24 de abril, 2014 (sábado), Parte Dois, duas semanas depois do capítulo anterior; 18h30min.

Depois de ter passado o dia inteiro limpando tudo, finalmente a casa estava limpa. O chão, varrido. As louças, lavadas. As roupas, secando enquanto outra leva começava o clico na máquina. Mesmo às seis horas da tarde, John não podia esperar até o outro dia para que tudo ficasse limpo. Teria que ser tudo naquele dia. Poderia até estendê-las no outro dia, mas ia ter de lavar tudo hoje.

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Estava cansado. Muito cansado. Esfregar o chão de manhã foi difícil. Havia sujeira incrustada e pedaços de comida por toda a parte. Quando pegou o pano do sofá e balançou no ar, uma nuvem de poeira se formou e quase o engoliu. A pia estava entupida, mas bastou fazer um rombo na parede com a mão e passar um cano até o esgoto. A pilha de louças tinha um metro de altura e John levou duas horas para lavar tudo. Raramente lavava louças, por isso teve dificuldades. Mas enfim tudo havia acabado.

Ele estava agora sentado no sofá, com a televisão ligada. Assistia a um programa de entrevistas a pessoas famosas. John olhava para a televisão, mas não prestava atenção em nada. Sua mente ainda viajava em torno daquela terça-feira. Recebeu uma visita da sogra, da amiga da sogra e da filha da amiga da sogra. Se bem que essa filha odiava John, mas ele não se importava com isso.

John estivera vivendo por duas semanas com a dor de ter perdido a pessoa que mais amava no mundo. Tivera pesadelos terríveis desde então e se recusara a sair de casa. Até o sábado passado, quando decidiu que ia tomar café em uma lanchonete. Aquele adolescente que podia ter sido aluno de John estava agora morto pelas mãos de um assaltante. Aquela mulher que apareceu e o convidou a entrar na Associação de Vilões Revolucionários o fez refletir sobre suas decisões na vida. Depois disso John não suportava mais viver. Quis apenas falar para sua mãe de todas as dores, mas ela apareceu na terça-feira acompanhada por Mariana, a sogra de John, Luzia, a amiga de Mariana e Fernanda, a pessoa que sempre odiou John.

Quando a faca ia arrebentando sua artéria mais vulnerável, John ouviu as palavras mais doces que ouvira em um mês:

– É, Cazumbá, ela tá viva! - aquele tom na voz de Fernanda, a notícia tão calorosa dela e a vontade de retribuir todo o alívio e esperança que ela lhe trouxe fez John largar a faca. Aproximou-se dela e deu-lhe um beijo amigável, apenas para ele ter certeza que não era sonho. John esperava um tapa ou um soco, mas Fernanda acabou dando um beijo mais profundo.

– Ela deve ter gostado da notícia também - falou John, em pensamento.

Depois disso ele voltou a comer, tomar banho e dormir de maneira saudável, até que acordou no sábado e viu a bagunça que era sua casa. Achou os materiais de limpeza, uma mangueira e pôs-se a limpar, enquanto ouvia seus rocks. Terminou às 18h, quando pôs a roupa lavada no varal. Sentou-se no sofá limpo, apreciando o cheiro de casa limpa no ar, e ligou a televisão. Pôs uma lasanha congelada para esquentar e agora comia, pensando na vida.

"AVR...", refletiu ele, recordando-se daquela mulher. John se esquecera do nome dela. Mas não do que viu quando focou sua visão nos olhos dela. Ele não sabia qual era o poder dela, mas se lembra da sensação de medo que sentiu quando ela falou o tipo sanguíneo dele, pelo telefone, e a maneira como ela apareceu detrás dele depois...

A sala estava cheia de Vilões. Eram quatro e todos eles sabiam que John era Herói, mas nenhum moveu um dedo para atacá-lo. Tampouco John fez isso. Ele podia até ter uma capacidade de resistência maior, mas ele não sabia os poderes deles. Ele não atacaria algo que não podia matar. Seria suicídio. Além disso, um dos vilões parecia ser muito inteligente, talvez tivesse o córtex mais desenvolvido; foi ele quem fez a transfusão de sangue, retirou a bala, estancou o sangramento e ainda chamou pelo serviço de emergência.

