Oliver gostaria de ter conhecido mais um pouco de Hong Kong. Ou melhor, de ter conhecido o lugar. Caminhar levemente durante algumas horas pelo Aeroporto Internacional de Hong Kong não contava realmente como conhecer Hong Kong. Era como visitar uma casa e andar apenas pelo quintal. Queria prometer para si mesmo que voltaria novamente, mas não se via naquele lugar voluntariamente.


Por outro lado, uma semana atrás, ele também não conseguiria se imaginar em Perth, mas, após a escala de voo feita em Hong Kong, ali estava: No terminal 1 do Aeroporto Perth. Wally se espreguiçava despretensiosamente ao seu lado, mal tinham trocado palavras durante as dezesseis horas entre o Japão e Perth.

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Ele era esquisito para um membro da Pandora. Não parecia ser forte ou particularmente especial em nada, exceto falar. E falar, curiosamente, era o que ele menos fazia. Pelo menos, Oliver pensou, na sua presença. Talvez ele não gostasse dele, os outros Wallys nunca gostaram.


– Receio… - Ele falou, por fim, quebrando o silêncio e lhe entregando uma mochila. - que é aqui que nos separamos.


Estavam de frente para a rodovia Tonkin, onde um carro preto discreto, auxiliado pela noite, o aguardava. Oliver colocou a mochila sobre as costas e viu a expressão sombria no rosto de Wally.


– Ah, vamos lá. – Oliver deu um tapinha em seu ombro, testando-o. Sem reações bruscas ou movimentos evasivos. Outros Wallys ameaçariam arrancar a sua mão se ele os tocasse, mas aquele não se importava. Seria ele absolutamente normal? – Não finja que vai sentir a minha falta.


– Não vou. – Ele admitiu, com um sorriso, e então estendeu a mão. – Mas torço pelo seu sucesso. Estamos do mesmo lado, Oliver.


Oliver apertou a mão dele de volta: - Sei. Até um outro dia, Wally.


– Ah. – Ele exclamou assustado, metendo a mão no bolso e retirando um pequeno pendrive dele. – É para você.


– E o que eu faço com isso? – Ele tinha passado muitos anos fora dos centros. Não entendia muito bem dessas invenções modernas. E cada dia surgia uma diferente!


– Você é esperto. Vai descobrir. – Wally respondeu, lhe dando um leve empurrão na direção do carro.


No tempo de entrar no carro e bater a porta, quando ele olhou pelo vidro peliculado, seu Wally não estava mais lá, embora ele não tivesse ouvido os seus passos. Quando o carro avançou, Oliver sorriu. Tinha subestimado o homem.


Agra, Índia
Junho de 2008


A decoração indiana fazia o quarto deluxe do Oberoi ser ainda mais luxuoso do que o nome sugeria. Após semanas morando em cabanas com os dalits, era bom estar do lado rico da Índia. Talvez ele não gostasse de admitir, mas um pouco de conforto o fazia esquecer todos os problemas ao redor. Inclusive os seus próprios.


Jennifer tinha tido muito o que dizer antes daquilo. Sobre como ela viajava pelo mundo, assim como ele, embora com um objetivo diferente. E bem mais insano do que as coisas que ele costumava fazer, que envolviam clubes da luta indianos clandestinos.


– Está familiarizado com o mito grego de Pandora, senhor Young? – Jennifer perguntou, sentando-se ao seu lado na varanda do quarto. As estrelas eram quase ofuscadas pelas luzes da cidade. Se apertasse bastante os olhos, mesmo na noite, Oliver conseguia vê-las.


– Me chame de Oliver. – Ele pediu, enquanto tentava se lembrar. O nome lhe era comum. Estava sempre em jogos de RPG, desenhos animados e histórias em quadrinhos. – Levemente.


– Conta a história de um pensador, Prometeu, e seu irmão, Epimeteu. Eles eram os guias da humanidade em seus dias de glória. Sem dor, doença, conflitos, um mundo de paz. Até que esse pensador decidiu roubar um pouco do fogo dos deuses para presentar os homens. – Ela puxou um fósforo e o riscou, fazendo a chama brilhar na noite entre os dois. – Não contente em punir Prometeu, o rei dos deuses resolveu punir a humanidade. Eis que surge a primeira mulher.


