Hogwarts: uma outra história

Capítulo 117. Não é cigano, é Roma!


Capítulo 117. Não é cigano, é Roma!

Deve ser os atributos físicos extras de lobisomem porque eu ainda não acredito que apaguei com um simples soco na cara!

Eu nem vou começar uma problematização chique com o fato de que quem me acertou foi o - até uma hora atrás - meu paciente favorito, Maikai, porque isso só deixa a coisa toda ainda mais sinistra!

— Ei, dá para vocês dois andarem mais devagar? Tem um cara amarrado com um olho roxo aqui atrás! - Não perdi a ironia do fato que Maikai havia amarrado meus punhos juntos com o mesmo fio quase-infinito que eu usei nele nos nossos passeios pelo hospital.

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Estou começando a odiar a ironia da vida, de verdade!

Se um dos dois tinha me ouvido falar, fingiram muito bem que não, porque tanto a garota - agora usando uma saia longa, botas e jaquetas negras - quanto o próprio filho da mãe traidor caminhando como a Dora aventureira versão cigana na floresta escura, continuaram no mesmo ritmo intenso.

— Você é muito filho da puta mesmo, Maikai, se é que esse é mesmo seu nome! - Cuspi para as costas com um colete marrom surrado em cima de uma camisa branca, que ele também não estava usando na última vez que o vi no terraço. – Como pôde...

— Você quer calar a boca, gadjo infeliz? - Finalmente a menina se virou enfurecida e eu pude dar uma bela olhada em seus cabelos compridos combinando com as sobrancelhas escuras e traços fortes. Era uma desgraçada muito bonita, infelizmente. – Falta muito pouco para eu te jogar numa vala qualquer e deixar os lobos terem seu banquete da noite!

— “Ain, vou te jogar para os lobos, blablabá”, olha aqui, sua escrotinha, eu não... - Ela puxou com toda a força o fio mágico que Maikai estava segurando e eu acabei tropeçando e caindo de cara no chão. – Que golpe baixo...

A tratante riu malignamente, mas se calou quando o traidor fez um gesto de mão enfático. Ele olhou para o leste, concentrado, olhei para lá para ver do que se tratava, ainda ajoelhado, mas não tinha absolutamente nada acontecendo além das folhas balançando com o vento e o barulho irritante dos pássaros ao longe.

Coisas de mato, já sabem.

— Eles estão chegando... - Maikai sussurrou baixinho e eu me deixei ter uma esperança mínima por cinco segundos de que ele se referia aos aurores, mas o sorriso encantado da garota, tocando o rosto dele e falando algo em uma língua desconhecida me demoveram da ideia.

Ele a beijou na boca e eu grunhi indignado.

— Eu pensei que era sua irmã! Eca! Sacrificar a segurança para salvar o namoradinho é tão clichê... - Falei amargo, porque eu com certeza não merecia ficar assistindo essa história de amor que deu certo, porque, isso faz de mim o vilão do conto, né?

— Você fez a mesma coisa, então fique quieto! - O garoto me deixou entrever um brilho do humor sarcástico que lhe era tão característico e isso me deixou ainda mais triste, quero dizer, seria melhor se ele fosse um completo desconhecido.

— Eu literalmente trouxe uma pessoa das garras da morte usando a magia de um gênio, não tem nada de clichê nisso! - Disse indignado e provavelmente soando bastante ridículo ainda no chão, mas ao invés de Maikai me responder, ele foi abraçar um grupo de desconhecidos que havia acabado de surgir por entre as árvores.

Que beleza, agora fiquei feliz, porque mais lobisomens era justamente o que estava faltando para melhorar meu dia!

Os recém-chegados cumprimentaram Maikai com entusiasmo, nesse idioma desconhecido e meio rude aos ouvidos.

Uma senhora com os mesmos cabelos loiros sujos do traidorzinho - vamos chamá-lo assim, porque eu sinceramente não sei se o nome dele é verdadeiro - pôs as mãos para os céus e depois ficou tocando no rosto dele como se estivesse tentando memorizar os traços.

Não estou comovido, já chegamos a conclusão que mães são criaturas irracionais.

Senti um empurrão no ombro e fiquei muito emputecido ao ver uma garota que não devia ter nem 10 anos, me cutucando com o pé. Ela não tinha os olhos amarelos dos mais velhos, então tenho certeza que consigo enforca-la com meu fio aprisionador.

