O mundo tinha acabado e só o que restava eram as trevas. Os últimos minutos, ou assim lhe parecia, tinham sido como uma lâmina afiada que cortava sua pele, arrancando-lhe o que tinha de mais precioso. Não havia mais esperança. Não havia mais cor. Não haveria mais dias ensolarados e felizes, porque a sombra que agora tapava o seu céu era pesada demais para ser tirada dali. Era sólida demais para se desmanchar com o vento. E o pior de tudo, é que ela era insuportavelmente estúpida e dolorosa. Ela sabia que, a partir daquele momento, a sombra não mais a deixaria em paz. Pra onde quer que Peggy fosse, lá estaria ela, intransponível, para lhe lembrar o quanto tinha sido idiota. O quanto tinha sido burra o suficiente para acreditar, mais uma vez, que sua vida tinha solução. Por muito tempo ela achou que a solução fosse ele. Como ela estava enganada!

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Sua noite tinha sido tão horrível, tão impossível, que ela não se lembrava ao certo de como tinha ido parar ali. Na verdade, ela nem se lembrava de que tinha mesmo ido a algum lugar. Sua mente estava marcada apenas pela bizarra visão de Pierre se agarrando com Eillen. Ela queria poder esquecer aquilo. Tentando ignorar a dor, finalmente abriu os olhos. A luz do sol brilhava ironicamente em seu rosto. Com algum esforço, ela levantou a cabeça, só para se dar conta de que ela latejava de dor. Com um gemido, ela voltou para o travesseiro, tentando entender quem poderia a ter colocado ali.

-Peggy? Como você se sente? – a voz doce de Bel soou em um sussurro ao seu lado.

-Bel? O que aconteceu? – tornou Peggy, ignorando a pergunta da amiga.

-Você não se lembra... de nada? – ela disse cautelosamente.

-Eu lembro – Peggy respondeu em uma voz estrangulada – eu só não entendo... como foi que eu cheguei até aqui? – ela não se lembrava de ter estacionado o carro na frente da casa de seus pais.

-Bem, nós esperávamos que você nos dissesse isso hoje, porque ontem, quando você chegou, tudo o que você fez foi desabar ao chão. Você estava ardendo em febre. Parecia... bem, parecia que você estava delirando – explicou Bel, ainda cautelosa.

-Eu disse alguma coisa?

-Você não disse nada. Na verdade, tudo o que você fez foi gritar o tempo inteiro. Eu não teria conseguido trazer você aqui pra cima sem a ajuda do seu pai.

-Oh, não, ele estava aqui também?

-E a sua mãe. Eles ficaram muito preocupados com você, sem saber se te levam pra um hospital ou não. Até que Margareth decidiu te dar um calmante e te deitar na cama.

-Foi por isso então que eu apaguei...

-Você parecia desesperada... o que realmente aconteceu?

Peggy engoliu em seco. Ela considerou por um momento inventar alguma história fantástica, mas a sua fraqueza não deixaria sua criatividade fluir. Com um aperto no estômago, ela se decidiu pela verdade.

-Eu e Pierre tivemos uma briga feia ontem – ela começou, a voz lhe custando a sair.

-De novo? Vocês não têm tido muita sorte ultimamente, não é?

-Dessa vez foi... diferente! Nós... terminamos... – Peggy suspirou.

-Tudo bem, todo casal passa por crises, vocês vão superar isso – encorajou Bel.

-Não Bel, isso não é uma crise! A verdade é que eu e Pierre nunca deveríamos ter ficado juntos, eu tinha que saber que isso não ia dar certo de novo!

-Eu não entendo...

-Ele me traiu! – disparou Peggy, sua voz saindo ameaçadora, para a sua surpresa. Ela tentou se controlar – Ele esteve me traindo esse tempo todo, conspirando com Chuck e os amigos dele. Não tem mais volta, entende?

Bel balançou a cabeça lentamente.

-Você não quer me contar o que aconteceu... ontem? – ela disse, cuidadosa.

-Eu vou contar – ela soltou um longo suspiro – só me dê alguns minutos, minha cabeça ainda está rodando e eu preciso de um banho.

