As mãos de Engel doíam da série de socos, e sua cabeça latejava no ritmo dos gritos de seu treinador, que segurava o saco de areia. Ela sentia que a qualquer momento seus músculos iriam ceder, mas sendo o treino praticamente o único momento emocionante de seu dia, ela não estava disposta a parar antes da exaustão.

“Chega por hoje, garota.” Henry teve que segurar seu braço para que Engel percebesse que sua aula havia acabado.

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“Ah, desculpe treinador. Acho que me animei.” A loura sorriu, ainda sentindo seus músculos doloridos pelo esforço. Por conta do suor as luvas de proteção escorregaram com facilidade, mostrando seus dedos com os nós brancos pela força usada para manter os punhos fechados.

Henry lhe sorriu de volta, antes de se virar e seguir para o bebedouro. A adolescente o observou se afastar, por um momento muito consciente da gota de suor que descia pela lateral de seu rosto e se questionando se talvez, se o treinador conhecesse sua mãe, ele poderia se tornar seu pai – porque embora Engel nunca tenha tido um pai, ela imaginava que era daquele modo que ele deveria ser. Ela sacudiu a cabeça para espantar o pensamento e seguiu para o vestiário, pronta para tomar um banho e voltar para casa.

Londres estava com o mesmo céu cinzento que mantinha em todas as estações do ano, portanto era o vento frio que realmente dizia que estavam quase no inverno e, por mais que Engel gostasse da estação, era contra ter de sair parecendo um marshmallow pela quantidade de casacos necessários. A parte boa era que morando no Leeds, onde tudo estava perto de tudo, ela podia andar tranquilamente o caminho do ginásio até seu prédio em pouco mais de dez minutos e se livrar de todos os casacos.

No caminho a garota ainda parou em um restaurante de comida indiana para comprar o jantar e depois numa sorveteria, não necessariamente porque quisesse algo dali, mas com o clima gélido o lugar geralmente ficava vazio, e ela tinha certeza que havia alguém a seguindo desde o início do dia. A garota entrou e pediu um pote de sorvete de massa, aproveitando para olhar a rua enquanto a mocinha atrás do balcão ia pegar o pedido. Havia uma pessoa sentada num dos bancos, usando um sobretudo preto e touca cinza – a mesma pessoa que estava no campus da universidade, no restaurante onde ela almoçava e na cafeteria do ginásio.

Engel sabia que não poderia levar aquela pessoa até seu prédio. Assim que deixou a sorveteria, ela passou a entrar em ruas mais desertas, até se ver num beco sem saída usualmente usado como ponto de venda de drogas. Deixou as sacolas com comida no chão, o sorvete devia estar já meio pastoso e a comida provavelmente precisaria ser requentada, mas isso não passou por sua cabeça no momento em que se virou com a perna erguida pronta para chutar quem quer que estivesse a seguindo. A pessoa saltou para trás, deixando cabelo castanho escapar por entre a touca.

A loura não se abalou. Mesmo que os músculos ainda formigassem, ela voltou a investir contra o perseguidor, usando todo o leque de ataques que havia memorizado após anos de tae-kwon-do. Por isso, se viu surpresa quando uma rasteira a fez cair no chão, em seguida o peso de um corpo imobilizou suas pernas.

“Belos movimentos.” A voz feminina alcançou seus ouvidos.

Engel olhou para o rosto daquela que a havia imobilizado, ficando surpresa em perceber que, embora as roupas pesadas escondessem, era uma garota de cabelos castanhos que estava sobre si, com a pele bronzeada atípica de quem habitava a Inglaterra e mais força do que parecia ter.

“Relaxa, eu não vou te machucar.” A garota se levantou, estendendo a mão para Engel. “Engel Weiss, certo? É um prazer. Meu nome é Arinne Hayuren.”

“Se não vai me machucar, por que passou o dia me seguindo?” A loura aceitou a ajuda para se levantar, ainda olhando desconfiada para a outra. Ela tinha um sotaque estranho, do sul europeu talvez? “Você ‘tá na minha cola desde mais cedo.”

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“Desculpe se te assustou. Eu estava procurando o melhor momento de me aproximar. Se meu sotaque estiver tão forte em inglês, posso usar sua língua-mãe, mas não me garanto fluência em alemão.” Arinne arrumou sua touca na cabeça e espanou o sobretudo. “De qualquer modo, a rua não é o lugar ideal para discutirmos.”

“Como você sabe que eu sou alemã?”

“Ah, Engel. Eu sei muita coisa sobre você. Não adianta sua mãe te esconder com tanto afinco se você tem tantas redes sociais que facilitam invadir e xeretar sua vida inteira.”