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— Não toca nele, Leoni, ele pode te passar alguma coisa. - A amante do traidorzinho sibilou essa besteira e eu a fuzilei com o olhar. – Alba, checa se ele tem magia.

— Claro que eu tenho magia, sua ridícula, eu sou um bruxo! - A tal da Alba me ergueu por debaixo do braço com uma mão só e me encarou com seus olhos de um tom bonito de verde. Fiquei feliz de constatar que nem todos eram lobisomens, mas a paz durou pouco, porque ela começou a passar a mão ao meu redor de um jeito estranho. – O que está fazendo?

Eu não entendo muito - nada, eu não entendo nada - de símbolos ciganos, mas sabia que aquelas inscrições na palma da mão da mulher deviam ajudá-la a ver algo que outros não podiam.

Ela se concentrou no meu peito, arrancando o broche do HACCMA, o atirando por cima do ombro. Depois puxou minha corrente onde a cruz do meu avô estava ao lado do elmo de Enrique e a jogou sem pena no chão.

— Qual é! Isso foi presente, dois presentes de duas pessoas muito legais! - Reclamei em voz alta, porque não precisava dessa grosseria. A cigana me revistou sob o olhar atento de seus companheiros e quando finalmente chegou na pena do Ocaso no meu bolso do uniforme, jogou ela no chão sem piedade também. – Desnecessário...

Ela continuou sua investigação calada, como se estivesse fazendo algo importante e não apenas depenando um pobre adolescente indefeso e muito simpático, se dada a chance, claro, porque eu não fico sorrindo e mandando beijinho a torto e a direito, né?

Quando ela chegou na minha perna esquerda, onde estava o coldre oficial do uniforme e minha varinha, ela me olhou enigmática, abaixada de um jeito meio selvagem.

— Eu nem sequer estava escondendo, isso aí estava bem óbvio, era só... NÃO! O QUE FOI QUE VOCÊ FEZ!?!?! - A filha da puta quebrou minha varinha como se fosse um graveto velho bem na frente dos meus olhos e jogou no chão junto com meus outros pertences! – Como pôde fazer isso? Maikai, como pôde... Eu só estava tentando te ajudar, como pôde deixar ela fazer isso com minha varinha?

Cai de joelhos no chão, ainda tentando juntar a minha pobre varinha de olmo, mas dava para ver a fibra de coração de dragão pendurada em um dos lados, praguejei inconformado, já sentindo a magia nas pontas dos dedos.

Podia imobilizar todos aqueles malditos ciganos e possivelmente matar o traidorzinho que nem sequer me olhava nos olhos mais - isso teria sido satisfatório - porém, no último instante, eu avistei o elmo Dussel, entre a terra úmida daquela floresta sinistra e pensei melhor.

Agarrei o pingente com uma mão e fechei os olhos com a mentalização mais rápida e furiosa que eu já fiz na vida.

ENRIQUE, VENHA AQUI AGORA PRA MATAR ESSES MALDITOS LOBISOMENS CIGANOS!

Não sabia dizer se ele havia me ouvido, principalmente porque não pude segurar o elmo por muito tempo, Alba e sua bota de couro velha resolveram que era muito necessário pisar na minha mão, me fazendo soltar o objeto e xingá-la por entre os dentes.

Dessa vez quem veio falar comigo foi o único homem do grupo além do traidor, ele levantou minha cabeça com agressividade pelo cabelo e eu o encarei com toda a raiva que eu tinha.

— Nada de magia, mago. - A voz dele não parecia humana, era um som rouco e arrastado, combinava bem com aqueles olhos de maníaco. Assim que ele soltou minha cabeça, cuspi no pé dele. – Tem espírito, admito, mas...

Maikai sussurrou para o que parecia ser o líder, me olhando mal-humorado, enfatizando algo. O homem coçou a barba nojenta e pareceu avaliar o que estava ouvindo. Assim que o traidor terminou de falar, recebeu um aceno de concordância do outro.

Bem, era agora ou nunca, ele vai me matar ou...

Esperei alguma ordem para o carrasco do bando - que eu tenho certeza que é aquela biscate sádica de olhos amarelos muito feliz em ver eu me fodendo - me executar e pode ser que a ordem tenha sido dada, mas eu não entendi o idioma.

