Hearts Of Sapphire

¨t h i r t y - o n e¨



A biblioteca da Ordem Ônix era tão aconchegante que Conall se via tentado a arranjar um canto onde colocar sua cama e passar o resto de seus dias ali.

Bem, pelo menos não precisaria se deslocar tanto a fim de prosseguir com sua pesquisa, pensou com um sorriso.

Quer dizer, prosseguir com sua pesquisa seria muito mais fácil se ele, de fato, soubesse ler direito, ponderou, por fim, com amargura.

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Se ao menos Corinna tivesse aceitado a proposta de Theodor, ela estaria ali pesquisando também ou até mesmo ajudando-o a aprender a arte da leitura.

Esperava que Mattia estivesse fazendo algum avanço.

Não havia tido a oportunidade de ver alguma das duas nos últimos dias. E algo dentro dele ansiava para vê-las.

Ou melhor, vê-la com mais frequência.

Ir até Corinna não era um problema. Dificilmente alguém se importaria ou notaria sua ida até o Galpão, mas ir até a Ordem Granada para falar com uma concorrente era suspeito demais.

Conall duvidava que Trevan, o Senhor Granada, o deixaria passar pela porta, na verdade.

Passaram-se algumas horas desde o confronto de Corinna.

Sentara ao lado de Mattia — os dois silenciosos e sem demonstrar nenhuma proximidade entre si.

Não que Mattia demonstrasse naturalmente alguma proximidade além do elo da aliança entre ele, ela e Corinna.

Na maior parte do tempo, os dois se desentendiam, mas tinha de admitir que ficara contente quando a encontrara no banheiro descobrindo seus dons.

Ficara feliz por haver mais um elo entre eles, mais um segredo. E, certamente, ficou lisonjeado quando lhe mostrara seus próprios poderes e ela o observara com algo no olhar.

Como se ele fosse especial.

Tinha certeza que Mattia pensou num primeiro instante que ela era uma aberração, mas pôde ver nos seus olhos um alívio profundo ao perceber que não estava sozinha. Que se aquilo fosse um fardo, Conall também o carregava com ela.

O Escolhido não tinha certeza de que aquilo era de fato uma coisa boa, mas ficava feliz em poder dar algum tipo mínimo de conforto a garota.

Era uma dos poucos momentos satisfatórios que provavelmente obteria com a menina. Isso e sentar ao seu lado.

Ambos prenderam a respiração quando algo de errado começou a acontecer com Corinna na Arena.

Primeiro a caçadora parecia se render, desistindo.

A cada golpe que a jovem levava, Mattia estremecia no assento.

Seu próprio estômago começava a se revirar com aquilo.

E então, de repente, algo mudou.

De presa, a menina passou a ser a predadora.

Conall, que era excelente nos combates físicos, nunca vira algo tão impressionante.

A Escolhida era ágil e fluída como uma serpente. E, como tal, o bote foi instantâneo.

Em um segundo, Corinna estava sobre Nyota, ao mesmo tempo que a mão de Mattia apertou a sua, ambas escondidas pelo caimento da saia do vestido da Escolhida de Amara.

Seu coração acelerou e ele não sabia se era devido ao gesto ou à cena que se desenrolava em frente ao seus olhos.

Quer dizer, é claro que o rapaz sabia que na verdade grande parte daquele frenesi era pela mão de Mattia estar na sua.

Quis olhá-la nos olhos, quis abraçá-la até que se acalmasse. Corinna não mataria Nyota. Em algum lugar dentro de si — aquele que tinha uma percepção muito boa das reais intenções de cada pessoa — Conall sabia que Corinna nunca faria algo do tipo.

Ele simplesmente sabia.

Queria que naquele momento Mattia soubesse também.

Entretanto, não fez nenhum gesto visível que comprometeria os dois, apenas acaricou de leve a mão que apertava a sua firmemente, colocando toda uma energia tranquilizadora na ação.

Ainda não sabia como os poderes funcionavam, não sabia nem mesmo se tinha o poder de tranquilizar alguém através de magia, mas queria acreditar que alguma energia poderia agir em seu favor.

