Histórias Cruzadas

A morte era só uma palavra


Eu menti, não voltei para casa, vaguei pelas ruas da cidade, sem destino. Meu caminho me levou a praça onde minha mãe me trazia para brincar, quando era criança, estava vazia naquela hora. Um gato vira-lata cinzento passeava por lá, calmamente, e se deitou ao sol. Era o dono do mundo.

O que farei agora? Será que Jean-Pierre ainda vai me querer? Afinal, ele não é meu pai, apenas o marido da minha mãe, e já tem a minha meia-irmã Cecília. Poderia morar com minha avó em Paris, deixaria tudo para trás, recomeçaria mais uma vez.

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Nesse momento, o gato se levantou e deu um salto para um lugar mais alto, se espreguiçou e voltou a cochilar tranquilamente, tinha inveja dele.

E meu pai? Onde estaria? Quem seria? Gostaria de conhecê-lo, só por curiosidade, saber como era, não tinha nenhuma esperança ou sentimentos para com ele.

— David! – Não me voltei ao ouvir meu nome, pois, sabia exatamente quem era. – Eu estou procurando por você pela toda a vizinhança. – Francine disse, ao se aproximar e sentou-se ao meu lado, passou a mão nos cabelos, colocando os fios rebeldes no lugar. – Seu pai estava preocupado com você.

Eu poderia rebater, falar que Jean-Pierre não era o meu pai. Que eu não tinha pai, não tive ninguém, mas não falei.

— Estava andando por aí – Dei de ombros.

— Eu lamento muito, David - Com muita cautela, ela colocou a mão sobre o meu braço, sabia que estava sendo sincera, ela gostava de mim, ajudou minha mãe a cuidar de Cecília e da casa – Vamos para casa – pediu de um jeito calmo.

Eu não queria ir e ver as coisas da minha mãe, senti a sua ausência, mesmo depois de tanto tempo de internação, a casa ainda estava impregnada por ela, mas Francine me puxou e eu fui.

Então, o tempo passou como um sonho ruim, parecia que tudo era uma mentira, algo irreal. Minha mãe seria enterrada em Paris, no túmulo da família de Jean-Pierre, os jornais noticiaram sua morte, afinal, ela era uma escritora bem conhecida de livros infantis.

Na manhã do enterro, caía uma chuva fina e fria, estávamos na casa da minha avó, Cecilia ficaria com a irmã de Jean-Pierre, já que era muito pequena para entender alguma coisa. Eu me sentia como entorpecido, como já tivesse bebido demais, quase fora do mundo. No quarto que dividi com minha mãe por tantos anos, até ela se casar Jean-Pierre e nos mudarmos para Saint-Antoine, ainda estava lá, a mesa onde desenhava, foi ali, que criou o príncipe Olly para a placar a minha tristeza por não conhecer o meu pai. Já estava quase na hora de irmos para o cemitério, minha avó me chamou, desci as escadas, sem muita vontade.

— Você vai assim? Como essas roupas? – Ela me olhou, espantada, para o meu jeans e camiseta preta e por cima de tudo um velho casaco escuro.

— Sim, vou.

— Mas, não é uma roupa apropriada para o enterro.

— Minha mãe não vai se importa.

— Deixe o garoto em paz! – Jean-Pierre se manifestou. – Não é hora de desavenças.

Nem me lembro direito como cheguei a uma capela no cemitério. Lá, fiquei olhando, por um tempão, para minha mãe deitada, pálida e imóvel, sem poder acreditar, porque até aquele momento, a morte era só uma palavra, mas, agora, era bem verdadeira. Seguiu-se uma pequena cerimônia chata, com umas pessoas falando um monte de bobagens. Sai de perto quando fecharam o caixão, eu não queria vê-la sendo presa lá dentro, depois, andamos lentamente pelos caminhos silenciosos, felizmente, a chuva havia passado. Eu não podia acreditar, que dentro daquela caixa de madeira escura, estava a minha mãe e nunca mais a veria, nunca mais escutaria a sua voz ou sentiria o toque da sua mão nos meus cabelos, era um peso tão grande no meu peito, uma dor que nunca imaginei que existisse, quase física, mal conseguia caminhar. Francine se aproximou de mim e segurou o meu braço, me ajudando a prosseguir.

Diante do túmulo, um padre disse algumas palavras que não ouvi, foi quando notei aquele homem parado a certa distância, observando, ao lado dele, uma mulher, porém, não liguei, olhei para a caixa de madeira que descia para o fundo da terra, levando a minha mãe dentro dela, quis gritar que parassem, que não podiam fazer isso, não podiam tirá-la de mim assim, mas, apenas apertei minhas mãos com tanta força, que senti as unhas encravarem na carne, machucando.

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Alguém me deu uma flor para jogar em cima dela, um último adeus, foi aí que tudo aconteceu, as pessoas começaram a se dispersar, cumprimentando a Jean-Pierre, minha avó e a mim, e o estranho se aproximou, falou algo, que não prestei atenção, e, de repente, socou a cara do meu padrasto, eu me perguntei porque ele fez isso.

Depois da confusão, o homem desapareceu, houve muito falatório e segredos, falas entrecortadas e frases inacabadas, tinha um mistério ali, mas não podia pensar nisso agora, não tinha forças, nem vontade.

— Você quer ficar aqui, na casa da sua avó, David? – Jean-Pierre me perguntou.

— Não, eu quero ir para casa. – Não havia nada para mim ali.

Depois do almoço, na casa da mãe de Jean-Pierre, voltamos para casa de carro, eu, meu padrasto e Francine, porque Cecília ficaria com avó, por alguns dias.

Chegamos à noite, caía uma irritante chuva fina, deixamos Francine na sua casa, Jean-Pierre estacionou o carro em frente da nossa, mas, eu não queria entrar e acho que ele também não.

— Quem era aquele homem que socou a sua cara? – perguntei, institivamente, ele levou a mão no queixo e esfregou.

— Um velho amigo.

— Ele não pareceu ser um velho amigo seu – disse, com ironia.

— Era um velho amigo da sua mãe, mas, um tanto temperamental.

Queria perguntar se ele era o meu pai, porém, não tive coragem, e se fosse, eu ia querer conhecê-lo? Afinal, ele nunca me quis, nunca me procurou. Abrimos a porta do carro, ele foi para casa e eu para rua.

— Aonde você vai? – Jean-Pierre perguntou, sem disfarçar a sua preocupação.

— Dar uma volta por aí – Ele sabia que eu estava fugindo daquela casa, que se pudesse, faria o mesmo.

Andei pelas ruas escuras e quase vazias, úmidas pela chuva que parou de cair, há alguns minutos atrás, cheguei na pequena praça.

— David! David! – Ouvi meu nome, olhei na direção e vi meus camaradas, sentados em volta do velho chafariz.

Eu me aproximei, eles bateram nas minhas costas, falaram algumas piadinhas, mas não falaram sobre a minha mãe, nem do enterro, fiquei agradecido por isso. Um deles me entregou uma garrafa de conhaque, a virei direto na minha boca, o líquido desceu queimando e bateu pesado no meu estômago vazio, só queria que fizesse efeito rápido para eu esquecer.

Começamos a conversar, assuntos banais e besteiras, futebol, músicas, mulheres, sacanagens, a garrafa passava de mão em mão e, por um tempo, eu me esqueci da minha dor, até aquele homem do cemitério aparecer de novo, bem na minha frente.