirou o rastelo de minha mão:

— Saia daqui, Elsie.

— Armin, eu já entendi tudo.

Fitou-me com o olhar de dúvida. Coloquei minha mão sobre a que ele segurava o ancinho:

— Você também é um killer, certo?- sorri.

Sua expressão confirmou completamente minha incerteza. Armin pareceu surpreso.

— Sei que você deve achar que somos inimigos, mas não precisa carregar esse fardo sozinho. – apertei a mão que segurava o instrumento com mais intensidade. Levantamos o ancinho simultaneamente, e descemos com toda nossa força em Jade.

Seu sangue jorrou, o forcado manchou-se.