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Aquela mulher, junto aos caras que vieram com ela eram inimigos de John. Simplesmente por serem Vilões. Defendiam a causa dos mutantes, acreditavam que os humanos tinham sido culpados pela guerra... Contudo ainda assim salvaram a vida daquele menino. Talvez fosse só uma maneira de chamar a atenção de John. Enquanto ele era socorrido, a mulher o convidou a participar de uma Associação de Vilões. Na hora John só sentiu repugnância por ela, mas agora que refletia sobre isso, pensou melhor em seus ideais, sua vida, a coisa pela qual sempre lutou.

Será que John apoiava mesmo a ideia de que os MUTANTES haviam sido a causa da guerra?

O pensamento martelou em sua cabeça durante vários minutos, até que desligou a TV, lavou a louça que usara para comer, fechou a casa, pegou a chave e saiu. Precisava pesquisar mais sobre o assunto. Tinha que ter certeza de quem ele era, o que fazia e para quê. Ele conhecia uma pessoa que poderia ajudá-lo. Era fora um colega de classe quando estavam no treinamento. Ele sabia sobre essa história, desde sua "causa" até o "fim".

Não que John não soubesse de nada. Muito pelo contrário, ele se considerava um nerd do mundo mutante. O pai Gary William deixou vários papeis e documentos de experiências com mutantes, várias descobertas feitas por uns cientistas que John não fazia ideia de quem fossem. Em todos os arquivos tinha um carimbo com a marca "Refúgio Mutante", perto da data. John vasculhou arquivos que tinham mais de sete anos. O mais antigo estava quase desvanecendo de tão velho, e sua data marcava 18/06/1999. Falava sobre um mutante com a capacidade de controlar o fogo, mas a pele sem a resistência maior sempre ficava queimada.

Em 2012, quando John ainda tinha 16 anos, ele estudou esses arquivos que o pai liberou. Na época ele afirmou que fazia parte de uma operação secreta que fazia esses experimentos, mas que, pela falta de fundos, acabou falindo em 2009, quando todo mundo abandonou. Quando John viu os arquivos se deparou com um verdadeiro dossiê. Inúmeras experiências e resultados envolvendo mutantes e várias explicações científicas acerca de como tudo funcionava. Lendo aquilo tudo John foi ficando cada vez mais fascinado... Até que tudo parou abruptamente. O relatório mais recente era de 2010, mas era só de observação. Era um mutante que controlava moléculas de hidrogênio e oxigênio, podendo manipulá-las em estado líquido e gasoso. O mutante mostrava aversão à galinha e nunca parecia se dar bem com óleo.

Estava tão aprofundado em seus pensamentos que nem notou o quão deserta a rua estava... E ainda eram seis da tarde. Talvez sete, mas ainda era cedo demais para que as velhinhas sentadas nas portas das casas entrassem. Não era muito relevante, mas aquelas idosas eram o "relógio" de uma grande maioria de pessoas que moravam na Parte Dois. John já vira pessoas brincando com isso em alguns lugares:

– Como pessoas normais sabem que tá tarde! - o menino mostrou o relógio enquanto a garota olhava - Como o pessoal da Parte Dois sabe que tá tarde! - ele apontou para as idosas, em suas cadeiras de madeira rústica, olhando todos que passavam pelas ruas. A garota começou a rir.

A rua só não estava deserta porque na calçada oposta havia alguém com um capuz andando apressadamente. Ele havia acabado de virar o quarteirão e agora lançava relances à John, que manteve seus desejos vingativos controlados. Após a morte daquele garoto, John sentia uma completa sensação de ódio por qualquer um que parecesse um assaltante. "Talvez você esteja com preconceito, John".