Alba apertou forte meu ombro e eu jurei que seria ela que iria morder minha jugular, mas, novamente, outro lugar apareceu sob meus pés sem aviso prévio, dessa vez a grama era mais seca e amarelada e o cheiro que veio junto com a náusea foi de cinzas, couro e cavalo.

Olhei ao redor e constatei que tínhamos viajado de novo, dessa vez finalmente chegando ao acampamento do bando, um lugar com algumas tendas armadas, carruagens, carroças, cavalos e muita, mas muita gente nos encarando com curiosidade.

O líder falou alguma coisa, deve ter sido importante, porque foi o suficiente para todos comemorarem, abraçando o traidor - olha, vou parar de chamá-lo assim, porque na verdade ele não tinha jurado fidelidade a mim, né? Eu que me iludi - celebrando a volta do filho pródigo.

Vocês podem ficar aí pensando que eu fiquei bem passivo esperando alguém se dar conta que tinha um estranho no ninho, mas o que eu fiz na verdade foi tentar fugir enquanto todo mundo estava sendo barulhento e meio incivilizado, pena que meu plano não funcionou...

***

Sempre me imaginei preso atrás das grades depois de cometer algum crime odioso, então eu estava realmente bravo com o fato de estar encarcerado por ter tentado fazer a coisa certa!

Não tive muita chance para fugir, porque o bando era grande e os outros caras ficaram mais do que felizes em me jogar no fundo de uma carroça daquelas medievais com grades em uma das paredes e palha no chão.

Só faltou a... Não, está aqui, a canequinha está aqui, então eu comecei a passá-la de um lado a outro nas barras de metal, só porque teria sido muito deprimente perder a chance de fazer algo que eu sempre vejo nos desenhos animados.

Perto do pôr do Sol, uma garota da minha idade se aproximou tímida e eu continuei encarando ela com meu pior olhar, ainda arrastando minha caneca na grade, porque eu obviamente não tenho nada melhor para fazer.

Preciso mencionar que o fio quase-infinito dificulta o acesso a minha magia? Porque é uma das muitas coisas que ele faz e passado aquele surto de raiva, agora não conseguia me concentrar o suficiente para me libertar.

Que patético.

A garota cigana ficou me olhando por sob os cílios e como a vista da minha cela dava para a floresta - com os sons do que devia ser o início de uma grande farra às minhas costas - não tinha muita alternativa a não ser encará-la de volta.

— Precisa de alguma coisa? - A voz dela era baixa e melodiosa, os olhos castanhos como os meus. Dei um sorriso cínico.

— Só da minha liberdade, você trouxe a chave da cela aí com você? - Perguntei sarcástico, porque do jeito que ela parecia assustada, nunca que iria me ajudar a fugir, não importa o quanto eu seja encantador.

Ela não me respondeu, olhou para a mata, meio ressabiada. Tomara que tenha um animal selvagem para detoná-la bem na minha frente!

— Os Roma não gosta de gadjos e o nosso rom baro gosta menos ainda. - Ela falou isso enquanto brincava com uma fita de seu traje típico - cheio de flores e franjas chamativas -, então me abaixei mais perto da grade, o que a fez levantar o olhar e continuar. – Não deve provocar, Mai ajudar, mas você fica quieto.

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— Se refere a Maikai? Por que o chamam de Mai, quando Kai é um apelido bem melhor? - A menina de cabelos castanhos claros piscou confusa e eu parei de divagar em voz alta. – Não era para eu depender da piedade de ninguém, garota, não era nem para eu estar aqui!

— Mas veio! Alba inquieta, diz você tem um olho escuro vendo, algo ancião, rom baro decide se deixa viver ou se mata. - Franzi o cenho, porque essa garota obviamente não tinha o espanhol tão bom quanto os outros. – Mai quer que viva, mas precisa calar!

— Olho ancião vendo? Mas que papo de bêbado é... Ah. - Me lembrei de uma maldita criatura maligna e velha que tinha, se eu não me engano, falado de um sequestro “engrandecedor” ontem mesmo. – Se conseguirem capturar o tal olho ancião, mata antes que ponha ovos!

Falei sério, mas obviamente a menina não entendeu que a criatura do meu ódio - que por acaso estava em algum lugar vendo a minha ruína de camarote - não era um amigo, embora adorasse me chamar de sobrinho.

