Give Me Love – Novatos

Capítulo 6 – Você não a ama – AGORA


O flat é pequeno. Há uma única porta que fica na parede frontal quarto, um cubículo. Há um frigobar, um fogão e uma pequena pia na parede esquerda. Na direita, a porta para o banheiro e a cama. No centro, uma mesinha de vidro com um vaso de flores quase mortas. Estou andando em direção ao elevador quando alguém bate a porta no fim do corredor. Por reflexo, procuro um lugar onde me esconder, mas não acho, então me encolho ao lado da parede, quase tentando entrar nela. É algo que praticamente nasceu comigo. Eu não suporto interferir na vida das pessoas. Ver o que eu não deveria ter visto. E aquele gesto grosseiro, completamente enraivecido da pessoa que bateu a porta, certamente não era qualquer coisa. Permito-me dar uma espiada e vejo que há um ruivo olhando para mim. A tentativa de me camuflar no papel de parede vermelho não deu certo. O ruivo tem uma auréola negra. Uma sirene toca dentro de mim e eu tenho vontade, novamente, de entrar na parede. Mas a minha parte insensata – aquela parte humana que Laura carregava com tanto orgulho – quer que eu dê um passo a frente.

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“Olá.” Diz ele, enquanto chama o elevador. “Desculpa.” Consigo dizer baixinho. Aproximo-me gradualmente. “Não há nada nessa cena com o que os vizinhos já não tenham acostumado-se.” Ele ri, eu esboço um sorriso. O elevador chega no nosso andar. Entramos, ambos indo para o térreo. Uma curiosidade é que não, eu não moro no décimo terceiro andar, mas sim no décimo quarto. Ouvi dizer que aqui há uma superstição absurda com o número treze e ele é simplesmente ignorado. Só pelo fato de eu ter vindo morar justo nesse andar, começo a acreditar que essa crendice está certa. Pelo curto tempo dentro daquele lugar claustrofóbico, tento ignorar a presença do despojado garoto de aparentes vinte e um anos. Tem várias tatuagens no braço. Imagino se algum dia vou ter a chance de perguntá-lo o que significa cada uma delas. O sorriso… bem, eu não sei o que de tão atraente existe nele. É só que cada gesto, cada ruído, cada pensamento relacionado a ele parece extremamente errado. Errado o suficiente pra parecer certo para mim.

Estou vagando na linha tênue entre a razão e a emoção quando ele diz, já fora do elevador. “Não vai sair?” E me dou conta de que já estamos no térreo a pelo menos trinta segundos. Anjos podem corar? Se puderem, devo estar inimaginavelmente vermelha. Disperso os trocentos pontos de interrogação de minha mente e deixo um ponto final vagar por ela. Tomo um caminho diferente que o do ruivo, mas logo me pego procurando por ele na multidão. Repreendo-me ao mesmo tempo que o sigo até um “coffee shop”. Tento lembrar a mim mesma de que o que estou fazendo é nada mais nada menos que observar os humanos e aprender a rotina deles antes de sair por aí atingindo-os com flechas. Mas, na verdade, o que eu estou fazendo é doentio. Seguindo a pessoa que eu devia evitar. Que diabos eu tenho na cabeça? Perdida entre reprimendas e consolos, esqueço de que estou tentando passar despercebida. Um sorriso completamente presunçoso – e errado, como tudo que ele faz – entorta os lábios do garoto. Ele me viu. Sinto uma vontade enorme de correr, mariposas estão endoidecidas voando na boca de meu estômago, outras tentando sair pela garganta. Mas há uma obrigação – questão de honra – e eu adentro a pequena lojinha.

Ela é toda branca, o cardápio estampado no vidro da porta em letras natalinas. Lembro-me de que estamos em dezembro. A auréola negra gira em torno da cabeça do ruivo e eu me lembro das palavras do Conselheiro. “Eles significam perigo.” Seria um ato masoquista dizer que faz-me sentir mais viva? Sento-me numa cadeira preta de plástico, o garoto passa um cardápio de papel para mim e eu fico agradecida. Algo para eu fingir que estou lendo, cobrir meu rosto e poder corar sem a vergonha de ser vista. “Você é do FBI?” “Añh? Não!” Respondo, achando graça. “O FBI está atrás de você?” Pergunto, irônica. Ironia é uma das figuras de linguagem que me instruíram a usar. Faz de mim um pouco mais humana. “Poderia estar.” E me mostra um adesivo redondo com um desenho de golfinho. “Tá brincando, né?” “É LSD. Mas ultimamente meu fornecedor tem ficado de palhaçada.” Nós rimos enquanto ele guarda aquilo de volta na carteira. Estão vendo? Tudo no ruivo é errado. Representa problema de todas as formas, tanto para mim, quanto para garotas normais. Tento imaginar o tipo de amor certo para ele.

“Com quem você tava brigando?” Pergunto, agora menos desconfortável ao falar com ele. Faço meu pedido. Existem tantas opções de café e todas parecem mais do mesmo. “Minha namorada.” Responde. “Sua. Namorada. Você. Tava. Brigando. Com. A. Sua. Namorada. Ok. Sua namorada?!” Fuck the logic, penso. “Parece surpresa.” Ele ergue as sobrancelhas, assim como eu estou fazendo. “Você não parece do tipo que tem namorada.” Digo, presunçosa, mas na verdade não é bem por isso que fiquei surpresa. “Ah!” Ele solta uma risada que soa completamente errada. Não sei fazer nada mais além de abrir um sorriso. “Você não a ama.” Digo, esquecendo-me completamente de que ele não faz parte do meu mundo. Ele se engasga com um gole de café. “Como disse?” “Você não a ama.” Repito. Quando foi que eu parei de ter controle sobre as palavras que saem da minha boca? “Como tem tanta certeza disso?”

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Não posso dizer “cara, olha pra cima, sente só essa droga de auréola negra na sua cabeça. Desculpa aí ruivo, mas pessoas como você não amam.” Simplesmente não faz sentido. Então falo a coisa mais estúpida que vem a minha mente. “Eu leio cartas de tarô.” Ele balança a cabeça negativamente, em divertimento. “É sério!” Consigo afirmar entre um gole de café e outro. “Eu soube que você não é normal desde o primeiro momento.” Diz. “Pode ter certeza.” Para ele, ser anormal é prever o futuro com tarô. Para mim, é ter asas e sair por aí brincando com destinos alheios. “Minha relação com ela é complicada.” Sua expressão torna-se quase triste, mas não chega a tanto. “Porque não a ama.” Concluo. Ele assente. Suas mãos estão agarradas à beirada da mesa, ele parece querer esmagá-la. A expressão extrovertida, a alma atormentada. Levo minhas mãos às suas com cuidado, esperando que ele não negue meu toque. Mas ele está indiferente aos meus dedos, percorrendo os seus e tentando segurá-los. Meu corpo todo fica estático. A palavra errado ressoa, um eco constante que, aos poucos, vira melodia para mim. Minhas mãos estão agarradas às suas.

E eu chego às únicas conclusões certas do dia: eu descumpri, com perfeição absoluta, a única regra que eu precisava seguir. E, pior, eu não seria correspondida.