Permaneci no mesmo lugar enquanto sentia pensamentos invadirem minha mente. Involuntariamente toco meus lábios, sentindo-os inchados devido ao acontecimento posterior. Jogo minha cabeça para trás, batendo-a suavemente contra a parede atrás do sofá.

Tudo aquilo não podia ser apenas coincidência – era impossível ser. Nossos sonhos eram idênticos, sem diferença alguma. Compartilhávamos das mesmas lembranças, e os coadjuvantes realmente existiam. Mas se eu nunca havia visto nenhum membro da família Rajaram antes, como podia ter sonhado com eles?

Até então eu não sabia, mas jamais descobriria a resposta para isso.

Levanto-me, lembrando que ainda estava no ambiente de trabalho e que haviam coisas a serem feitas. Toco em meus lábios novamente antes de sair da tenda e os sinto formigar. Sorrio. Antes de fazer qualquer coisa, dirijo-me para visitar Ren – o tigre – e encontro o Sr. Davis aplicando-lhe uma injeção.

– Oh, olá, Kelsey – ele disse quando me viu. Cumprimentei-o e olhei para Ren, que estava com uma aparência muito melhor do que a de alguns dias antes; até mesmo o azul de seus olhos parecia estar recuperando o brilho que se esvaíra. Fiz um carinho rápido em sua pata e o Sr. Davis me olhou, curioso.

– O que ele tem exatamente? – perguntei.

– Uma infecção interna. Foi tolice eu não ter percebido nada antes. Se você e aquele rapaz, Dhiren, não houvessem notado, temo que ele estaria pior agora. Muito pior.

Estremeci.

– Sim, entendo. Me lembro do olhar dele sobre Ren quando ele o viu.

Sr. Davis assentiu e ficou quieto.

Saí do lugar depois de um tempo e foi ajudar Matt a montar as barracas para o espetáculo do dia, que seria às quatro da tarde. Enchi alguns balões e os pendurei com alguns fios sobre o cilindro de ar e colei adesivos e cartazes em barracas de alimentos para atrair as crianças.

Não vi Dhiren neste período – o que era estranho, sendo que ele viria a se tornar o proprietário do circo em pouco tempo -, então julguei que ele deveria estar resolvendo algo com Maurizio. Tentei esquecê-lo, porém o ocorrido de algumas horas antes ainda estava me impossibilitando de fazê-lo.

Assim que acabamos de arrumar tudo, um ônibus lotado de crianças estacionou na parte frontal do circo e eu e Cathleen nos apressamos em ir para a bilheteria. Por sorte os ingressos foram comprados todos de uma vez, o que nos deu mais tempo para vender os outros bilhetes. Ren não participou da apresentação, porém sua atração foi substituída por a de um cara que pulava entre várias plataformas e quando chegava na mais alta, se jogava e caía sobre uma espécie de rede feita por fios transparentes. Talvez a técnica de “errar o chão¹” não funcione com todos. A plateia ficou abismada.

Durante o intervalo eu estava ajeitando alguns cartazes quando Dhiren surgiu atrás de mim.

– Podemos conversar agora?

– Agora? – indaguei enquanto grudava um pôster em uma coluna.

– Eu disse que conversaríamos mais tarde, então por que não agora? – ele levantou uma sobrancelha.

Eu nunca havia ouvido um diálogo com a palavra “agora” tão presente.

– Talvez porque eu esteja trabalhando – observei, irônica. Dhiren balançou a cabeça em concordância.

– Claro – disse ele. – Então, às oito da noite você poderia me encontrar no salão principal?

– Tudo bem.

***

Às sete e trinta da noite eu já estava à beira de um ataque de histeria – o que não era algo normal para mim. Tentava colocar em meu cérebro que estava apenas indo falar com Dhiren, nada de mais. Então por que eu estou tão nervosa?, pensei.

Eu estava em frente à tenda de Cathleen, sentada sobre um trecho com uma grama curta. A noite ainda não tinha chegado totalmente, mas já havia algumas estrelas no céu. Observo-as e procuro constelações enquanto aguardo o relógio marcar o horário combinado – o que pareceu uma eternidade. Finalmente me levanto e dirijo-me à tenda principal e levo um tempo para identificar Dhiren, que estava encostado em uma mesinha. Me aproximo dele.

Ele me olhou por um momento e então sorriu.

– Olá, Kells.

– Olá, Dhiren.

Ele estreitou os olhos e balançou a cabeça.

– Me chame Ren, por favor. – ele pediu.

– Você sabe que isso irá me confundir.

Dhiren ponderou a observação por um momento.

– O.k. – ele disse, por fim. – Como quiser.

Um silêncio constrangedor se seguiu e eu soube que era melhor interrompê-lo.

– Então, o que queria falar comigo?

Ele levantou as sobrancelhas.

– Acho que é óbvio, não? Precisamos tentar descobrir o porquê dos sonhos. Pesquisas, livros e tudo mais.

– Tenho certeza de que você não quer fazer pesquisa alguma – soltei um sorrisinho.

Dhiren me olhou fixamente e franziu a testa, se levantando. Ele se aproximou de mim, puxando a fita da minha trança e a desfazendo em seguida.

– Você realmente me conhece muito bem – ele murmurou de encontro à minha orelha.

Prendi a respiração. Seu rosto se abaixou e ele roçou levemente os lábios nos meus, sem passar disso. Em seguida pegou minhas mãos e me levou até uma cadeira e sentou-se na minha frente. Eu sabia que meu rosto estava corado então tentei evitar o contato visual ao máximo.

– Sabe, Kelsey – ele começou. Olhei para ele. -, mudei de ideia em relação à compra do circo.

Franzi as sobrancelhas.

– Como assim?

Ele suspirou.

– Vou apenas comprar o tigre. Creio que ele precisará de cuidados especializados futuramente e pretendo levá-lo para a Índia, já que irei retornar para lá em dois meses. Ah, e você vai comigo.

Arregalei os olhos, espantada.

– Não me lembro de ter concordado com isso – brinquei.

– Não precisa ir se não quiser.

Mordi o lábio, pensativa.

– Precisarei pensar sobre isso.

– Sem problemas. Porém avise-me o quanto antes para eu poder começar a preparar os documentos necessários.

– Claro.

Eu não sabia se deveria aceitar. Havia conhecido, conhecido mesmo Dhiren há apenas alguns dias, e eu não sabia se ele era aquela pessoa que eu conhecera no sonho... Talvez Dhiren pudesse não ser tão confiável assim ou era justamente a pessoa que eu me apaixonara mentalmente. Mas quando ele se aproximou para me beijar pela última vez naquela noite, eu soube que ele ainda era o homem que eu amava.


¹essa é para quem leu O Guia do Mochileiro das Galáxias. ;)