Identidade Homicida

Correntes do passado


[Elsie]

A casa ficava num bairro afastado, bem marginalizado; longe de Sweet Amoris. Tive que pegar um micro-ônibus, descer, e ainda caminhar por alguns minutos. Tava chuviscando e não tinha ninguém cruzando pelas ruas, nem carros. Nunca tinha ido até aquele lado da cidade e essa monotonia me dava um baita desconforto.

Enquanto andava pelas ruas procurando e confiscando o endereço que anotei na palma da mão, comecei a devanear. Fui longe na mente. Imaginava tia Agatha andando por aquelas calçadas, mais nova. Mãos dadas com o tal Christopher, talvez.

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Senti um vazio. Estava sozinha num lugar desconhecido. A garoa congelando minhas orelhas. Tinha esquecido o guarda-chuva e tava torcendo pra que o clima não piorasse quando saísse de lá. Não sabia o que estava prestes a ouvir ou quão cedo ou quão tarde encerraríamos o assunto. Isso queimava meu intestino de ansiedade.

Tinha chegado no endereço certo. Uma casinha sem quintal, com uma parede vermelha descascada. Diferentemente das casas e construções mais próximas, aquela casa parecia ter parado no tempo. A porta envernizada, o telhado de madeira, as calhas, os detalhes das janelas; tudo ali era outra realidade, tudo parecia ter congelado vinte anos atrás.

Toquei a campainha (que, por sinal, era um modelo antigo, com som já desregulado). Não tive como avisar a visita, esperava na sorte que tivesse alguém.

Ninguém veio. Toquei mais uma vez.

Demorou um tempo, mas abriram a porta:

— Posso ajudar? — disse a mulher, na faixa dos cinquenta e pouco, com uma baita carranca, roupão de seda amarrotado e cabelos pintados de loiro-palha.

— Bom dia. — sorri. — Eu soube o endereço da senhora por meio de um contato e…-

— Você é mais uma daquelas cobradoras?! — exclamou de repente. — Já disse que não tenho dinheiro!

— Quê? Calma!

Já prestes a bater a porta na minha cara, impedi segurando com a mão:

— É sobre o seu filho.

Ela desistiu de impor sua força pra fechar a porta, seu rosto de repente desfez a carranca; agora seu olhar refletia dúvida, tristeza.

Decidi apelar:

— Sou filha da Agatha.

A mulher ficou pensativa por alguns instantes, seus olhos oscilaram de um lado pro outro. Sem trocar olhares, respondeu:

— Entra.

[Armin]

— Hoje é o nosso aniversário, Alexy. — falei com um sorriso, sentado na cadeira de visitas, e dei um longo suspiro oscilante, olhando a maca e seu corpo estendido nela, preso a fios e aparelhos.

Apoiado entre a parede e o topo da maca estava o “Herói da Felicidade”, como Kentin chamou; um ursinho vestido de máscara e capa que ele tinha farmado durante o evento de não-sei-quantos anos daquele colégio. Achava a pelúcia bem simpática, se quer saber. E sabia que quando Alexy acordasse e soubesse que o presente era do Kentin, não ia soltar mais.

Sorri mais uma vez, só de pensar.

— Maioridade agora, chorão. — falei. Alexy continuava deitado, olhos fechados e rosto meio pálido. — A gente vai poder dirigir, não é foda? Eu vou comprar um carro pra gente. Vou deixar você dirigir se quiser. Mas se não quiser também não precisa; Mario Kart 8 me fez um expert, você sabe. Ah, e não se preocupa; não vou meter um colante de Bayonetta no capô. Sei que seus namorados ficariam incomodados com isso e você ia morrer de vergonha alheia. Era brincadeira quando falei isso aquela vez, chorão.

Mais silêncio por parte dele; o nebulizador tapando os lábios e o nariz, o monitor cardíaco apitando estável.