-Ah, claro! Você quer que eu te ajude?

-Eu acho que eu posso fazer isso sozinha – ela disse com a voz vazia, se inclinando para a frente para que pudesse se levantar.

***

-Você não devia ter feito – a voz de David era quase febril em seu desespero – Pierre não vai suportar ficar sem ela, eu sei disso.

-Pierre já passou por coisas muito piores do que essa, David, se acalme. Tudo vai ficar bem agora – o sorriso de Chuck parecia sincero, apesar de ter algo lhe torturando em seus olhos.

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-Como você pode dizer que tudo vai ficar bem? Você tem idéia do que fez na vida de Pierre? Ele está arrasado agora e a culpa é sua. Peggy era a coisa mais importante pra ele, e você o destruiu... que tipo de amigo é você? Porque...? – David parou no meio da frase ao ver que Chuck se contorcia, suas mãos indo para frente e para trás em um movimento estranho. Um arrepio percorreu sua espinha, fazendo-o se lembrar de anos atrás. Será que o que tanto torturava Chuck naquela época o torturava agora também? Seria possível que ele ainda sofresse?

-Não é nada pessoal, David, eu só... não pude suportar... vê-lo feliz daquela forma enquanto que eu... – ele não conseguiu prosseguir. Seu corpo se dobrou ao meio, as mãos se entrelaçaram em seus joelhos, fazendo-o parecer uma bola enquanto ele tentava segurar as lágrimas.

-Chuck, ainda é... aquilo? – disse David, a voz aterrorizada pela repentina lembrança do passado.

-Sempre... – gemeu Chuck.

-Porque você não me disse antes?

-Como você acha que eu me sinto sobre isso?

David vacilou por um momento. Estava dividido entre a dor de Chuck e a de Pierre. Tanta coisa havia acontecia em um único dia. Bel agora parecia pertencer a um mundo muito distante e inalcançável. De que lado ele ficava? Chuck tinha agido muito mal, mas seria mesmo certo condená-lo sabendo de seu sofrimento? E o sofrimento de Pierre? Como ele poderia condená-lo a uma vida infeliz sabendo que ele era totalmente inocente naquela história toda? Ele sequer imaginava o que se passava com Chuck. David decidiu ficar na retaguarda.

-Mas e Peggy? Ela poderia ter se machucado pra valer, afinal, ela não tinha condições de dirigir naquele estado... – sua voz foi sumindo enquanto via o olhar de Chuck endurecer.

-Eu a levei pra casa. – ele disse, sem emoção.

-O que? Mas eu pensei que você a odiasse – exclamou David, confuso.

-Não tanto para querer vê-la morta – um sorriso ácido passou pela sua face.

-Cada vez eu te entendo menos.

-Você não tem que entender – sua expressão mudou de repente, se tornando mas amarga – é só manter sua boca fechada.

-Mas... Pierre está sofrendo...

-Você me prometeu se lembra? Há oito anos atrás. – Chuck disse, se tornando áspero.

-É claro que eu me lembro... eu não vou quebrar a minha promessa – ele o acalmou. Mas a sua voz saiu muito mais fraca da que ele pretendia.

***

Os olhos de Bel estavam arregalados e sua boca se pendia bobamente, segurada pelos ossos de sua mandíbula inferior. Peggy finalmente lhe contara tudo. Desde o baile infeliz até a noite em que um sofá e duas pessoas lhe feriram mortalmente. Peggy ofegava recostada no travesseiro colocado transversalmente para que ela pudesse se sentar. Há qualquer momento Margareth chegaria com uma bandeja do seu café-da-manhã, porque Peggy ainda não se sentia bem o suficiente para descer as escadas.

-Nossa, isso é tão... horrível – ela disse, escolhendo as palavras com cuidado – e eu que pensei que nada poderia ser pior do que o que David me fez...

-Parece que nós não temos muita sorte com o amor – ironizou Peggy, dando um sorriso azedo.

-É, é o que parece, mas... tem uma coisa nessa história...

-O que?

-A carta... você nunca investigou para saber quem a mandou?