A alemã a encarou surpresa, os olhos verdes sem conseguirem se desviar dos castanhos.

“De qualquer forma, tem um café que particularmente me agradou aqui perto, vamos para lá. Sua mãe já disse o porquê de vocês saírem da Alemanha?”

X

Quando o homem escondeu o rosto em seu pescoço, Marcelo tomou a liberdade de revirar os olhos, mas não podendo deixar de gemer. Ele poderia estar fazendo muitas coisas naquele momento, se aquela sessão não tivesse sido um acordo com um de seus principais clientes para dobrar o velho, que no momento estava ocupado demais para notar que o rapaz abaixo de si estava estupidamente entediado.

Eu achei que iria ser rápido o adolescente pensou, voltando a contorcer o rosto numa falsa expressão de prazer quando percebeu que o homem voltava a subir o rosto. Ele enroscou as pernas nos quadris do cliente, puxando-o mais para perto, tentando fazer com que pelo menos ele também aproveitasse alguma coisa naquela noite. Se o velhote não tivesse se disposto a pagar tanto, o italiano já teria ido embora daquele quarto no momento em que percebeu que seria uma noite perdida. Giovanni vai pagar por me convencer a trabalhar para esse cara.

Foram mais alguns minutos de falsas expressões e muita fantasia da parte do mais novo para que ambos se desfizessem. Sem uma palavra, o prostituto se levantou, remexendo as roupas, apenas para descobrir que a pressa inicial fizera seu zíper se romper.

“Essa foi uma das melhores noites que tive em muito tempo.” A voz veio de suas costas, e Marcelo considerou seriamente em sair daquele local nu para não ter que ouvir mais nada. “Quanto eu te devo?”

O jovem virou-se, sorrindo o suficiente para que os lábios se mexessem, mas não suficiente para apertar os olhos.

“A noite já foi paga por Giovanni.” Respondeu, muito ciente de sua nudez quando o homem desviou o olhar pelo seu corpo. “De qualquer forma, já deu minha hora”, concluiu subindo a roupa íntima pelas pernas e passando a procurar a camisa. Uma vez vestido, virou-se uma última vez para o homem com quem havia se deitado. “Espero que eu tenha feito um bom trabalho em te convencer a fechar seus negócios com Giovanni.”

Ele então seguiu pela noite italiana, com as pernas descobertas e o vento frio da noite alcançando a região cujo zíper protegeria, se ainda estivesse inteiro. Sabia que um pouco de manha, e talvez um bom trabalho oral, fariam Giovanni lhe dar dinheiro suficiente para comprar uma fábrica inteira, mas sua mente fazia questão de lembrar que aquilo o faria exclusivo do mafioso, e em seu mundo aquilo significava depender dele. Não, obrigado.

O adolescente acendeu um cigarro e tirou um pouco da franja preta que caía nos olhos. Laurel e Alex conversavam na frente do prédio e acenaram quando ele passou, voltando a discutir alguma coisa qualquer. Marcelo pegou as coisas que estavam em seu escaninho e acendeu outro cigarro enquanto subia o primeiro lance de escadas; ocupando os cinco lances seguintes para analizar o que lhe interessava e o que não entre contas, cartas românticas de mafiosos tarados por adolescentes com idade para serem seus netos e o resto todo que havia se acumulado nos quatro dias em que não havia pisado em seu próprio bairro.

Entre as coisas que lhe interessaram haviam duas cartas cujos remetentes eram Giovanni, um envelope mandado por um hitman com quem vinha se envolvendo nos últimos dias e um que vinha apenas com seu nome; mas cujo símbolo no lacre ele reconhecia de alguns trabalhos anteriores.

A cera foi cortada com a Borboleta que ele trazia no coturno, e esfarelou um pouco pela lâmina meio cega. As demais correspondências acabaram no chão perto da entrada do apartamento, junto com os sapatos, e a recém aberta carta foi deixada no balcão que dividia a cozinha da sala enquanto preparava café. Assim que se serviu de uma xícara fumegante, Marcelo se sentou no sofá velho e colocou os óculos de leitura para ler o que seria tão importante para uma organização como a Varia se dar ao trabalho de mandar correspondência para alguém como ele. Quando terminou de ler o conteúdo, não podia-se dizer exatamente surpreso – já havia trabalhado como freelancer para eles antes, e tinha certeza de que era apenas para que o avaliassem.

Deixou a folha de lado, terminando o café antes de se levantar e estralar alguns ossos. Ele precisava de um banho, e tinha certeza absoluta que sua resposta podia esperar pelo menos pelo amanhecer, assim como a arrumação das malas.