– Pandora. – Oliver comentou, se situando na história enquanto o cristal traduzia alguns nomes. Prometeu e Epimeteu eram opostos, enquanto um era o que pensava antes, o outro era o que pensava depois. Pandora significava “todos os dons”, o que soaria como um elogio, se ela não tivesse sido criada como uma punição. – Os gregos eram um pouco misóginos, eu imagino.

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– Um pouco? – Ela gargalhou, apagando o fósforo. – Aristóteles costumava dizer que uma mulher não passava de um homem imperfeito. Enfim, sim, Pandora foi como a Eva dos gregos. Ela fez basicamente o mesmo papel. Exceto que, em vez de comer um fruto proibido, ela abriu um jarro proibido. A proverbial “Caixa de Pandora”.


– E vocês acharam que esse seria um nome legal para um grupinho? Liga da Justiça estava ocupado? – Ele não se conteve. Não tinha nada contra a história, mas o jeito que Moore falava quase o fazia se sentir como se estivesse ouvindo um fato, não um mito. Era desconfortável.


Ela riu, mas continuou. Era muito objetiva: - O jarro libertou as piores coisas que a humanidade veio a conhecer. Obviamente, isso também carrega uma metáfora, já que a esperança foi o último resíduo do jarro. A última que morre. É por isso que somos o que somos: Uma prisão para os males da humanidade e um abrigo para a esperança.


Oliver parou para pensar. Aquilo não combinava muito com ele. Ele gostava de aventuras, liberdade, confusão. Mas aquilo era muito… grandioso para ele. E ela percebeu o que ele estava pensando:


– Você segue esquecendo que não é humano. Não é normal como eles. – Ela apontou o rosto para as luzes embaixo, ele não precisava olhar. Podia ouvir os risos e sentir os passos dados metros abaixo. Se tentasse mais além, podia ouvir cada batimento e mesmo cheirar a oxitocina. – Não como eu.


Ele se conteve em dizer que quando se passava a vida atrás de pessoas que possuíam estranhos cristais encontrados nos lugares mais esquisitos possíveis e que concediam poderes ao usuário, você não podia se chamar de normal. Ela o deixava um pouco tenso demais para falar aquilo, embora parecesse ser gentil. Algo nela o assustava.


– Eu não esqueço nada, Jennifer. Nem uma palavra, nem um rosto. É uma das minhas maldições. – Ele olhou rapidamente para Arno, que brincava com uma bola dentro do quarto sem tocá-la. – Mas se eu for com vocês, significa ter que aceitar isso.


– Não é algo negociável, acredite. – Ela comentou, quase triste. – Só há um jeito de se livrar desse fardo.


– Canadá? – Oliver perguntou, recebendo um olhar surpreso. – Terra da liberdade… e dos alces. Eu nunca vi um alce.


Ela riu novamente, o que o deixou mais preocupado. O olhar nostálgico dela revelava a natureza de seu riso. Jennifer Moore sentia falta de ser, como ela mesma disse, “normal”. Não tinha um cristal, mas estava tão inserida naquilo como ele.


Contudo, ele não precisava de nenhum de seus sentidos para lhe dizer que ela o deixaria ir daquela vez, torcendo para que não precisasse encontrá-lo novamente. E ela não precisava da experiência que tinha para saber que aquilo era quase impossível.


– Irei embora pela manhã, senhor Young. – Ela anunciou, por fim, levantando-se. – Não se engane. Pessoas como você… - Jennifer fez uma expressão emburrada. – Como nós, não têm finais felizes.


– Vou lembrar disso. – E lembraria. Para sempre. – Ah, sobre essa história. É só um mito grego, certo?


Ela respirou fundo: - Sim, é só um mito. Mas como todos os mitos, senhor Young, ele começou com uma pequena verdade, em algum lugar. Em algum lugar…


Agora


A autoestrada Graham Farmer era saudosa, embora no escuro ele mal visse as árvores que a cercavam e os caminhos que levavam até fazendas e ranchos próximos, além do rio Swan. Entre todas as coisas que tinha visto nos últimos anos, estar em Perth novamente era surreal.