-Pra quê? Isso só iria prolongar ainda mais o meu sofrimento!

-Mas você nunca teve curiosidade em saber...

-Isso mudaria as coisas? Ela era verdadeira no final das contas.

-Não sei... tem alguma coisa estranha com essa carta.

Peggy a olhou, incrédula.

-Do que você desconfia?

-Como essa carta veio parar nas suas mãos? – ela disparou, ignorando a última pergunta da amiga.

Peggy sentiu que a conversa tinha saído de um clima de consolação e apoio para passar a um nível investigativo que não combinava em nada com Bel.

-Alguém a deu para que minha mãe me entregasse mais tarde... estava chovendo, a pessoa não queria se molhar, então ela não podia me esperar para entregar pessoalmente, entende? – ela explicou, revirando os olhos, como se isso fosse a coisa mais óbvia do mundo.

-Mas você não perguntou para a sua mãe quem tinha trazido a carta?

-Eu já disse que isso não era importante... porque esse monte de pergunta agora? – desconfiou Peggy.

-Porque eu acho que alguém pode ter te mandado essa carta só pra te machucar.

-Acontece que eu teria me machucado muito mais se eu tivesse ido àquele baile e dado de cara com... aqueles dois.

-Mesmo assim, eu acho que você deveria investigar...

-Bel, que importância tem esse baile agora? Isso foi há séculos atrás e, sinceramente, eu tenho mais motivos para me preocupar com o presente do que me martirizar por uma coisa tão pequena.

-Você não acha que Chuck pode ter tido alguma coisa a ver com isso? – Bel continuou, como se a opinião de Peggy não fizesse a mínima diferença.

-E porque Chuck faria isso? – Peggy a olhou com olhos arregalados.

-Porque ele te odeia? – Bel levantou os ombros.

Peggy olhou para a amiga cautelosamente, enquanto pensava em uma resposta que não atiçasse ainda mais a curiosidade de Bel. Peggy jamais poderia contar à amiga o que acontecia com Chuck.

Não foi necessária nenhuma resposta, afinal, porque Margareth se meteu no quarto nesse momento, trazendo uma enorme bandeja com comida suficiente para quatro pessoas.

-Como você se sente querida? – ela disse em uma voz desnecessariamente doce enquanto colocava a bandeja no colo da filha.

-Pra falar a verdade, enjoada – falou Peggy, sentindo uma nova onda de desconforto em seu estômago.

-Oh, filha! Porque você não bebe uma xícara de café? Talvez você se sinta melhor...? – ela parou na metade da frase ao ver a expressão no rosto de Peggy.

-De verdade, eu não quero nada.

Margareth olhou com olhos confusos para Peggy. Bel resolveu se aproveitar desse momento de distração para continuar com as suas investigações:

-Marga?

-Bel? – ela chamou, virando-se para a garota.

-Eu estava pensando se você poderia me responder uma pergunta... é... sobre o baile de formatura do colegial de Peggy.

-O... baile? – espantou-se Margareth.

-É só que Peggy estava me contando sobre ele e eu fiquei curiosa sobre uma coisa. Será que você ainda se lembra da pessoa que trouxe uma carta à ela naquele dia?

-Bem, como é que eu poderia me esquecer? Aquilo foi tão estranho...

-Então você se lembra de quem trouxe a carta?

-Foi David, é claro!

-David? – arregalou-se Bel.

-Sim... estava chovendo naquele dia, sabe? Ele estava com uma capa de chuva enorme, a franja tampando metade do seu rosto, mas era ele, sem dúvida. Ele não me parecia muito a vontade com aquilo. Pra ser sincera, ele parecia estar fazendo aquilo à força, como se fosse uma coisa muito vergonhosa o que ele estava prestes a fazer. Ele me passou a carta e apenas disse “entregue à Peggy”. Depois disso ele se foi.

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Bel ainda estava com o queixo caído quando Peggy levantou correndo rumo ao banheiro.

-O que houve querida? – gritou Marga, indo atrás da filha.

-Eu acho que eu vou...