Mas aquele sujeito colocava as mãos dentro do bolso, parecendo estar segurando alguma coisa pontuda. Seu capuz estava levantado, escondendo seu cabelo. O rosto estava abaixado, quase impossível de enxergar suas feições e ele andava mancando. John sabia que ele tinha a aparência perfeita de um assaltante. Sempre querendo esconder seus traços físicos, chegando até a fingir estar mancando para esconder o verdadeiro movimento de como andava. John olhou para si mesmo enquanto o homem se aproximava dele. Usava um calção verde-musgo, que estava um pouco apertado, mas ainda cabia. Tinha uma camisa carmesim, com a imagem de um leão e a frase "Hear me Roar!" destacada em amarelo. Como o texto estava em inglês, John não entendia o que dizia, mas achava que a tradução era "Não ria de mim". No bolso o pacato John levava um celular de 800 anos e aproximadamente R$ 30,00.

O homem olhou para os lados e atravessou a rua quando estava a dez metros de John. Ele percebeu que o homem remexeu a mão dentro do bolso do seu calção e olhou profundamente nos olhos de John. Os próximos movimentos foram todos captados pelos sentidos de John. Os passos no chão, a sola do sapato arrastando contra a calçada, a respiração acelerada do sujeito, o arrepio em sua pele e a espinha gelando quando tirou do bolso um canivete. O "click" emitido pelo aparelho quando acionado... E, por fim, os músculos se remexendo no interior do corpo dele, após erguer a voz em conjunto com a mão.

– Aí, ô, cara, isso é um assalto, passa o dinheiro, celular, cartão o que tiver, anda, depressa.
– Cara, eu não tenho nada... Foi mal.
– Foi mal o caralho, mermão. Bota as mão pra cima!

John ergueu os braços, sentindo-se um Herói completamente inútil por não estar fazendo nada. Podia ter quebrado a costela ou a perna, quem sabe o braço, mas simplesmente estava lá, com os braços levantados, torcendo para que o bandido fosse embora logo.

E não ele demorou muito. Logo o cara estava com seus trinta reais na mão. Não pegou o celular talvez porque achasse-o velho demais. O canivete estava apontado para a barriga de John, e assim ficou depois que ele se afastou. Murmurou:

– Ô, palhaço, a próxima vez que tu mentir, eu te mato, tá ligado?! - ele ficou calado um pouco, depois berrou: - Qual foi, viado? Num vai falar nada não? Entendeu ou não entendeu?
– Sim... - foi com muita relutância que John conseguiu falar isso.

Após isso o assaltante foi embora, correndo. John se esforçou, mas não conseguia se lembrar das feições dele. Estava concentrado em não bater nele na hora. O capuz também dificultou, ocultando o rosto dele debaixo da escuridão. John trouxera trinta reais para o caso do amigo dele pedir algum dinheiro, pois ele conhecia bem o cara. Olhou para trás e viu o homem virar a esquina. John ponderou sobre a possibilidade de ir lá e pegar o dinheiro de volta. Ele podia se quisesse. Estava com raiva demais, o suficiente para dar uma força extra nas pernas. Talvez se direcionasse parte do seu poder para as pernas e coxas...

Subitamente um homem diferente surgiu na esquina. Tinha o rosto alegre, andava correndo e vinha na direção de John. Quando chegou perto, estendeu a mão, sorrindo. Não era muito musculoso, pelo contrário. Usava uma calça jeans marrom e uma camisa roxa. Ele entregou os trinta reais que o assaltante havia roubado e em seguida falou:

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– Boa noite, amigo. Toma aqui, seus trinta reais. Não diga para ninguém o que aconteceu aqui, ok? - John abaixou os olhos aos pulsos do homem e percebeu uma marquinha verde, flutuando, em terceira dimensão - A polícia não protegeu aquele cara de mim e nem vai proteger VOCÊ de mim caso isso vá parar em um jornal, está bem? Finja que não foi assaltado, aquele bandido não vai mais te atormentar. Tenha uma bela noite.

