Frostnatter

Capítulo 2: Kaikki Taas


Sabia que provavelmente iria me arrepender, e sabia que não deveria me intrometer, mas não consegui evitar. Estava nevando, estava frio. E ela ainda estava ali, mas agora sem se mexer. Teria dormido? Teria morrido de frio ali?

Tinha um corpo tão pequeno, uma pele tão clara que mais parecia seda, tão igualmente sensível, quebradiça, prestes a rasgar. Não sei quanto tempo permaneci ali, o fitando do outro lado da rua, sem saber ao certo o que queria fazer, sem saber se deveria fazer o que queria.

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Pessoas e carros passavam freneticamente, embora fosse noite de natal, quando todos já deviam estar em suas respectivas casas, comemorando com seus respectivos parentes. Ou como eu, apenas deveriam estar sentadas em suas poltronas, olhando na janela a neve cair vagarosamente do lado de fora.

Atravessei a rua e parei em frente à criança. Ela não se mexia. E, mais uma vez, me senti responsável.”

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Era o intervalo agora, e todos já haviam saído da sala. Me levantei, bocejando, e coloquei a cabeça do lado de fora apenas para checar o corredor. Não estava a fim de encontrar Gilbert, Francis e Antonio ávidos por terem meu dinheiro, sendo que eu nem sequer o tinha.

Saí da sala e caminhei rapidamente em direção aos bebedouros que ficavam no refeitório, desviando dos demais alunos. Sabia que mesmo que pedisse permissão para o professor para ir beber água no meio da aula, a probabilidade de eu encontrar o The Bad Friends Trio em horário de aula era a mesma que encontrar no intervalo.

Era óbvio o porquê de todos eles terem repetidos três vezes seguidas o terceiro ano, já que não assistiam nenhuma das aulas.

Andei mais um pouco até que cheguei no refeitório, lotado, e do outro lado do grande salão estavam os bebedouros. Desviei dos alunos sentindo o cheiro de comida que fez minha barriga roncar, mas como não tinha dinheiro algum, não poderia comer.

-Tino! Tino!-Ouvi alguém chamar e me virei de repente, sorrindo bastante ao ver um dois amigos meus se aproximarem.-Soubemos que saiu de sala novamente ontem.

-Ah, sim.-Eu respondi, sorrindo desajeitadamente. Me perguntei como eles já sabiam daquilo, mas esqueci o assunto.-E você, Lukas, fez algo ruim ontem também?

-Não faço nada de ruim.-Lukas respondeu. Era norueguês, tinha olhos azuis e cabelos loiros, e geralmente falava muito pouco. Ao seu lado estava Stefán, islandês, calado como na maioria das vezes. Ambos eram irmãos e um dos poucos que falavam comigo desde que eu chegara no colégio.

-Okay.-Eu ri, vendo Lukas cruzar os braços.-Vim só beber água e vou voltar para a sala. Não quero que Gilbert me encontre.

-Pois se apresse.-Ele disse, com uma expressão séria no rosto.

Me afastei alguns metros e bebi alguns goles d'água no bebedor, e quando me ergui novamente, de longe pude ver o cabelo grisalho do Gilbert atravessar o salão. Lukas se aproximou de mim e me cutucou, dizendo:

-É melhor você fugir enquanto pode.

-Bem, vejo vocês mais tarde.-Eu disse, já me virando para ir embora, mas assim que o The Bad Friends Trio adentrou o lugar, quase todos os alunos se levantaram para partir igualmente. Ninguém normal gostaria de ter seu dinheiro tomado, e os poucos que ficaram sentados ou já tinham respeito o bastante para não serem ameaçados ou simplesmente não batiam bem da cabeça.

Eu juro que tentei fugir, com todos os meus instintos de sobrevivência fazendo um alarde enorme na minha cabeça, como se eu já não soubesse que deveria estar o mais longe possível dali, mas aquele tanto de alunos dificultou bastante minha fuga, e não demorou muito para que eu escutasse aquela inconfundível voz chamando:

-Hey, Tino!-Gilbert gritou enquanto grande parte dos alunos deixavam o refeitório.