Antes que ela pudesse completar a frase, o barulho de uma cascata se encontrando com algo não menos líquido despertou Bel de seu devaneio, enquanto o mau cheiro se espalhava pelo quarto quente de Peggy.

A amiga não iria gostar nada em saber que Bel visitaria seu ex-namorado, mas ela precisava fazer. Tinha que encontrar um jeito de juntar as peças desse quebra-cabeça torto e David teria que lhe ajudar. Mas do que isso, ele tinha a obrigação de lhe contar toda a verdade.

***

-Bel? – exclamou David, surpreso pela visita inesperada.

-Olá, David! Será que eu poderia entrar um pouco? – ela disse em um tom formal.

-Claro – ele se prontificou, mas Bel já havia entrado e se virava para encará-lo.

-Bel, você não imagina o quanto eu estou feliz por você vir aqui! Eu estive tentando conversar com você esse tempo todo, mas...

-Eu não vim aqui para falar de nós – cortou Bel.

-Não? – tornou David, confuso.

-Eu quero que você me diga porque você mandou aquele carta pra Peggy.

-O que? Carta? Do que é que você está falando? – ele entendia cada vez menos.

-A carta que Peggy recebeu antes do baile de formatura. Você sabe do que eu estou falando! – ela acusou.

Ele a olhou por um longo momento antes de dizer, escolhendo as palavras:

-Porque você quer saber disso agora?

-Porque eu acho que tem alguma coisa muita estranha nessa história. Peggy não vê porque ainda sofre pelo Pierre, mas algo me diz que muito mais coisas aconteceram naquela noite.

-Eu... bem – ele engoliu em seco – eu só achei que Peggy precisava saber o que Pierre tinha planejado pra ela – ele baixou os olhos.

-Você está mentindo!

-Porque eu mentiria?

-Você só está fazendo isso para acobertar Chuck, não é? O que foi que ele fez pra te convencer a fazer isso, afinal?

-Chuck não tem nada a ver com essa história...

-Chuck não tem nada a ver, não é? Eu pensei que você sentisse algum remorso pelo que me fez passar, mas já vi que estou perdendo o meu tempo – ela disparou, se preparando para ir embora.

-Não, Bel! Espera – desesperou-se David, a segurando pelo braço – é claro que eu me arrependo! Eu te amo!

-É um jeito estranho de amar!

-Eu... queria que as coisas pudessem ser diferentes, mas... eu sinto muito, eu não posso te contar...

-Então eu estava certa, é o Chuck, não é?

David apenas abaixou os olhos mais uma vez.

-Eu não entendo como você pode ter tanto medo dele...

-Eu prometi que não contaria... por favor, entenda isso Bel!

-Você não pode me contar, mas pode ajudá-lo a machucar as pessoas – reprovou Bel.

-Ele é meu amigo – murmurou David.

-E eu pensei que você me amasse...

-Eu te amo! Te amo com todas as minhas forças... se eu pudesse fazer alguma coisa pra te provar o quanto estou arrependido...

-Você pode, é só me dizer a verdade.

Ele não respondeu.

-Mas se você prefere ferir os sentimentos de Pierre por causa do Chuck eu não posso fazer nada... sabe, eu esperava mais de você!

-Que diferença faz? Não tem mais concerto para o que eu fiz...

-Talvez tenha, se você tentar... porque você não se dá uma chance? Uma chance de concertar as coisas!

-Pierre nunca me perdoaria...

-Então você prefere viver de mentiras? Prefere olhar pra ele todos os dias como se nada tivesse acontecido sabendo que o que fez o machucou tão profundamente?

David olhou demoradamente para os seus lindos olhos castanhos. Ela estava certa, é claro. Ele não podia mais continuar com aquilo. Ele nem sequer conseguia dormir direito à noite pensando nas coisas que estava fazendo. Ele se sentiu quase feliz por ter Bel ao seu lado agora. Pelo menos, iria contar a verdade para a mulher que ele amava. Tentando não pensar no que Chuck faria se descobrisse o que ele estava prestes a fazer, David disse lentamente:

-Está bem, Bel, você ganhou... eu vou te dizer tudo o que aconteceu naquele dia...