Foclore Oculto.

Capítulo 14


Ao chegar em casa Núbia somente abriu a porta e se deparou com Ângela varrendo a casa, o que inicialmente lhe deu uma sensação de Déjà vu logo fez brotar em seu rosto um sorriso.

— Olá senhorita _ disse Ângela com um sorrisinho também.

Núbia fechou a porta e foi até ela ainda pasma.

— Ângela! O que faz aqui?

— Fazendo meu trabalho, senhor Edgar me aceitou de volta no casarão, aceitou sim.

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— Que bom, Ângela! Muito bom.

Ângela aos poucos contou toda a história sobre os moradores da vila a perseguirem e o motivo de tal, o que fez Núbia sentir-se culpada e com certa raiva de Edgar. Assim ela explicou a Ângela o motivo pelo qual Edgar havia matado André, mas Ângela não falou nem contra nem a favor, somente assentiu com a cabeça de leve e voltou a varrer.

Núbia sabia que Ângela não era de papo então nem puxou assunto, a presença dela na casa já era bom o suficiente.

Núbia decidiu então subir as escadas, rumo a seu quarto, mas ao pisar no corredor ouviu a voz de Edgar.

— Guria.

Núbia revirou os olhos, mas seguiu a voz até o escritório onde Edgar sentado á frente da escrivaninha lia um livro de couro negro.

— Demorou um bocado _ disse ele sem tirar os olhos do livro.

Núbia fitou o cajado encostado na mesa, lembrando-se do que Cissa dissera e tentando pensar em uma forma de conseguir o capuz, sendo que Edgar nunca ficava longe daquele objeto.

— Acho que o senhor está bravo comigo, não é? Por eu ter saído sem avisar _ disse Núbia fingindo-se de neta arrependida.

Edgar baixou o livro e a olhou com indiferença.

— Nem bravo nem surpreso, tu é muito previsível. Seja como for, você voltou, como eu também supus e agora podemos ter a conversa que não foi possível realizar ontem.

Núbia bufou, mas sentou-se de frente a ele.

— É, com um monte de gente tentando nos matar ficaria realmente difícil _ ironizou ela.

Edgar encostou-se na cadeira com cara feia.

— Nem me diga, ainda tenho que dar um jeito de resolver esse problema...

— Até Ângela já foi afetada por isso _ lembrou Núbia.

— Ela está segura agora, todos estamos se permanecemos no casarão, isso vale para tu e seus passeios matinais também, guria.

— Eu vou tomar cuidado _ disse Núbia impaciente _. E ai? Vai me ensinar algum feitiço ou não?

Edgar levantou uma sobrancelha.

— Feitiço _ ele riu cínico _ Bah, é cedo para isso, lembra-se do que eu disse? A feitiçaria vem de dentro, depende mais do que palavras e velas, depende de você.

— E o que tem eu? _ disse Núbia com expressão confusa.

— Você não consegue se concentrar, sequer tem paciência para isso. Diga-me, já meditou alguma vez?

Núbia negou com a cabeça e Edgar sorriu de leve e se levantou.

— Ótimo, então é isso que fará hoje.

Ele foi até o pequeno armário de madeira negra que ficava do lado contrário á entrada e ao lado da estante de livros.

— Sério, meditar? Edgar, achei que ia levitar algo, sei lá _ reclamou Núbia.

Edgar riu.

— Tu assististe muito filmes, suponho. Mas acredite, as coisas não são tão fáceis assim, sequer rápidas. Se espera transformar alguém em sapo até semana que vem, está muito equivocada.

Edgar pegou uma caixinha negra e colocou a frente de Núbia.

— Eu, por exemplo, não sei fazer transformações até hoje _ prosseguiu Edgar.

_ Mas você faz outras coisas legais, tipo aquela fumaça negra de tele transporte _ disse Núbia gesticulando com a mão.

— E levou décadas para que eu aprendesse a fazer isso, e ainda necessito da ajuda de um... Talismã.

O capuz _ pensou Núbia.

— O cajado? _ perguntou Núbia se fazendo de boba, imaginando que assim quem sabe Edgar lhe mostrasse o capuz, ou ao menos como o escondia.

— Nada que seja de seu interesse _ responde Edgar dando batidinhas na caixa _. Agora vamos ao que interessa. Meditação é a descoberta de si mesmo, é o mais profundo estudo da sua própria alma.

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— Você parece um hippie falando assim _ comentou Núbia.

— Preste atenção _ repreendeu Edgar depois respirou fundo e prosseguiu: _ Tu precisas se conhecer antes de querer conhecer qualquer segredo oculto, antes de conhecer o mundo a tua volta. Quando obter paciência e esclarecimento de si própria, começará a aprender feitiços, antes disso, tu vai meditar muito e o que está nessa caixa vai te ajudar.

Núbia abriu a caixa negra com cuidado, imaginando que poderia haver ali pedras mágicas ou qualquer coisa assim, mas se deparou somente com caixinhas de papelão cheia de incensos e algumas pedras coloridas, mas sem nem um brilho estranho.