Tentei sair de perto, mas a última coisa que vi antes de sentir a gola da minha camisa ser puxada por trás foi o olhar, talvez preocupado, do Lukas e do Stefán, este último o arrastando para ir embora dali.

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Eu não os culpava, na verdade, ficava feliz que eles não se metessem naquela confusão por minha causa, mas talvez... Talvez quisesse ao menos que eles tentassem me “salvar”. De qualquer forma, não tive tempo o bastante para pensar, porque logo estava sendo jogado de costas na parede, com Gilbert tendo as mãos em cada lado meu, impedindo-me de fugir.

-Trouxe o dinheiro hoje, moleque?-Ele perguntou, sorrindo maliciosamente como fazia.

-N-não...-Eu respondi, olhando para o chão. Oh, céus, por que sempre eu?

-Está mentindo.-Ele disse.

-O moleque não tá mentindo, Gil, deixa ele em paz.-Antonio disse, cruzando os braços.-E também, tem outros moleques por aí, mais ricos que ele. Estamos só perdendo tempo.

-Mas ele continua tendo um rosto muito fofo.-Francis disse, sorrindo mais maliciosamente que Gilbert.

O líder do The Bad Friends Trio se virou para olhar seu amigo de cabelos loiros, com um sotaque levemente francês, de onde ele viera quando criança. Veja bem, não que eu soubesse muita coisa daquele grupo, mas todo mundo sabia pelo menos o básico da vida de cada um, afinal, eles faziam questão de expor aquilo.

-Você quer brincar com ele, seu pervertido?-Gilbert perguntou ao amigo.

-Se você deixar...-Francis disse, passando a língua nos lábios.

Gilbert se afastou e sorriu mais, dando-me um soco no estômago e outro no rosto rapidamente, fazendo-me cair de joelhos no chão, como sempre fazia. Pude ouvir o toque soar, avisando que todos os alunos já deveriam estar em suas salas.

-Moleque, se você não trouxer dinheiro amanhã, vai chegar em casa sem um dos braços. Francis, pode brincar com ele se quiser. Estou indo embora.-Gilbert disse, se afastando, sendo seguido por Antonio, que olhou para mim uma última vez e saiu.

Francis se agaixou na minha frente e me segurou pelo queixo. Meu lábio inferior estava cortado e um filete de sangue descia pelo meu pescoço e manchava minha camisa branca da farda, e meu estômago obviamente doía.

-Se o Gil não tivesse batido em você, ainda teria um rosto muito fofo... Mas, bem, não se pode ter tudo que quer na vida.-Ele disse, se aproximando mais e sussurrando em meu ouvido.-Do que quer brincar, moleque?

Fechei os olhos com medo. Muito bem, eu preferia ser espancado a sofrer aquele tipo de agressão... Quis fugir, mas estava me tremendo de medo, e respirava rapidamente, o coração quase parando. E acho que Francis achou que isso fosse sinal verde, porque então ele beijou meu rosto e deixou aquela língua descer até meu queixo...

-Ei.-Disse uma voz, fazendo Francis olhar ao redor e ver uma silhueta alta na porta do refeitório, lugar onde antes estava apenas eu e ele ali.-Para a sala. Agora.

Francis se levantou e saiu de perto de mim, e sem comentar mais nada, deixou um recinto com um rosto beirando entre a raiva e a indiferença. Eu permaneci sentado, me tremendo, sentindo os olhos umedecerem enquanto tentava me erguer.

A silhueta que me salvara se aproximou até ficar há alguns passos de distância, sem comentar nada. Consegui ficar de pé, embora ainda tremesse um pouco, me apoiando na parede. Então ergui o olhar e vi que era o mesmo homem que encontrara na recepção horas antes.

Cabelos loiros, alto, óculos, olhos azuis, me fitando profundamente como fizera mais cedo. Em seu rosto exibia uma feição neutra, embora pesasse mais para o sério do que para o neutro. Engoli em seco e sorri, corando por ter sido encontrado justamente nas mãos do Francis.

-Ah, bem... Desculpe.-Eu disse, fitando o chão.-Eu vou, ahm... Voltar para minha sala agora, desculpe.

-Você está bem?-Ele perguntou, sério.

-S-sim, vou ficar bem.-Eu disse, caminhando para longe. Ele não falou mais nada nem tentou me impedir, nem mesmo quando deixei o refeitório.