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No fim estava certo sobre Corinna. A jovem desacordou Nyota com uma técnica rápida e surpreendente e...correu.

A garota simplesmente fugiu.

Bem, não tinha muito para onde ela ir, mas ainda assim...

Mattia soltou sua mão e o baque foi maior do que ver Corinna correndo. A menina olhou por um milésimo de segundo para ele e mesmo com a velocidade Conall viu a mensagem em seus olhos.

"Precisamos agir rápido."

As íris brilhavam com uma luz que o rapaz não tinha reparado antes. Mas ora, eles mal haviam se olhado desde que chegaram.

Contudo, agora que o combate havia acabado — agora que Corinna vencera — agora que Mattia andava em direção a Trevan, ele percebeu como ela estava diferente.

Sua postura era mais firme, seus olhos mais intensos, sua pele mais brilhante...

Conall percebeu com um piscar de olhos que Mattia exalava poder.

O rapaz esfregou e piscou os olhos voltando a focar no livro aberto a sua frente. Era um livro comum sobre guerras e estratégias.

Obviamente não pegaria um livro suspeito para ler em público, quando qualquer pessoa poderia entrar ali e flagrá-lo. Theodor era amistoso, mas Conall não queria descobrir até que ponto.

Ou pior, ter de passar por um de seus interrogatórios.

Ainda estava nas primeiras páginas da leitura. Não sabia quanto tempo tinha se passado imerso em seus devaneios, mas quando levantou a cabeça dos livros deu de cara com um garoto que aparentava ter uns quatorze anos no máximo.

Conall quase caiu da cadeira.

—Olá. — o jovem disse com a mão estendida.

Não para que Conall segurasse, o Escolhido percebeu, mas para que sua cadeira não tombasse para trás.

Um vento rápido —parecido, e ao mesmo tempo nem tanto, com o seu— fez a cadeira se equilibrar nos quatro pés novamente.

—Oi?— Conall se limitou a dizer.

—Prazer, Conall, eu sou Thad. — o menino agora estendia a mão para cumprimentá-lo. —Quer dizer, é Thaddeus, mas pode me chamar de Thad.

—Como sabe o meu...?

—Sou curioso e atento.— o menino respondeu antes que Conall tivesse a chance de formular corretamente a pergunta. —Perdão, eu não deveria ter feito isso.

O Escolhido franziu a testa.

—Feito o quê?

—Lido sua mente, oras.— Thaddeus disse com a naturalidade de quem fala que o céu é azul e as nuvens são brancas.

O garoto de Nix poderia muito bem ter caído de verdade dessa vez.

O Governante Ônix tinha ensinado o básico sobre proteger a mente para Conall, apenas o suficiente para que ele não fosse manipulado por outros deorum.

—Você está cansado. É mais difícil manter escudos mentais em pé assim. — O garoto puxou um fio solto de sua camiseta preta e enrolou entre os dedos. Quando Conall o encarou calado, ele continuou. —Não, eu não li sua mente de novo. É que, bem, a pergunta estava estampada no seu rosto.

Os olhos do menino cintilaram com divertimento e Conall reconheceu a expressão. Apesar de ambos serem de um dourado misturado com preto, os olhos eram do mesmo formato que o de Theodor.

—Você é...?

—Irmão do Theo. O mais novo. Thalles é o do meio e Theo, obviamente, é o mais velho. — Thad deu de ombros.— Acabamos de chegar. Quer dizer, eu, mamãe, papai e Thalles. Estávamos em uma das ilhas que pertencem a nossa Ordem.

O jovem falava tudo rápido demais e a cabeça de Conall doía depois de tentar ler mais do que uma dúzia de palavras daquele livro.

—Prazer, eu acho. — Conall murmurou.

Thad deu um sorriso que enrugou o canto de seus olhos.

Então, gesticulando para o livro que o Escolhido tinha em mãos, comentou:

—Eu poderia te ajudar, sabe... Com a leitura.

O Escolhido arqueou uma sobrancelha e o menino à sua frente cutucou o canto da unha de seu polegar.