— Cala-te e rom baro perdoa. - Ela falou categórica e se virou para ir embora, no último momento mudou de ideia e me olhou decidida. – Trago água e de comer.

— Traga a chave, menina... - Choraminguei entre as grades, mas já era tarde, ela já tinha saído correndo de volta para o seu povo e sua festa animada.

Me joguei na palha e passei a mão pelos meus pobres dedinhos pisados, que só não estavam mais doloridos que o meu rosto esmurrado e meu coração partido. Ai, gente, minha varinha! A primeira parte do mundo bruxo que eu pude chamar de minha, meu pedacinho do infinito, minha...

Ouvi um barulho do lado de fora da jaula - porque essa merda aqui é uma jaula, não se coloca palha para humanos! - e quando estava prestes a implorar de verdade para a garota tímida pela minha liberdade, vi dois vultos se aproximando rápido demais.

— Olha que delícia crocante, se não são Romeu e Julieta versão cigana... Como estamos bonitos essa noite! - Falei com uma dose extra de veneno, mas o pior é que era verdade mesmo, estavam os dois muito bonitos com suas vestes tradicionais.

Maikai estava com o terno romani o deixando parecendo um representante do que as pessoas acham que um espanhol cheio de charme latino deveria ser, nem parecia aquela criatura patética e magrela de algumas semanas atrás já a escrotinha sádica vestia um vestido negro justo, com grandes flores vermelhas espalhadas e uma outra saia vermelha sangue por baixo.

Ela me olhou com superioridade com seus olhos brilhando como os de um animal selvagem sob a luz do luar e o cabelo escuro dessa vez estava preso com uma rosa vermelha do mesmo tom de seu batom.

Essa garota estava pronta para o crime.

Maikai se aproximou da grade e os olhos dele brilharam sobrenaturais também. Me afastei automaticamente, porque aquilo era assustador, pensa aí, dois lobisomens te acossando, vai que estão com fome?

— A culpa disso aqui é toda sua, não era para ter nos seguido! - Ele rosnou segurando as grades raivoso e eu me encolhi mais no canto, sem minha varinha sabia que não teria a mínima chance contra eles.

— Eu só estava me certificando que um dos meus pacientes não se suicidasse, mas se eu soubesse que se tratava de um desgraçado como você, tinha deixado morrer faz tempo! - Falei me aproveitando da leve tremida na sobrancelha direita dele, que demonstrava toda sua raiva.

Ele engoliu saliva e me deu as costas, quase que dando permissão para a namoradinha vir defendê-lo. Maior covarde, tô pra ver, pra que virar lobisomem, se vai ficar se escondendo nas saias coloridas da namorada fodona?

— Olha aqui, coisinha, só está vivo porque Mai tem um coração benévolo, então não nos provoque! - Ela rosnou através da grade e eu continuei no meu canto, olhando para a pequena falha na junção do teto da carroça como se nem ligasse. – Eis o que acontece agora: você se comporta e eu convenço meu pai a te deixar para trás na próxima mudança, estamos entendidos?

— O líder é seu pai? Nossa, agora estou entendendo tudo. - Falei cínico e olhei para as costas de um lobisomem que nem tinha coragem de olhar na cara de seu refém. – Namorando com a filha do chefe... É uma pentelha, mas se eu fosse um lobisomem condenado a morte, eu também faria o sacrifício pra me deixarem no bando.

A garota se jogou contra a grade mostrando os dentes enquanto rosnava e meu coração foi no pé e voltou. A carroça sacodiu, mas minha expressão não, porque eu sou um cara com uma imagem a zelar: a imagem de quem ri na cara do perigo, claro.

— Só verdades, infelizmente. - Falei baixinho, dando de ombros, mas tenho certeza que ela me ouviu. Maikai resolveu interceder na nossa conversação.

— Cesc, por favor, não fala do que não conhece, eu não estou te pedindo nada para mim, eu estou apenas te implorando para você me ajudar a te ajudar a sair daqui vivo! - Disse tudo como se realmente se importasse comigo e eu bufei sem acreditar muito.

— E por quanto tempo eu vou ter que me fingir de santo? Porque é do meu maior interesse sair daqui vivo, ainda bem que estamos de acordo. - Falei de boas, porque sei bem a hora de cooperar pelo bem maior.