Fui para a aula onde eu deveria estar e pedi desculpas por chegar atrasado, e voltei a me sentar numa das últimas cadeiras, e embora estivesse com sono, sempre com sono, ainda estava assustado demais para adormecer.

As aulas passaram rápido e eu participei o máximo que pude, respondendo sempre as perguntas que os professores faziam. Me perguntei se Lukas e Stefán estariam bem, pois não tinha como saber ao certo, uma vez que eles eram um ano mais velhos que eu.

Por alguns momentos, jogaram bolinhas de papel em mim, e quando eu abria o que tinha dentro, eram apenas palavrões, então depois da vigésima terceira, deixei de abri-las. Acho que toda aquela “implicância” se devia ao fato que eu entrara no meio do ano, e como ainda era agosto, continuava sendo a “novidade”.

Rezei para que quando chegasse setembro ou novembro, Gilbert já perdesse o interesse em mim.

Suspirei e quando chegou a última aula do dia, relaxei um pouco mais. Era aula de matemática, então veríamos nosso novo professor, e não iríamos embora mais cedo, para a tristeza de vários alunos.

A porta se abriu de repente e a mesma silhueta alta adentrou a sala, e eu reconheci o homem que me salvara. Ah, claro, era lógico, ele só podia ser nosso novo professor, faxineiro era que ele não poderia ser... Sem preconceitos, mas ele simplesmente não tinha cara de zelador ou faxineiro.

Sentei-me melhor na cadeira enquanto o via pôr sua maleta sobre a escrivaninha. Vestia uma camisa branca de mangas longas e uma calça escura, sapatos de couro, bastante formal. Tirara o sobretudo azul-escuro e o colocara ao lado da maleta, enquanto tirava um pincel de um dos bolsos e começava a anotar coisas no quadro, como seu nome e a data.

“Berwald Oxenstierna”

-Serei seu professor de matemática por alguns meses até que seu outro professor tenha condições de ensinar. A matemática que digo se aplica à Álgebra, Geometria, Trigonometria e a todas as outras áreas da matemática.-Ele disse, se virando para nós. Tinha uma voz grave, imponente, embora assustasse.

Um braço se ergueu e uma das alunas mais próximas dele fez uma pergunta. Eu não sabia quem era, mas pude ouvir perfeitamente, mesmo sentando lá atrás:

-O que aconteceu com o Sr. Milton?

-Sou pago para ensinar, e não fofocar. Abram seus livros na página 42 agora.-Ele disse, se virando para a lousa e voltando a escrever. Por um momento, achei que tivesse olhado para a mim, mas abri meu livro antes que ele realmente olhasse para mim e brigasse comigo.

A aula continuou por vários e longos minutos até que o toque soou e os demais alunos se ergueram, pegaram suas coisas e saíram da sala. Eu estava fazendo o mesmo enquanto via, pelo canto do olho, meu novo professor vestir novamente seu sobretudo.

E foi bem aí que algo veio a minha mente, algo distante, disforme, mas que se eu lapidasse da forma certa, formaria uma ideia ou uma iluminação, algo brilhante, digno de gênios ou então de loucos, o que fosse.

Mas eu não sabia o que era, e da mesmo forma como chegou, foi embora, e fiquei no escuro novamente, e devo ter feito uma cara muito estranha, porque quando voltei a mim, quando voltei ao mundo real e saí da minha cabeça, ele estava me fitando, o professor, da mesma forma profunda.

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Estava parado bem na porta da sala, com a maleta numa das mãos e os olhos duros por detrás dos óculos. Parecia esperar algo. Eu sorri, vendo que ele estava esperando apenas a mim para fechar a sala, então eu peguei logo minhas coisas e fui até ele, passando pela porta, ainda sorrindo tortamente como alguém que pede desculpas mudas, um sorriso amarelo.

Ele fechou a porta e saiu andando até a entrada do colégio, vez por outra me fitando, como se achasse estranho fato de eu ainda estar ali, e não estar já do lado de fora do colégio, indo para casa.