Segurando o dinheiro na mão, John viu quando o Herói deu meia-volta e virou na mesma esquina por onde veio. Se perguntou qual devia ser o poder dele. Talvez fogo ou telepatia moderada, coisas básicas. Deve ter nocauteado o cara e ligado para a polícia. Era impressionante como até o poder mais fraco conseguia acabar com qualquer humano. Um mutante que mudava a mente poderia criar ilusões cerebrais usando ondas de frequência baixa, fazendo o sujeito delirar e desmaiar.

Um mutante com a capacidade muscular até 20 vezes mais forte poderia matar qualquer humano apenas fechando a mão. E mesmo assim eles nunca saberiam, pois a maldição não deixava. Humanos nunca podiam ver os poderes serem usados. Suas mentes interpretariam coisas diferentes. Isso foi uma das primeiras coisas que John aprendeu. Quando perguntou o porquê daquilo, lhe disseram que era uma história muito confusa, cheia de vertentes, nenhuma falsa e nenhuma verdadeira.

Enquanto retomava o passo, John pensou nisso. Enquanto estava no treinamento, antes dos dezoito anos, ele ouviu uns mutantes debatendo as teorias. Uns falavam que a maldição foi feita por uma mulher traída por Vilões, outros juravam o contrário e alguns outros mencionavam uma rebelião de humanos. John acreditava que o nome "maldição" era pouco científico. Enquanto atravessava a rua e pensava nisso, formulou a hipótese de que um homem, telepata avançado, introduziu no código genético de cada ser humano uma limitação. Assim eles não poderiam ver outros humanos controlando terra em pleno ar livre.

Após isso permaneceu em silêncio o resto da caminhada.

[...]

Chegou na casa de Caíque quando o relógio anunciava as 19h. A casa dele ficava na Parte Dois, e, seguindo o padrão, tinha um quintal frontal, uma área de grama. A diferença estava na pequena plantação que os donos ajudaram a crescer ao longo dos anos: sete bananeiras, com as folhas chamativas estendendo-se para os dois lados, verdes e saudáveis. Os frutos haviam acabado de nascer, ainda estavam verdes. Quanto à fachada, John percebeu que era uma casa simples. Estava mal pintada com um amarelo simples. Tinha só uma janela, abaixada. A porta era de madeira, que estava escurecida pelo tempo. Haviam detalhes entalhados nela, de cima a baixo. Pareciam tentáculos ou cipós, John não tinha certeza. E nem estava interessado. Bateu na porta e esperou.

Passados uns segundos, Caíque apareceu e abriu a porta. Não tinha mudado nada desde a última vez que John o vira. Sua face branca destacava as várias acnes em estágio inicial, todas vermelhas. Ele tinha a postura inclinada para trás, o que era bem estranho. Dava a impressão de que ele estava encostado em uma parede imaginária. Caíque tinha a altura bem mediana, por volta de 1 metro e 78 centímetros; isso fazia John olhar diretamente nos olhos dele, que por sinal eram acastanhados. Ele já tinha mais de dezoito anos, visto que em seu pulso direito flutuava uma bolinha verde, bem curiosa. Quando viu John não sorriu, nem mudou de semblante. Cumprimentou-o de maneira semelhante à de Gary, quando John era mais novo e chegava em casa do colégio:

– Eae, John, beleza? - a voz de Caíque estava bastante grossa. Exatamente como era antes.
– Na verdade não.
– O que aconteceu, alguma tragédia? Alguém morreu? - perguntou, indiferente. O tom de voz fez John perceber ele que não tinha nenhum interesse em saber.
– Não, cara, é que eu tenho pensado muito acerca dessa história de Heróis e Vilões... Eu queria saber mais sobre tudo.
– E aí veio aqui? - disse Caíque, confuso.
– É, né? Quando a gente tava no treinamento todo mundo falava que você sabia muito sobre as histórias... Eu acho que alguns meses não apagaram esse conhecimento, né?
– Meses? - ele agora parecia levemente contrariado. - Faz dois anos, cara. Depois disso eu saí de lá porque o treinamento ficou focado em ataque e defesa. E não, não apagaram. Eu ainda sei um pouco sobre tudo.
– Hum... - John ficou cauteloso. - Vai me ajudar? Preciso de algumas perguntas respondidas.
– Olha, vamos fazer assim: eu te ajudo e tu me ajuda. Morar sozinho com a Kethelly é complicado. A gente trabalha muito e ganha pouco. Então eu te cobro vintão por algumas perguntas, ok?
– Vintão?
– Vinte reais.
– Fechado.