Mentira, não sei não.

— Provavelmente uns dois dias, rom baro não gosta de gastar suprimentos com gente fora do bando. - Ele deu de ombros e me olhou com pena. – Em dois dias você vai estar em casa, eu te prometo isso.

— Falando em suprimentos, diga ao Senhor Baro para parar de mandar, não sei se consigo comer toda essa palha que vocês me deram... - Falei falsamente lisonjeado, conseguindo até mesmo arrancar um sorriso irônico de Maikai. –Vocês ciganos são tão hospitaleiros!

— Não somos ciganos, somos Roma! - A garota maluca falou do nada - é louca de pedra mesmo, coitada - e eu fiz uma cara de desentendimento, porque não via diferença. – Cigano é ofensivo.

— Gadjo é ofensivo que eu sei, você vai parar de me chamar assim também? - Perguntei, me fazendo de sonso.

— Isso é falsa simetria, quando eu te chamo de gadjo, não te persigo com cães e varinhas nas mãos, nem te acorrento em correntes imundas! - Ela falou incrivelmente emputecida e eu suspirei pesado.

— A ironia da nossa situação reside na troca de lugares hoje... Mas vamos deixar isso de lado, porque, “falsa simetria”? - Olhei impressionado e o casal me encarou de volta sem entender. – É uma sádica ridícula, mas uma sádica ridícula letrada, gostei de ver!

— Muitos de nós somos, principalmente os futuros líderes, porque temos que saber com quem estamos lidando. - Maikai falou explicativo e depois se inclinou apoiando a cabeça no braço encostado nas grades. Suspirou antes de continuar. – Pode, por favor, tentar se manter vivo por dois dias?

— Por que fez isso? - Respondi a pergunta dele com uma muito mais importante. – Por que assinou seu atestado de óbito desse jeito? Seu tratamento estava dando certo, você poderia conseguir muito mais tempo e... O pior de tudo é que... Se você tivesse pedido, eu teria te ajudado, teria te dado mais chances! Agora... Agora você vai morrer assim que a lua cheia chegar, cara! Como pôde ser tão burro?

— Não vou morrer, eu trouxe a receita do remédio e os curandeiros me disseram que alergias mágicas geralmente passam depois dos primeiros episódios, eu vou ficar bem. - Ele falou mais para convencer a namorada do que a mim, que sabia a verdade.

— Alergia melhora depois de anos e vai fazer a poção com o quê? Com a força do amor de vocês? - Perguntei sem humor e continuei antes que fosse interrompido. – Se tivesse confiado em mim, eu teria te dado ao menos uma chance, mas agora... Eu só desejo que você morra rápido e sofra pouco, Maikai. Esses são meus melhores votos.

A namorada dele olhou brava para mim, depois para Maikai, mas quando viu o olhar conformado dele, sussurrou algo em romani. Pela primeira vez fiquei com pena dela, porque aquela história era simplesmente um romance trágico.

— Minha irmã vai te trazer algo para comer quando os outros estiverem mais distraídos, inclusive vão começar a perguntar por nós... Até prometidos precisam maneirar em suas escapadinhas, não é? - Ele riu sem humor, ignorando tudo o que eu falei, dando um tapinha de leve na grade. – Obrigado por tudo, Cesc, não teria sobrevivido àquele lugar sem você.

— Sabia no momento em que eu te vi que você me jogaria na merda. - Ele riu, um riso estranho e eu apontei acusador para ele. – Você oficialmente só tem duas estrelas agora, seu esquisito.

Ele sorriu e abraçou sua garota cujo nome nunca saberei - melhor assim, menos uma alma para eu anotar no meu death note - e eu só acenei com a cabeça.

— Adeus, Cesc.

— Adeus, idiota. - Sorri sincero, desejando com muita força estar errado dessa vez. – Se acontecer de sobreviver, espero te ver por aí.

Ele fez que sim e me deu as costas.

E foram embora, foram curtir uns momentos que deveriam durar a vida toda, sei lá, essa droga de drama é muito deprimente. Não vi mais os dois durante toda aquela noite e quando a irmã de Maikai - a garota tímida de mais cedo - voltou para me trazer comida e água, agradeci sem ser sarcástico ou cruel:

Tô na merda oficialmente, em resumo.