A cidade mais linda do mundo se abria diante dos seus olhos. As luzes dos enormes prédios, brilhando intensamente em cada andar, refletiam a vivacidade da capital da Austrália Ocidental. Um misto de alegria, ansiedade e, de certa forma, tristeza, passavam por ele. Sete anos o tinham separado dali. Tempo demais. A cidade o saudava, sim, mas mais como a um estranho do que como um filho perdido.


Porque Perth era viva. Por trás de todo aquele concreto havia esperanças, sonhos e vida. Desde os colonos até os dias atuais. Perth acompanhava o desenrolar daquela história e era a única capaz de contá-la em mínimos detalhes. E ela contava, se se soubesse ouvir. Se se soubesse sentir o chão tremer com os passos do seu milhão de habitantes, cada um contando uma história diferente. Pedaços de um quebra cabeças possível de resolver.


Sentado na parte de trás do carro, ele puxou a mochila e a pousou do seu lado, abrindo-a. Pandora tinha bons presentes para ele dessa vez. Um pequeno computador portátil, que ele notou ter uma entrada compatível com o formato do pendrive que Wally lhe entregou. Alguns (muitos) papéis. Atestados médicos, certidões de casamentos (!), registros financeiros, tudo convenientemente forjado.


Alguns instrumentos básicos também configuravam sua bagagem: Uma lanterna, um canivete cheio de funções e uma máscara que cobria todo o rosto, exceto os olhos. Além disso, seus dois amuletos como sempre o acompanhavam, embora ele suspeitasse que um deles se tornasse desnecessário em breve, e não seria o cristal.


– Não me deixe em casa. – Ele falou para o motorista, quando percebeu que estava próximo do Brookfield Place, o grande restaurante que ficava em frente ao seu prédio. Literalmente o seu prédio, mas não achava conveniente chegar em casa após sete anos enquanto todos dormiam. – Quero ficar perto do Karrakatta.


Cinco minutos depois, dada a proximidade, ele estava lá, onde tudo tinha começado. O motorista partiu sem lhe dizer uma palavra assim que ele desceu. Nem todos eram bons Wally's. A avenida John Curtin estaria vazia, não fosse pelos seguranças rodando próximos do cemitério. Ele tinha que concordar que o sistema de segurança tinha melhorado, mas a noite continuava sendo sua.


Era na noite onde ele ouvia e sentia. E ali? Era como a sua casa. Onde o Pensador tinha nascido, ainda que não tenha ficado. Os batimentos denunciavam a quantidade de seguranças e suas posições, e pular uma grande de ferro de dois metros e meio não era exatamente um desafio. Após horas sentando de avião em avião, seu corpo praticamente pedia por aquilo.


Era esquisito voltar ali, pois ele quase não se lembrava. Nada de antes, tudo de depois. De vez em quando, ele suspeitava que Oliver Young, o verdadeiro, tivesse morrido ali. Que ele apenas acreditava ser essa pessoa, mas, na verdade, era outro alguém. Alguém sem identidade, que apenas roubara a vida de uma criança assustada.


O mausoléu estava lá, como sempre. Dessa vez, trancado e repleto de flores. Ele segurou um buquê de orquídeas, pensando em quem o teria deixado ali. Quantos amigos do seu pai ele conhecia, e quantos ele não conhecia? Quanto do seu pai ele conhecia?

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Oliver pegou o canivete e começou a tentar abrir a fechadura do lugar. Não era fácil invadir um lugar que já tinha sido invadido e que, recentemente, tinha conseguido um novo hóspede ilustre. Os minutos se passavam (seriam horas?), e ele continuava pressionando os pontos que conhecia naquela fechadura, moldando suas engrenagens a seu favor.


Por diversas vezes, ele parou, se esgueirando nas sombras, imóvel, quando algum segurança passava por ali. Aconteceu tanto que ele começou a entender as rotinas que eles faziam, podendo ficar um pouco mais tranquilo e tomar o próprio tempo.


Quando finalmente conseguiu, o Sol já ameaçava erguer-se no céu. Ele entrou e fechou a porta, o que fez o seu cristal imediatamente brilhar, assim como os dos caixões que estavam nas paredes. Era hora da verdade.