—Eu estou aqui...há algum tempo.— Thaddeus hesitou em admitir. —Você está na mesma página desde que cheguei e eu pude ver as palavras tentando se formar em seus lábios, então...

Era humilhante perceber que uma criança era perceptiva e silenciosa ao ponto de estar ali há bastante tempo e perceber que Conall mal conseguia sair de uma página.

O rapaz continuou de cabeça erguida, no entanto.

O irmão de Theo não era uma criança comum, era um deorum, portanto, era natural que algumas habilidades fossem...muito bem desenvolvidas para a idade.

Porém, apesar de ser um deorum, a proposta do garoto parecia sincera e Thad não parecia caçoar da falta de inteligência de Conall.

Isso sim era bastante incomum.

Conall apenas assentiu discretamente com a cabeça.

Precisaria de toda a ajuda possível, mas quando Thad mudou-se para cadeira ao seu lado para ter uma visão melhor do livro decidiu tentar a sorte:

—Poderia ficar entre nós a...?

—Leitura? Claro, quer dizer, só se aceitar virar meu amigo.

Conall franziu a testa. Por que um deorum se importaria em ser amigo de um humano?

O brilho ansioso nos olhos de Thad, fez com que ele esquecesse os questionamentos.

— Contanto que deixe com que eu termine minhas frases e não espie minha mente... —O Escolhido de Nix disse em um tom divertido e Thad deu uma risada.

—Fechado.


Não emergia à superficie há um tempo.

Ao sair do banheiro, Corinna viu que Athlin tinha a companhia de Fearis que trazia prontamente um dos vestidos para que seu conjunto pudesse ser lavado.

A criada parecia se manter o mais imóvel possível.

Corinna não sabia muito sobre os deorum, mas talvez eles conseguissem perceber a gravidez de outra pessoa.

Sobretudo os Governantes, que pareciam o tipo que seria capaz de fazer algo assim.

Pegando o vestido cinza simples feito com um tecido grosseiro, a Escolhida apenas assentiu em agradecimento para Fearis e viu os olhos da menina brilharem em gratidão.

Athlin nem ao menos levantou o olhar da própria mão e, portanto, nem reparou nas roupas grandes demais que cobriam o corpo de Fearis.

A criada saiu e Corinna apenas murmurou alguma coisa sobre voltar ao banheiro para trocar as vestes.

O Senhor Esmeralda apenas inclinou a cabeça num rápido consentimento, como quem a esperaria até o fim dos tempos, se fosse necessário. Era uma sensação estranha perceber aquilo

Conscientemente ou não, Fearis trouxera um vestido que se encaixava muito bem para a ocasião.

Ele era quente, completamente fechado e tinha mangas que roçavam seus pulsos. A jovem agradeceu por aquele detalhe quando uma brisa fria roçou o seu rosto enquanto ela e o Governante subiam em silêncio as escadarias que levavam a parte superior do Galpão.

Athlin andava girando um anel no anelar direito e, se aquele gesto fosse feito por um humano, Corinna teria interpretado como um sinal de nervosismo.

Porém, ali, com ele, não fazia sentido.

Athlin era o Senhor Esmeralda, um Governante. Caso lembrasse bem das informações que Laeni lhe fornecera, ele era o terceiro mais poderoso de Excelsior.

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Ele não poderia estar nervoso por estar ao seu lado.
Poderia?

A caçadora teve de estreitar os olhos quando um feixe de luz branca atravessou uma das janelas de um dos corredores. Ela podia ver sinais da grama verde e das árvores no exterior, apesar de uma densa neblina cobrir grande parte da paisagem.

Corinna suspirou.

Subir até a superfície não era uma oportunidade que apareceria com frequência — pelo menos não até a garota escolher um Simpatizante —, esperava que ao menos estivesse fazendo um clima razoavelmente agradável para que seus olhos pudessem apreciar uma paisagem ampla e aberta. Porém, toda aquela neblina parecia deixá-la ainda mais sufocada.

—O que houve? — a voz de Athlin cortou o ambiente enquanto eles caminhavam em direção à... Aonde quer que o deorum a estivesse levando.