Ele sorriu.

– Me paga quando nós ficarmos satisfeitos, tá?
– Tá.
– Quer entrar?

A casa dele era bem simples. No chão o piso antiaderente era uma mistura de roxo com azul. Na sala tinham dois sofás, cobertos por uma capa vermelha. Um estava de frente para o outro e, à esquerda, estava à televisão. Da sala John conseguia olhar a cozinha, que era acessada através de um breve corredor. A parede dela não havia sido pintada e os tijolos estavam à mostra. John presumiu que os quartos ficavam depois da cozinha.

Olhou para caíque, mas a luz fez sua visão falhar um pouco. Olhou para cima e viu a lâmpada.

– Cara, tu sabe que essa luz incandescente é mais perigosa e gasta mais energia, né?
– Sei... Mas era a pergunta que tu queria fazer?
– Não, cara só comentei...
– Um comentário cuja frase é encerrada com um ponto de interrogação? - quando John ficou calado Caíque prosseguiu. - Senta naquele sofá.
– Cadê a Kethelly? - John sentou. O sofá era bem macio, confortável.
– Tá trabalhando. Só chega às dez - ele sentou-se no outro sofá. - Agora você fez a pergunta que queria fazer?
– Não, não, eu só tava curioso.
– Curioso pra saber da minha vida? Aonde que essas informações vão ser úteis, hein? Faz logo as perguntas, merda.

O modo grosso como Caíque havia tratado John passou a ideia de que ele estava com raiva. O cara era muito calmo, relaxado e bastante piadista quando estavam no treinamento. Sorria fácil, brincava muito e vivia xingando, falando coisas sobre sexo. Durante os quatro minutos que John conversou com ele notou mudanças drásticas, até desconfortáveis. Mas se ele queria ir direto ao ponto, John não ia reclamar.

– Tá. Quando foi que nós surgimos?
– NÓS, Heróis?
– Não, nós, mutantes?
– Algumas histórias dizem que sempre existimos. Outras dizem que nascemos durante uma guerra. Que a gente existe por causas de deuses gregos, que o deus cristão nos abençoou, que vários descendentes nossos antingiriam a perfeita conexão com a Mãe Natureza... Só que o relato mais detalhado, aceito e mais passado de geração em geração conta que a gente apareceu na Idade Média, quando uma estrela caiu do céu, e sangrou um sangue verde.

John refletiu durante alguns longos segundos. "Sangue verde..."

– Como era esse sangue?
– A história não dá muitos detalhes... Só diz que era um sangue pastoso, que derreteu toda a grama que havia ao redor e que desapareceu em duas semanas.
– Algumas pessoas mexeram?
– Sim, dizem que metade da vila tocou. Quando tocaram seus dedos derreram e não deixaram nem ossos.

John havia lido sobre algo parecido em algum lugar. Para ter certeza fez uma pergunta bem peculiar.

– Essas pessoas morreram?
– Algumas - disse caíque, deitando-se sobre o sofá e falando tranquilamente, como se tivesse decorado. - Passaram um mês na cama, bebendo chás e aplicando panos sobre a testa. Todas elas tiveram reações diferentes. Umas ficaram de coma, outras não dormiram, já outras ficaram com a pele tão sensível que qualquer pressão a mais podia abrir uma ferida... As que morreram foram as que nao suportaram a dor e se mataram. Quando o sangue delas caíram, todos compartilhavam a cor vermelha, normal. Só que grossa. As que não se mataram melhoraram repentinamente, depois de trinta, trinta e cinco, quarenta dias. Todas estavam mudadas, mais fortes e resistentes do que eram antes de tudo.