Suspirei fundo de novo. O peso continuava no peito, minha garganta continuava sufocada. Que quer que fosse falado, todas as minhas confissões, todos os meus desejos e mesmo todas as possibilidades que eu poderia oferecer não eram o suficiente pra trazer Alexy de volta. Era como se sua alma tivesse sido desligada, por um tempo. Seu corpo ainda fazia tudo o que um corpo vivo faria; ele suava, excretava, tinha que comer, se hidratar, mas o principal de tudo não tava ali. Ele era -- eu acho -- como uma árvore; que reage ao tempo mas não se move; tá viva, mas não fala, não ouve.

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Entortei o dorso pro lado, na intenção de catar a mochila que tinha empoleirado pelas alças nas costas da cadeira. Botei ela no colo e abri o zíper. Ao meio das tralhas tinha o meu tesouro, nosso presente, que retirei com a mais pura sutileza do meu ser e ajeitei nas coxas. Dos bolsos menores catei o isqueiro e as duas velinhas, depois descansei a mochila no chão, perto das pernas.

Tirei a tampa protetora de plástico do tesouro: Bolo de cereja, muito glacê e castanha triturada. Na verdade, era valentia da minha parte chamar aquilo de bolo—- tava mais pra um cupcake largo, do tamanho da minha palma. Mas era suficiente, de toda forma; bastava pra nós dois e, também, no final das contas, eu ia ser o único a comer.

— É melhor a gente fazer isso logo. — falei, depois de ter mergulhado a base das velas no bolo, tentando isqueirar a ponta. — Se eles sentirem o cheiro de fogo é capaz de me expulsarem. — ri, embora meio tenso.

O pavio inflamou e agora tínhamos duas velas acesas.

— Você lembra? Quando a gente era criança, o pai botava uma vela pra cada um. Como eu era o mais velho eu sempre assoprava antes e acabava apagando a sua. Você ficava puto, puto demais. E começava a chorar, pra variar. — soltei outro riso, encarando o fogo dançar, trazendo o calor das memórias.

De repente, na mesma brusquidão que o pequeno lume da vela era extinto pelo sopro babado da criança-Armin, voltei pro agora, num flash.

Confesso: Não era o nosso melhor aniversário, mas, ainda assim, tinha algo de especial nele, mesmo que as coisas não tivessem mudado muito, exteriormente. O fato é que, desde que Alexy deitou naquela maca pela primeira vez, a culpa me impediu de fazê-lo companhia. Fingi esquecer as datas comemorativas. Não comemorei meus dezessete, não comprei presentes no Natal. Babaca.

Eu não acho que seu irmão ficaria contente caso soubesse dessa sua autodepreciação constante, relembrei do que Elsie tinha dito outro dia, na enfermaria; foi essa conversa que tinha me dado um gás. Me fez lembrar quem era Alexy de verdade. Ele não me julgaria, qualquer fosse a minha escolha; e ele sabe que o que escolhi foi pro nosso bem. Lógico que sabe.

Arrastei a cadeira pra mais perto da maca e hasteei o bolo no nível de nossos rostos.

— Feliz aniversário, Alexy. — sorri, tão, tão triste.

Assoprei uma vela. Consegui deixar a segunda acesa.



[Elsie]

Bom. Comprovei a tese: a casa realmente tinha parado vinte anos atrás, inteiramente.

Logo assim que entrei, o odor rançoso de sapato velho entupiu meu nariz. A mãe de Christopher foi na frente e eu atrás, caminhando, bisbilhotando com os olhos para todos os lados feito uma criança perdida num antigo museu. O piso de madeira rangia como se fosse quebrar.

Por todos os lados: móveis rústicos, espelhos, relógios, símbolos religiosos, quadros monocromáticos. Até a casa de Murple tinha um aspecto muito mais moderno que aquilo. Ah! Mas os quadros eram um aspecto interessante: tinha um monte de gente jovem que não era mais jovem.