Não ter certeza de para onde estava indo era desconcertante. Poderia facilmente ser uma presa sendo levada a uma armadilha.

Mas, não tinha muito o que ela pudesse fazer além de segui-lo.

—Nada.— respondeu, com sua voz não passando mais do que um sussurro.

—Parece decepcionada.—Athlin insistiu.

—Não é isso.— a Escolhida se apressou em dizer. —É só que...estou há tanto tempo no subsolo que sinto falta de ver as coisas. — Quando notou um leve franzir de testa em Athlin, a jovem esclareceu. — De ver a natureza. A vida. Florescendo e se alastrando. Tudo que é me permitido ver são paredes cinzas e vestidos cinzas. Respiro o odor de suor e sangue. Saio do Galpão e vou até a Arena sem a certeza de que voltarei. Saio da Arena e volto ao Galpão sem a certeza de que sobreviverei mais uma noite. É meio...sufocante.

A menina se deteve. Não só porque Athlin abria uma das enormes portas duplas semelhantes àquelas do salão onde ocorrera a Cerimônia de Boas-vindas, mas também porque não sabia o motivo de estar realmente falando o que sentia para ele. E sem filtro algum.

Sentia falta de um amigo. A única pessoa com quem ela poderia falar tudo o que vinha à mente estava quase em outro mundo. A quilômetros de distância. Vivendo a vida que ela costumava viver um dia.

Esperava que seu pai não estivesse temendo por ela. Ficaria bem. Tinha de ficar.

Uma mesa estava localizada no centro do cômodo que, apesar de ser metade do salão da Cerimônia, ainda era grande o suficiente para a garota levar uns bons minutos digerindo tudo.

E por falar em digerir, a mesa — posta apenas para dois — trazia várias bandejas de prata de onde exalava aromas tão deliciosos quanto o que deveria haver dentro delas.

O estômago da menina fez um barulho discreto e suas bochechas esquentaram. Embora, se Athlin percebeu algo, não deixou demonstrar em seu rosto enquanto puxava uma cadeira de maneira gentil para que Corinna se sentasse.

A caçadora caminhou até o local e se acomodou no mesmo instante em que o Senhor Esmeralda dava a volta e acomodava a si mesmo.

Athlin puxou cada uma das tampas das bandejas com elegantes floreios de mão.

A cada prato revelado, a jovem sentia sua boca salivar.

Ficava envergonhada em admitir para si mesma,— enquanto se servia do cordeiro banhado em algum molho exótico, mas extremamente delicioso— que se a ideia do Governante era conquistá-la através de comida, ele estava no caminho certo.

Céus, seus padrões não eram assim tão baixo mesmo quando passava alguns dia sem alimento em Fortuna.

O Governante Esmeralda, no entanto, parecia tão absorto na comida quanto a Escolhida. Ele comia com avidez e despreocupação enquanto Corinna tentava não atacar cada uma das bandejas devorando tudo.

Não demorou muito para que sua barriga desse o sinal que não aguentaria mais uma gota do resfreco de frutas vermelhas que estava disponível.

A Escolhida e o Governante acabaram a refeição quase ao mesmo tempo, e menina começava a lamentar ter comido rápido demais e não ter tido o tempo necessário de gravar a sensação e o sabor dos alimentos em sua mente.

Sabia que quando voltasse ao Galpão seria forçada a engolir novamente o pão duro e insosso.
—Estava tudo de ótimo gosto. — Decidiu quebrar o silêncio enquanto limpava a boca com o guardanapo de pano.

—Pedi para a antiga cozinheira da minha casa que cozinhasse. Realmente senti falta do seu tempero.

—Encontrou um emprego melhor?— a garota questionou embora não conseguisse imaginar um emprego com status maior do que trabalhar para um Governante.

—Desentendimentos com o meu pai, eu suponho. — ele deu de ombros, como se não ligasse de fato, embora a tensão ao mencionar a palavra pai fosse visível.

—Ah.— foi tudo o que a menina pensou em falar.

Corinna desviou o olhar para as grandes janelas do cômodo metade abertas, metade cobertas pelas cortinas espessas.