Encostei minha cabeça na parede da cela, aquela que dava para a grande festa que não devia ter hora para acabar e que eu não havia sido convidado. Passei o dedo na madeira crua, com um resto de tinta que deveria ter sido amarela, acho, mas agora era só uma cor esquisita difícil de identificar apenas com a luz de um archote distante.

Descasquei um pouco da pintura e fiz alguns padrões aleatórios com as pontas dos dedos porque o tédio é muito cruel e eu sou muito poético, já sabem. Tinha muito o que lamentar, estava com frio, com saudades de casa, triste para caralho pela perda de minha varinha, mas na verdade o pior sentimento era o de impotência.

— É a essa porcaria que você dá o título de “experiência engrandecedora”, criatura maldita? - Fechei os olhos e não esperei a resposta de Erick, porque sabia que ele iria jurar por todas as tropas de escoteiros do mundo que ele não fazia ideia de onde e como eu estava. Coitadinho, devia estar tão preocupado...

Mais falso do que... Acho que ainda não inventaram nada mais falso do que Erick, sinceramente.

Abri os olhos e novamente quase morri do coração, porque no lugar da parede velha e descascada, eu conseguia ver uma imagem levemente distorcida da festa romani que estava acontecendo lá fora!

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Olhei para um lado e outro, procurando quem tinha feito isso - sim, eu procurei por Erick, o Satanás - mas havia somente eu na cela e nenhum movimento mais atrás, na floresta. Toquei na imagem, para ver se ela desaparecia, mas ali estava e continuou: uma pequena janela para um mundo que eu não tinha direito de ver.

A altura da carroça me dava uma vantagem e me deixava um pouco acima dos outros, mas não muito, então me sentei com a postura ereta para ver o que acontecia bem no centro da festa. Como muitas vezes antes, o ritmo dos violões diminuiu e aquelas irritantes gaitas de fole se calaram, deixando toda a celebração mais tranquila e envolvente.

Eu poderia fazer uma fogueira só com o fogo do meu ódio por essas gaitas de fole!

Sorri com a imagem, mas depois voltei minha atenção para o presente: uma mulher dançava iluminada pela luz da fogueira e eu parei para observar a cena com um sorriso no rosto - dessa vez do tipo bonzinho - porque já tinha visto a dança cigana milhares de vezes antes, nas feiras de abril de Sevilha.

O movimento dos braços, ombros e quadris formavam ondas, curvas e semicírculos, é familiar para mim, parecia que a mulher dançava com o fogo da fogueira, levantando a saia e desafiando os espectadores na borda da roda comandada por ela.

Tinha os pés descalços e... Era a filha da puta assassina de varinhas!

Dei um tapa irritado na visão e ela voltou a ser o que era antes, a maldita parede de uma jaula onde eu estava preso injustamente! Deuses, como me odeio por não ter feito nada naquele momento em que essa mulher simplesmente destruiu a minha varinha!

Na verdade eu odeio ela, eu odeio... Merda, eu odeio todos eles!

O pior é que eu entendo o porquê disso, mas eu não aceito, principalmente porque Maikai fez tudo de um jeito que me deixou completamente vulnerável, tudo porque foi incapaz de pedir ajuda a um “gadjo”!

Maldito orgulho cigano estúpido!

Foi por isso mesmo?

— Ah, estava começando a me questionar quando o “olho ancião” daria as caras por aqui... Você é muito desgraçado mesmo, hein, Erick? Está aí consolando minha mãe, enquanto come um pouco mais de sua sobremesa vegana? - Perguntei sarcástico para o meu demônio particular.

Já que tem tanto tempo livre e um cérebro bastante racional, me permita lhe fazer uma pergunta: por que ninguém nunca pede sua ajuda?

— Do que diabos você está falando? As pessoas pedem minha ajuda, Erick, todo o tempo, não me venha com esse tom de deus onisciente, não hoje, por favor. - Falei cansado, apoiando os braços nos joelhos e a cabeça neles. – Se não vai ajudar, pode cair fora!

Só é ajuda se for nos seus termos?

Eu maneei a cabeça sem acreditar no nível da minha sorte, porque se estar preso em uma jaula cigana sem conseguir dormir já é ruim o suficiente, ter Erick me aporrinhando só deixa o quadro mil vezes pior!

Ou as pessoas se mantém como estão ou aceitam sua ajuda em seus termos, é assim que funcionam as coisas, não é?