A mulher se sentou num divã ao centro da sala e apontou para que eu sentasse no sofá verde-musgo à frente. Ela encurvou o corpo para frente, ficando de pernas abertas e apoiando os cotovelos nos joelhos numa posição nada recatada ou confortável de se ver (o roupão não cobria as regiões de baixo e deixava à mostra uma tenebrosa roupa íntima, urg). Me encarava sem nervos -- ficou assim um tempo considerável --, analisando tudo de cima a baixo.

— Você realmente é filha dela. — sorriu, de repente. — Que coisa mais engraçada. — balançou a cabeça risonhamente. — Sou a Amélie, prazer.

Ela hasteou a mão e nos cumprimentamos.

— Elsie Cotton. — falei, encenando um sorriso.

Cotton, Cotton… — cantarolou, olhando para o nada. — Bom, — uniu as mãos uma à outra. — Como está sua mãe?

— Minha mãe faleceu faz alguns anos, senhora Amélie.

Amélie na hora trancou o rosto. Toda a simpatia escoou ralo abaixo; sua expressão ficou áspera, olhos arregalados e perdidos, perplexa.

— Mas, meu Deus! O que houve com ela?!

— É por isso que procurei pela senhora.

— Por... mim?

— Sim. — tentei manter a postura altiva e madura. — Recentemente eu descobri um caso relacionado à minha mãe, de décadas atrás, em que ela tinha desaparecido junto do seu filho.

As abas do nariz de Amélie oscilaram e ela desviou o olhar.

De repente, ela se entortou para trás, apanhando um porta-retrato que estava numa pequena cômoda atrás do divã.

— Esse era o Christopher. — virou e se inclinou pra mim, entregando o objeto.

Uma colorida, porém desgastada fotografia. Christopher era o único na foto, que tinha sido tirada aparentemente numa praia. Cabelos escuros e com um corte de franja grotesco mas bastante comum na época. O sorriso talvez tivesse sido o motivo pelo qual tia Agatha tinha se apaixonado por ele; com certeza.

— Lembro quando ele me ligou dizendo que tinha começado a namorar. Tava todo contente. Ele estudava num colégio interno, Sweet Amoris, com sua mãe. Foi lá que eles se conheceram.

Balancei com a cabeça afirmativamente enquanto re-entregava o porta-retrato pra ela. Não tava nem um pouco afim de contar sobre a minha vida; decidi ficar quieta e deixar a história rolar.

— Eram um casal muito bonito de se ver. Pareciam muito amigos, acima de tudo. — disse, enquanto contemplava melancólica o retrato.

— Sobre o desaparecimento… — trouxe o assunto à tona, bruscamente. Juro que foi sem querer. — Quando aconteceu?

— Foi alguns meses antes deles se formarem. Não lembro o ano.

— Hm… A pessoa que me indicou a senhora me disse que poderia me explicar melhor sobre esse episódio. Qual foi a conclusão?

— Bem… Christopher até hoje não foi encontrado. — Amélia engoliu grosso enquanto olhava para a fotografia de seu filho, o choro visivelmente entalado na garganta. Deu uma respiração funda. — Eles sumiram de repente. Não só Chris, mas outros alunos também. Ninguém, exceto sua mãe; ninguém mais voltou.

— Tantas pessoas desaparecidas e nenhum sinal? Nenhuma ideia de quem teria armado isso?

Amélie negou com a cabeça.

— A minha mãe… Disseram que assim que encontraram ela…

— Sim. O estado de Agatha era perturbador. — Amélie mirava a fotografia, mas seus olhos pareciam concentrados em outro mundo agora. — Magra, muito magra, como se não comesse direito há meses.

— Disseram que ela foi internada numa clínica.

Amélia ficou quieta por um tempo. Ela recolocou o porta-retrato no lugar e se voltou atenta pra mim, cruzando as pernas:

— Sim… Ela dizia coisas sem nexo. Coisas que até hoje me pego pensando se ela dizia a verdade.

— Que tipo de coisas?

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— Tem uma que nunca vou me esquecer... — uniu as mãos sobre a coxa. — Ela disse chorando, descontrolada, olhando nos meus olhos e puxando a minha blusa... — gesticulava as ações:

— “Eu matei o Christopher”.