—Continue. —Athlin disse depois de tanto tempo que a menina quase esquecera do porquê estava ali. Quando voltou a se virar para ele, o rapaz a encarava com olhos interessados.— Creio que parou na parte em que não sabe se voltará ao Galpão a cada vez que sai dele.

Seu rosto ficou quente. O Governante estava realmente prestando atenção.

E Corinna não soube se foi essa constatação ou o modo quase juvenil e estranhamente humano com que Athlin apoiava sua cabeça na mão enquanto esperava para ouvi-la ou até mesmo se eram seus olhos profundamente verdes e encantadores que a impeliam a falar, mas ela limpou a garganta.

E continuou.


"...Estou há tanto tempo no subsolo que sinto falta de ver as coisas."

Athlin franziu a testa. Sua mão estava na metade do caminho até as maçanetas das gigantes portas de madeira a sua frente.

A Escolhida prosseguiu.

"De ver a natureza. A vida. Florescendo e se alastrando"

Aquelas palavras se fincaram profundamente no Governante.

Era quase como se ele próprio pudesse tê-las proferido.

Claro, ele não estava confinado num subsolo medíocre onde um passo para além da porta era proibido, contudo, a sensação era a mesma.

Vivia na enorme e abrangente Mansão Esmeralda. Quase do tamanho de uma pequena vila. A floresta não só rodeava como envolvia e acariciava as colunas e paredes da estrutura.

Ar puro e paisagens verdes — e às vezes coloridas em outros tons— apesar de o espetáculo ser mesmo as infinitas espécies algumas comuns e outras exóticas que passeavam livremente na propriedade.
Livremente.

Apesar da grandeza, não se sentia nada livre ali.

Athlin adentrou o salão que mandara preparar mais cedo, a acompanhante bem ao seu lado.

Seus cabelos estavam presos fimermente no alto da cabeça mas alguns fios caíam se rebelando contra o resto.

Não sabia porque, mas Corinna demonstrava em si desafio e uma revolta sensata —se é que era possível que as duas palavras coexistissem na mesma descrição.

O vestido simples caía tão bem nela que era possível enxergar a diferença de peso entre a Cerimônia de Boas-vindas e aquele exato momento.

O Senhor Esmeralda se parabenizou mentalmente por ter conseguido que Maye preparasse a refeição generosa que ele pedira.

Ele próprio atacou a comida como um faminto que não via um prato há anos — de certa forma, não provava o tempero de Maye a quase uma década.

Enquanto comiam, Athlin arriscava olhadelas para a Escolhida.

Ela olhava para comida como se tentasse memorizar cada sensação.

De repente, o rapaz se viu ansiando pelo momento em que os olhos dela se voltariam para os dele.

Parecia ilusão, mas algo no olhar —nas palavras— dela fazia com que ambos se conectasse.

Pelo menos, ele se sentia conectado a ela.

Dois mundos e duas histórias tão diferentes.

Destinos tão distintos e ainda assim, mesmo sem trocar nem uma centena de palavras — coisa que seria bem aceita para o que ele estava prestes a admitir para si mesmo — parecia que Corinna tinha um tipo de compreensão sobre ele que nenhuma outra pessoa no mundo seria capaz.

—Estava tudo de ótimo gosto. — A Escolhida quebrou o silêncio enquanto limpava os lábios bem desenhados.

Athlin piscou e se viu explicando sobre Maye.

Gradativamente subiu o olhar até os olhos da menina.

Ao mesmo tempo que ansiava por olhá-los, temia que fossem sua perdição.

Eles estavam lá brilhando, azuis não como o céu, mas azuis como um mar inquieto ou talvez um dos lagos noturnos que se espalhavam na costa oposta do Setor Superior.

Cintilavam com uma curiosidade que parecia significar: "Por que mesmo ele me chamou aqui?"

Por um segundo, Athlin realmente achava que não tinha resposta para aquela pergunta silenciosa, mas então voltou a si.