Eu não queria nada de mais, mas acho que deveria agradecer por ele ter me salvado das garras nojentas do Francis (embora fosse melhor ainda se ele tivesse chegado antes do Gilbert me bater). E, olhando para o chão, eu comecei:

-Er... Bem, obrigado por ter... Me salvado mais cedo, no refeitório.

Ele não disse nada, apenas me fitou por uns instantes e então voltou a olhar para frente, visto que ainda caminhávamos em direção à porta que levava até a rua e também à que levava ao estacionamento.

-Mas foi apenas um acidente, nada de mais...-Eu disse, me justificando. Achei que por ser o primeiro dia dele, ele pensasse que eu estive ali com o Francis por querer, e não porque fora obrigado, e não queria uma impressão tão má assim de primeira.

Ele continuou a ficar calado, dessa vez sem olhar para mim. Já tínhamos chegado ao estacionamento e ele caminhava até seu Honda Civic com passos firmas, enquanto eu ia até a rua, mas antes de ele se afastar totalmente, ergui um dos meus braços e, ainda sorrindo, exclamei:

-Até amanhã!

Então ele entrou no carro e saiu rapidamente, desaparecendo da minha vista. Abaixei meu braço e comecei a caminhar em direção à minha casa, assoprando as mãos porque havia começado a esfriar.

Por alguma razão, eu não gostava muito da neve, mais especificamente do frio que ela trazia. Mas junto com a neve, tinha o natal, e eu o adorava, e acredite, acreditava em papai noel, porque aconteceu algo tão inacreditável na minha infância que só ele poderia ter feito aquilo.

O inverno estava chegando, e ele traria o frio, mas pelo menos o natal também viria, e embora eu tivesse que fatalmente passar o natal com meus pais, ficava feliz, gostava daquela época do ano.

E fora naquela mesma época que eu, de alguma forma, amanhecera no orfanato onde um ano depois, meus pais me adotaram. E também foi quando comecei a ter os mesmo sonhos, com a mesma silhueta.

Mas ainda estávamos em agosto, e o frio que eu sentia era apenas o frio da região. Ficaria bem pior quando o inverno realmente chegasse.

Esfreguei minhas mãos e caminhei mais rapidamente até minha casa, sentindo o olhar dos vizinhos sobre mim quando abri a porta e entrei.

A sala estava vazia, como de praxe, mas as luzes estavam acesas, e havia barulhos vindos da cozinha. Murmurei um pequeno “cheguei”, mas dessa vez subi as escadas antes que minha mãe viesse me “recepcionar”. Deixei minha mochila sobre a escrivaninha, me despi e dobrei a farda, indo tomar um banho depois.

Mais tarde meu pai chegou, quando eu o já esperava na sala, sentado, e ainda mais tarde ele me chamou para comer, onde eles dois conversavam banalidades. Vez por outra minha mãe chamava por meu irmão, como se ele estivesse no andar de cima fazendo alguma coisa, mas então meu pai dizia que ele tinha partido e ela ficava com um olhar perdido no rosto, então voltavam à conversar normalmente.

Quando terminaram de comer, se levantaram e subiram as escadas enquanto eu lavava a louça em silêncio. Me perguntei se tudo estaria bem se meu irmão ainda estivesse vivo, e pela trocentésima vez desde o acidente, me perguntei se era minha culpa.

Balancei a cabeça. Era lógico que não, claro que não, fora apenas um acidente causado pelo destino, nada que pudesse ser mudado. Então, mesmo assim, por que eu ainda pensava no assunto? Acho que, bem no fundo, eu me culpava, não pelo fato de ser o culpado, mas porque nesse tipo de coisa, alguém sempre precisa levar a culpa, para o bem dos outros.

E se era para o bem dos meus pais, acho que eu poderia me culpar.

Quando terminei de lavar a louça, voltei para o meu quarto e vesti meu pijama, me preparando para dormir, vendo a luz da lua atravessar a janela.

E adormeci, voltando a ter os mesmo sonhos com a mesma silhueta, a mesma neve, o mesmo sangue, as mesmas coisas. Sempre as mesmas coisas, as mesmas perguntas, sem respostas.

Aquela noite estava esfriando, avisando a chegada do inverno embora ainda longínquo. Puxei os cobertores para mais perto e me encolhi no colchão, tentando dormir. Amanhã começaria tudo novamente...