— Ou todos podem recorrer a terceira opção: me ignorar, fazer tudo sozinho e foder com minha vida no processo. - Soltei um riso sem humor, porque esse era o resumo da minha vida. – Você fez isso e Maikai também seguiu pelo mesmo caminho, acho que virou uma escolha aceitável....

Teria me ajudado se eu tivesse pedido? Interessante...

— Talvez eu tivesse te ajudado, se você demonstrasse que poderia ser um ser humano com o mínimo de integridade, mas já que você resolveu me manipular e ser um cretino, acho que você fez sua cama e deitou nela, não foi? - Discutir em voz alta com alguém na minha mente poderia me dar uma passagem só de ida para um hospital psiquiátrico, mas de certa forma me faz bem falar essas coisas em voz alta.

Teria ajudado o lobisomem?

— Ele com certeza eu teria ajudado, pena que ele não me pediu isso, não foi? Preferiu esperar a melhor oportunidade para sair correndo de mãos dadas com sua “prometida” que... Você viu a garota? Acho que você teria gostado dela, é um demônio igual a você! - Falei me encostando na parede e esticando as pernas. Não tinha posição confortável nesse chão duro com cheiro de estábulo.

Se já é difícil mudar quem somos, imagina mudar como os outros nos enxergam: eu sempre serei um djinn, o garoto sempre será um lobisomem e você sempre será...

Ele não completou a frase e eu também não o fiz, porque sabia que ele estava querendo fazer um daqueles enigmas ridículos dele saídos do nada, toda uma esfinge vinda do Tártaro!

Fechei os olhos com força, tentando não pensar no que ele havia dito, porque eu não tenho rótulos, então não tenho como completar o que ele quer. Passou um minuto inteiro antes dele falar de novo.

Numa jaula, em um quarto de hospital ou em uma lâmpada... Pode gritar o quanto quiser, mas se as pessoas souberem exatamente quem você é e o que você quer, ninguém vai te ouvir. O que acha que eles ouvem quando você fala?

Ainda estava de olhos fechados, mas a música tinha ficado barulhenta de novo, então não tinha a menor possibilidade de eu dormir, embora eu estivesse tão cansado que dava até medo de nunca mais acordar caso cochilasse um pouco.

— Eles tem certeza que eu vou fugir... - Suspirei pesado, tentando ignorar o pulsar constante do hematoma no meu olho e a dor nos meus dedos. Tentei me concentrar em meus músculos doloridos, me alongando para relaxa-los aos poucos. – Talvez até pensem que eu vou chamar reforços para exterminar todos eles, o que se for parar para refletir, não seria imerecido.

O que você ouvia quando Maikai falava?

Não o respondi, porque sabia que havia alguma pegadinha de Erick em algum lugar dessa aparentemente simples pergunta. Tentei me lembrar das conversas com Maikai, me concentrar no que ele falava...

Concentre-se no que você ouvia.

— É a mesma coisa! - Rosnei para o idiota, abrindo os olhos, mas apenas recebi a visão de uma floresta escura e nada mais. Voltei a me recostar na parede, esfregando a mão que não estava machucada no lado do rosto que não estava machucado.

Deus, eu estou patético.

Fechei os olhos e tentei lembrar o que eu achava de Maikai antes dele se transformar em um traidor de marca maior bem na frente dos meus olhos:

Ele era um cara legal, que havia topado fazer algo horrível que quase o matou por causa de convenções sociais. Ele achava que não tinha futuro só porque os médicos estavam mantendo ele afastado do cara que o havia amaldiçoado e...

Amaldiçoado... Escolha interessante de palavras. Sabe quem foi amaldiçoado? Eu fui! Por gente que me detestava, condenado a existir em um plano distante de tudo que era remotamente humano e...

— Como isso aqui virou o seu momento de desabafar? - Falei, o interrompendo. – Você nunca contou porque foi preso, então não venha tentar me fazer ter pena de você, se colocando na mesma situação que Maikai!

Você colocou ele na mesma situação que eu: um amaldiçoado, mas isso não importa, porque essa não é a questão principal: ambos escolhemos não confiar em você e nos salvar por conta própria, o que isso fala sobre como as pessoas te enxergam? Um gênio, um lobisomem e um... Carcereiro.