A mente de John corria. Sentiu que devia ter trago um papel para anotar o que achasse mais importante. Refletiu sobre a resposta que recebera.

– Quando as pessoas passaram a... Controlar coisas à distância?
– O relato diz que a primeira pessoa a apresentar sinais de capacidades sobre-humanas foi uma mulher. Esta teve uma discussão normal com o marido e jogou uma panela no chão para descontar a raiva. A panela quebrou o piso de madeira reforçada e ainda ficou tão amassada que só um ferreiro poderia resolver. Mas então ela, com as mãos nuas, desamassou o aço.

"Poder de força...". John imaginou quem escreveu tudo aquilo.

– O cara que deixou esses relatos deixou assinatura?
– Só o pseudônimo - quando John fez um semblante de confusão, Caíque explicou. - Pseudônimo é um nome falso que alguns escritores usavam para não serem identificados.
– Esse cara era importante?
– Era um cavaleiro. Ele gostava de escrever sobre os eventos mais importantes que aconteciam durante a semana. E como a vila era pequena, isso facilitava para ele.
– Esses relatos eram escritos aonde?
– Folhas de um papel rústico, muito grosso. O pessoal da Idade Média não tinha conhecimento químico o suficiente para produzir folhas A4.
– O livro foi encontrado por quem, quando?
– Não sei.

John xingou em pensamento. Odiava ficar sem respostas, então decidiu perguntar outra:

– O livro ainda está conservado?
– Não. Só sabemos dele por conta de imagens em alta definição. As fotos foram tiradas semanas antes de cupins roerem as escrituras velhas. Isso no século passado.
– Imagens em alta definição no século passado?
– Sim, em 1992.

Aquela mulher que jogou a panela não saia da cabeça de John. Depois de pensar mais sobre ela, prosseguiu:

– Então... Por que os Heróis são chamados assim e os Vilões também?
– Os Heróis queriam ser os mocinhos. Espalharam por todas as vilas e reinos da Europa que os "Vilões" eram maus e que iam matar todo mundo. Então os apelidos pegaram.
– Por que os Heróis fizeram isso?
– Por causa de uma polêmica em um vilarejo vizinho, gerações depois da estrela verde. Lá vivia um mutante que tinha a resistência maior. E ele também "malhava" muito e era musculoso; "um homem grande", como o texto original diz. Um dia ele estava cortando algumas árvores quando chegaram dois ladrões com espadas de aço reforçado e armaduras pesadas, vestidos da cabeça aos pés. Disseram que iam pegar as roupas e o dinheiro dele. O homem se recusou a entregar e foi atacado. De acordo com texto as espadas eram como palitos e o homem era como uma pedra. Depois disso o homem contra-atacou e matou os dois ladrões. Quando o povo da vila soube baniram o mutante para longe, depois iniciaram uma perseguição, ao lado de outros mutantes.
– Essa... Perseguição foi só porque o mutante matou os ladrões?
– Sim. Quando o encontraram, bateram tanto nele que nem o poder ajudou. Não demorou muito e ele tava todo estirado no chão, com os membros quebrados, as costas perfuradas por foices e tudo. Depois ainda jogaram água do mar nele. Alguns mutantes olharam assustados enquanto outros diziam que ele merecia pior. Foi aí que surgiu esse impasse. Os mutantes que ajudaram na perseguição se chamaram de Heróis, porque ajudaram na justiça; os que eram contra a perseguição foram chamados de Vilões, porque eram contra a justiça.

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John, horrorizado, com o que acabara de ouvir, não conseguiu falar nada. Apenas imaginou o pavor que aquele mutante sentiu quando viu aquela multidão de pessoas, todas querendo torturar ele. Todo esse tempo, que ele vinha considerando os Heróis como gente boa, sempre apoiando uma causa cuja história mal conhecia. As vezes que deixou de matar humanos porque os achava mais fracos e indefesos e todo o tempo considerando os Vilões como repugnantes e horríveis... Tudo isso fez surgir nele um sentimento de arrependimento. Desde os seus onze anos, quando, sem querer, levantou um caminhão num estacionamento, John vinha vivendo uma vida de preconceito e ignorância, sempre agindo do modo como lhe ensinaram.