Algo como um puxão em sua mente, devolveu-lhe a claridade nos pensamento —porém não tão rápido para que impedisse de que seus lábios se movimentasse e pedissem que Corinna voltasse a falar sobre seus pensamentos e sentimentos.

Ela pareceu um pouco surpresa com o pedido, mas voltou a se expressar e, pela primeira vez, uma voz conseguiu, de fato, suavizar o puxão em sua cabeça.

Não de maneira súbita, mas como se cada nota proferida em suas palavras fosse uma carícia que fazia com que aquele incômodo, aquela corda que o deixava nos eixos, se suavizasse e adormecesse.

Corinna contava cautelosamente sobre sua casa em Fortuna. Sobre a floresta e suas caçadas. Sobre como se sentia livre quando os vento penteava seus cabelos.

O Governante, apesar de provavelmente soar influenciador, contou sobre as suas próprias florestas, sobre os animais e as flores e a enormidade da Mansão Esmeralda.

A única coisa que não disse era que, para ele, ali era sufocante.

Amava sua casa e sua Ordem, mas desde que assumira a posição de Governante — desde que arrancara o poder da mão de seu pai — ele se sentia como se a mesma liberdade fosse sua prisão.

Como se os animais que domava, haviam se tornado domadores dele.

Como se os criados que sorriam e encobriam suas saídas às escondidas, agora eram os espiões que delatavam cada suspiro seu.

Não sentia mais a brisa lhe abraçando da varanda do seu quarto. Na verdade, era quase como se ela tivesse a intenção de estragulá-lo.

Então, embora não tivesse dito isso a Corinna, ele entendia como era a sensação de estar preso.

De não ver mais as cores do mundo.

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Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

De não saber até quando suportaria, sobreviveria.

Percebeu que tinha ficado em silêncio por tempo demais desde sua última descrição sobre a Ordem Esmeralda, porém a Escolhida não parecia se importar.

Naquele momento, ela olhava na direção de uma das janelas, uma que foi completamente aberta pelo vento frio.

Corinna fechou os olhos por um instante sentindo a brisa soprar e Athlin assistiu seus lábios se curvarem lentamente em um pequeno sorriso.

Logo os seus próprios refletiam a expressão involuntariamente.

Estava feliz por ela saber onde era a saída de sua prisão, algo que ele próprio não fazia nem ideia da sua.

Inexplicavelmente, estava feliz por ser ele a propiciar aquela expressão de paz —ainda que por poucos segundos— no rosto dela.

Olhou para uma pequena mesa bem escondida no canto oposto do salão e antes que pudesse se conter:

—Dança comigo?

Como se acordasse bruscamente de um sonho, a menina se virou para ele alarmada.

—Dançar?

Athlin não pôde conter o sorriso em seus lábios enquanto ela formulava algo mais para dizer.

—Não há música. — sua voz foi um pouco mais do que um sussurro, como se a própria não acreditasse que estava considerando a proposta.

—Ainda. — e com o gesto rápido da mão, o Senhor Esmeralda fez com que a vitrola na mesinha no canto do salão funcionasse ecoando uma melodia alegre e reconfortante. —Acho que a senhorita não teve a oportunidade de dançar uma de nossas baladas na Cerimônia de Boas-vindas.

O Governante podia ver que a jovem tentava conter um sorriso, mas quando ele se levantou e estendeu a mão, ela o advertiu:

—Sou uma péssima dançarina. — sua mão transmitiu um calor estrangeiro para a dele quando ela o tocou.

O ar sumiu de seus pulmões e voltaram a enchê-los rapidamente a tempo de que Athlin dissesse:

—Ótimo, não estarei sujeito a julgamentos maldosos da sua parte.

Corinna riu.

Riu verdadeiramente, ele pôde notar.

Algo se remexeu dentro dele, ansioso para escapar.

Algo bom.

E enquanto o Senhor Esmeralda guiava sem muita destreza Corinna pelo salão, ele ousou olhar em seus olhos várias vezes.

E cada vez que o fazia, ele sorria.

Neles não estavam sua perdição, longe disso.

Talvez ali —mesmo que nunca fosse possível dizer a ninguém —, ali, estava sua salvação.

Sua saída.

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