— Eu não sou isso e você sabe! - Falei seriamente, mesmo que me faltasse plena convicção, afinal, eu estive nessa posição em ambos os casos, de certa forma, mas eu não era isso! Não de verdade...

E eu não sou um gênio, Maikai não é um lobisomem, pelo menos não o amaldiçoado que você acha que ele é... Só assim para você não ser um carcereiro, correto?

— Da para apenas você dizer onde quer chegar com isso? Eu já estou ficando com uma dor de cabeça monstra e não preciso ficar aqui tentando resolver seus mistérios madrugada adentro! - Falei, exausto, porque é isso que uma conversa com o cara mais escorregadio causa em você: a mais completa exaustão!

Eu não te odiei pelo que você fez, assim como Maikai não te odiou, porque nós sempre soubemos quem somos aos seus olhos: criaturas malditas. E se não podemos mudar quem somos e nem como você nos vê, então sempre houve apenas uma alternativa para nós: mudar o nosso destino por contra própria.

Podia sentir o sorriso na voz de Erick com sua conclusão simples, lógica e clara. Olhei para a parede e com um toque que nem sequer me surpreendeu, ela voltou a mostrar o que se passava lá fora, no outro mundo...

Casais dançando, luz, cor, era um outro mundo mesmo, uma outra vida. Consegui localizar Maikai, ele estava dançando, não com sua garota, mas com uma menininha em cima de seus pés, parecendo o mais feliz que uma pessoa poderia ser na vida.

As pessoas nem sempre são o que pensamos e nem sempre querem ser quem queremos que elas sejam, Cesc. Essa é uma das lições mais difíceis de aprender e de ensinar, porque é preciso que você vá além do que pode ver.

Maikai deixou a garotinha ir embora, porque sua namorada sádica havia chegado e exigido atenção. Os dois agora dançavam se encarando, olhos nos olhos, tão sincronizados que pareciam um só.

— Devo aceitar de boa a escolha dele então? Porque ele é um lobisomem feliz, mesmo que essa escolha seja a morte? - Falei ainda vendo os dois sumirem e aparecerem entre os outros casais na clareira, eles rodavam tão rápido...

A morte pode ser uma bênção para quem tem outra relação com a vida, sobrinho.

Sabia do que Erick estava falando, porque ninguém melhor do que ele para justificar isso, mas... Encostei minha testa na parede, fechando os olhos, me recusando a olhar essa alegria tão finita e sem sentido, porque Maikai podia ter esperado mais, ele só precisava...

Ri da minha hipocrisia, porque estava passando um dos piores momentos da minha vida e não tinha nem 24 horas que eu estava nessa situação, imagine semanas... Imagine milênios! Balancei a cabeça para afastar a ideia e me encostei novamente na parede, olhando para...

Meu coração parou, porque eu não estava mais sozinho.

Eu não movi um músculo sequer, mesmo que soubesse que aqueles olhos verdes impressionantes podiam me ver claramente recostado no fundo dessa jaula velha. Alba, aquela mulher misteriosa e cruel, me encarou por mais tempo do que era confortável em qualquer situação e antes que eu encontrasse a minha voz - que havia sumido para bem longe daqui - ela fez um movimento leve com as mãos.

A jaula se abriu.

Okay... Que pegadinha é essa? Ela me olhou por alguns segundos, o suficiente para eu tentar entender o porquê dessa mulher - que havia quebrado minha amada varinha, nunca esquecerei disso - estar me dando a minha liberdade de volta, assim, do nada.

— Vá, criança, a dívida foi paga. - Ela falou pela primeira vez, com uma voz doce, quase infantil, que seria a última coisa que eu esperaria dela. Não soube muito bem o que dizer, nem o que fazer - isso é ridiculamente inesperado, vamos combinar - então o diabo que fica sozinho no meu ombro me soprando as piores merdas, me tirou do meu torpor.

Se você não sair correndo dessa jaula AGORA, eu mesmo vou aí colocar a manivela intestinal do rom baro para te fazer um carinho!

Eu não faço ideia do que diabos é uma manivela intestinal - lembrar de olhar no Google de estômago vazio - mas eu tenho certeza absoluta que eu vou odiar isso com todas as forças, então eu sai correndo daquela carroça, nem parando para olhar para trás.

Adeus, ciganos filhos da puta, espero nunca mais vê-los novamente!