Apoiando atos tão repugnantes porque não sabia o verdadeiro significado.

Olhou para o seu pulso e viu, chocado, a bolinha verde, flutuando. As palavras de seu pai ecoaram em sua mente "É como uma tatuagem... A única diferença é que sai se tu fizer coisa errada.". John imaginou o que poderia ser aquela bolinha...

– Caíque, me diz. O que é essa... Bolinha?
– A marca do bem?
– É... - "eles chamam de marca do bem?".
– Olha, é... Ninguém sabe. É um mistério. Mas há varias teorias. Eu não sei nenhuma.

Enquanto reorganizava os pensamento, John percebeu que esse tempo todo seres humanos perseguiram aquele mutante porque ele era mutante. Não porque ele tinha matado aqueles assaltantes. Questionou-se sobre como os humanos sabiam que ele era mutante.

– Por que seres humanos não conseguem processar a gente usando poder?
– Outra que ninguém sabe... Mas eu sei algumas teorias... Dizem que uma tal de Leatrice Smith amaldiçoou alguma coisa, outros dizem que foram divindades santas... Mas EU acho que foi um telepata que conseguiu invadir todas as mentes ao mesmo tempo e mexeu em alguma área do cérebro que cuida da visão e da percepção. Depois disso ele deve ter morrido por causa da energia... Mas eu tenho certeza que foi uma mulher - quando John passou tempo demais calado, Caíque perguntou - John, não vai mais perguntar nada?

Ao passo que reorganizava os pensamentos, John recordou-se do motivo prlo qual viera à casa dele. Apenas curiosidade. Iria sair de lá disposto a abandonar a vida de Herói... Mas não antes de saber sobre uma última coisa:

– E quanto à guerra?
– Que guerra?
– Teve uma guerra, né? Entre Heróis e Vilões?
– Sim, teve.
– Como foi?
– Ruim.

John olhou para ele, esperando uma resposta melhor.

– Como foi que ela começou, cara?
– Quando um Herói estava discursando acerca de uma possível excursão para expulsar os Vilões da terra.
– Essa foi a causa da guerra?
– Não.
– Entao qual foi?
– Foi por causa de um senhor feudal menor. Os humanos que trabalhavam para ele atrasaram os impostos e ele os convocou ao seu "castelo". Chegando lá esse senhor usou sua capacidade de controlar a energia e queimou a família inteira daqueles humanos, incluindo um bebê de oito meses... Depois disso todo mundo ficou revoltado, pregando discursos de ódio um contra o outro.
– Essa... Guerra durou quanto tempo?
– Dois anos. Nesse tempo nenhum humano foi visto na face da terra. Todos ficavam escondidos em cavernas e desertos, porque se era visto por Vilões morriam. As batalhas foram travadas em qualquer lugar. Herói contra Vilão, todos lutando para se matarem.
– Como acabou?
– Tem uma certa discussão quanto a isso. Uns falam que ainda não acabou, mas outros falam que acabou quando, oficialmente, surgiu essa separação e os humanos ficaram com a visão limitada. Assim que a separação surgiu, quase todos os mutantes perderam os poderes. Só restaram os que tinham menos de dezoito - depois de um tempo refletindo a voz de Caíque foi ouvida mais uma vez. - Acabou?

John havia acabado. Mas uma última pergunta precisava ser feita:

– É possível um Herói... virar Vilão?

Caíque hesitou um pouco, fitando o rosto pensativo e a tensão na face de John. Quando respondeu sua voz estava cautelosa, como se pisasse em em gelo fino. Havia um certo pesar, mas ainda assim não gaguejou:

– John, para essa resposta vou precisar de mais dez.