Mantenho um livro com os nomes e estes

Apenas vão tão longe para você enterrá-los

Tão fundo e lá vamos nós

Eu hesitei antes de passar pela porta de vidro que dava para a clínica. Fazia um pouco mais de uma semana que eu não via Melaine, desde a noite em que nos encontramos na casa da Sra. Mason. E o que me motivava aqui era mais a vontade de vê-la do que a dor de garganta e o desconforto no corpo que eu sentia. Eu não entendia o que tinha acontecido. Ela sempre estava lá no bar, falava pouco, mas a presença dela me reconfortava. O que tinha acontecido naquela noite que mudou tudo?

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Ficamos em silencio por tempo demais. Eu não sabia o que dizer. Eu não esperava conhece-la. Eu não esperava que alguém me chamasse a atenção e fizesse eu me importar tanto sem eu mal conhece-la.

Me concentrei no que estava a minha frente. O que todos na cidade chamavam de hospital era uma pequena casa branca, com um jardim congelado. Eu sabia que havia profissionais da saúde na cidade, mas eles trabalhavam indo nas casas e raramente iam até aquele “hospital”, inclusive trabalhando em cidades próximas. Mas a prefeitura sempre tomava cuidado em ter um médico de plantão na clinica, e esse médico agora era Melaine.

Finalmente cruzei a porta, passando pela pequena sala de espera vazia. Era quase horário do almoço e justamente por isso eu tinha escolhido aquele horário, confiando que estaria mais vazio. A porta da sala de Melaine estava aberta e eu podia vê-la sentada à mesa, distraída com o computador. Bati rapidamente na porta para anunciar minha presença.

Melaine levantou os olhos e rapidamente ela abriu um sorriso. Dessa vez ela sorriu de verdade, com olhos e bocas, e eu senti meu coração se acelerar e um incomodo frio na barriga. Ela estava feliz em me ver, assim como eu estava feliz em vê-la.

–Sam! – ela se levantou num pulo, deu alguns passos em minha direção e depois parou, aparentemente sem saber o que fazer.

Entrei de vez na sala e Melaine se sentou novamente, indicando para que eu me sentasse à frente dela.

Foi o que eu fiz. Melaine ficou me encarando. Eu tinha me distraído, observando todo o consultório a minha volta. Era decorado em pêssego e branco e eu sabia que não havia nada que era de Melaine lá. Eu reconheceria. Me mexi desconfortável. Percebi que ela estava esperando eu falar.

–Ah. – disse. – eu estou com essa dor de garganta há uns dias. Dor no corpo. Não deve ser nada.

–Teve febre? – perguntou ela.

–É, eu suponho que tive. – falei. Eu nunca fui a médicos quando eu fiquei doente, a minha vida toda. De fato, eu só tinha ido ali porque queria ver Melaine. Eu sabia exatamente o tipo de medicamento que eu precisava comprar. Sim, eu só queria ver se ela estava bem. Ela parecia tão perdida e sozinha naquela cidade quanto... Bem, quanto eu.

–Hmm, você pode ir até a maca?

–É, claro. – levantei, me sentindo desconfortável. Melaine parecia estar sem graça, e não deixava de me perguntar se tinha sido um erro ir até ali. Mesmo assim, me sentei na maca e tomei coragem para falar o que eu realmente queria dizer – não tenho visto mais você.

Ela pareceu surpresa.

–É, estive ocupada com algumas coisas. – ela desconversou – parece que muita gente descobriu que médicos existem recentemente e meus dias tem sido muito cheios. Você teve sorte de pegar um horário vazio.

–Entendo. – falei. Ela ainda não tinha começado o exame. Então, Melaine se virou, calçando luvas e pegou uma espátula de madeira, jogando a embalagem num lixo próximo.

–Abra a boca. – ela tirou uma pequena lanterna do bolso e observou a minha boca, usando a espátula para afastar a língua. – ok. Vou precisar que, hm, você retire o casaco e a camisa.

–Ok. – respondi. Estava frio, eu estava com frio, e senti minha pele se arrepiar. Sabia que Melaine estava fazendo um procedimento médico, mas queria sentir o toque dela em minha pele.

Ela deu a volta na maca, e o que eu senti foi o contato gelado de metal do estetoscópio.

–Inspire normalmente e solte o ar pela boca. – ela colocou o estetoscópio em vários pontos das minhas costas, que para mim pareciam quase que aleatórios, procurando ouvir alguma coisa que ela deveria saber o que era.

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–Está tudo bem – ela disse, voltando para a minha frente – você só tem uma amidalite. Não é sério, o ruim é que dói demais né?

–É. Dói o corpo todo. – falei, me vestindo, enquanto ela voltava para a mesa. Eu não me importava comigo, mas estava aliviado que Melaine estava bem. Não tinha acontecido nada com ela. Cheguei a me perguntar se o mero fato de eu me importar com ela a colocaria em risco. Cheguei a temer que eu a encontraria morta, ou que eu não a encontraria, apenas traços de uma tragédia.

Eu ainda temia que ela não fosse humana.

Em uma outra vida, se eu fosse outra pessoa, se eu não fosse marcado pela morte, eu a convidaria para sair. Eu queria passar mais tempo com ela. Eu não esperava sentir mais nada, mas a questão é, eu agora estava sentindo. E eu deveria sair correndo, me afastar, não ir por esse caminho. Eu não poderia nem ao menos ser amigo dela. Qualquer pessoa que se aproximasse de mim estava destinado a morrer. Eu sabia que a solidão era o mais seguro para mim, mas eu não queria ficar sozinho. Eu ainda sonhava, sonhava com um dia que eu teria casa e uma família, e eu estava projetando todos esses sonhos em Melaine. Não sabia qual o motivo, talvez por ela ser nova na cidade que nem eu. Mas não podia. Não devia.

Ela me entregou as orientações e os medicamentos, e eu me despedi, sem dizer nem metade das coisas que eu gostaria.