Núbia pegou uma das caixinhas e leu: “Incenso aroma de maracujá, para acalmar a alma”.

— Sério?_ disse ela fazendo cara feia. _ Essa é sua grande aula de bruxaria Edgar?

— Pare de reclamar tchê, já disse, tu precisa ir com calma. Esses incensos são bons para relaxar.

— Imagino _ resmungou ela.

Seja como for, Edgar e Núbia foram então até o quarto da garota, pois segundo Edgar, ela precisava ficar em um local que sentisse-se à-vontade.

Edgar ficou de pé na porta dando instruções enquanto Núbia ajoelhada no chão do quarto, colocava as pedras, que segundo Edgar, representavam os cinco elementos, em seus respectivos lugares, formando um circulo. Depois ela escolheu os incensos que mais gostou e também com instruções de Edgar os posicionou.

— Parece bom _ disse Núbia já de pé olhando o circulo desenhado com giz, as cincos pedras acima de tal representando fogo, água, ar, terra e alma, e incensos em volta.

— Agora sente-se dentro do circulo _ disse Edgar e Núbia mesmo sem ânimo algum o obedeceu.

— Ótimo _ prosseguiu Edgar _ agora relaxa e fique calada.

— Eu não devia fazer algo como “aummmmm” _ brincou Núbia, mas Edgar não pareceu ver graça alguma.

— Calada _ ordenou ele e assim fechou a porta do quarto a deixando sozinha.

Núbia respirou fundo e tentou relaxar, o que deu certo no começo, os incensos e as pedras realmente ajudavam, mas logo ela já sentia-se tediada, ela começou mexer o dedos, e mexer as pernas cruzadas com ansiedade. Por dentro xingava Edgar e sua aula ridícula, preferia mil vezes estar lutando capoeira com Cissa naquele momento, apesar que ele também lhe dava aulas fáceis.

Ela bufou, resmungou, até Edgar gritar da sala:

— Calada Núbia!

— Audição boa que esse velho tem _ murmurou Núbia para si mesma.

...

Edgar revirou os olhos ao ouvir o murmuro de Núbia, decidiu assim parar de prestar atenção nela e foi até a cozinha.

Lá encontrou Ângela fazendo o almoço e por alguns segundos sentiu vontade de tirá-la de lá para fazer o almoço ele mesmo, mas logo notou que aquilo seria muito idiota então somente encostou-se na porta e batendo o cajado no chão chamou a atenção da mulher.

— Senhor Edgar _ disse ela contraindo o ombro. _ Quer pedir algo?

— Não... Eu confio em seus cardápios _ disse ele o que fez Ângela abrir um sorrisinho _ Porém , preciso lhe fazer umas perguntas.

— Claro _ disse ela, tentando sem sucesso, esconder o nervosismo.

— O que exatamente está acontecendo na vila e o que Jorge anda declarando?

— Jorge está usando o medo que a vila sempre teve do senhor à favor dele, está sim. Mas tem alguns moradores, não são poucos, que protestam sobre Jorge ter te protegido esse tempo todo, eles dizem que Jorge nunca ligou para o perigo que o senhor poderia dar a vila em troca de dinheiro, e que só quer derruba-lo agora porque enfim o afetou, é isso que dizem. Ele se diz enganado e tem quem fique do lado dele. Jorge disse que vai achar sua fraqueza e que só então vão atacar novamente. Foi o que ele disse.

Edgar franziu os olhos e passou a mão pelo próprio queixo daquela forma charmosa.

— Essa discussão pode gerar muita morte _ observou Edgar.

— Sim, horrível não é?

— Horrível, Ângela? Bah, isso é ótimo!

— Ah sim, ótimo claro _ disse Ângela com medo de perder o emprego.

Edgar sorriu maldoso e começou a caminhar pela cozinha, pensativo.

— Antes que Jorge consiga achar qualquer fraqueza minha, eu irei reverter essa situação. Tudo que disseram sobre Jorge é verdade, ele tem cara de bobo, mas é um mal caráter, fácil de ser comprado e se todos descobrirem os escândalos que sei sobre Jorge, ficarão com tanta raiva do prefeito que me esquecerão. E ainda por cima, quando as coisas estiverem muito criticas na vila, posso entrar como herói. Na realidade sempre sustentei essa cidade, e apesar de tudo, não fui tão mal assim com eles, ninguém tem provas contra mim, mas eu tenho contra Jorge.

Edgar fitou Ângela com aquele brilho no olhar de quando tinha uma maligna ideia.

Ângela tentou sorrir, tinha medo de Edgar, mas também tinha que admitir que ele era um gênio.

— Isso... Pode funcionar senhor Edgar, pode sim.

Edgar assentiu.

— Vai funcionar. Bah tchê. Jorge está em minhas mãos.

— Isso vai acabar com a vida do prefeito _ observou Ângela com um pouco de pena.

— Mas é assim que se faz politica, Ângela, culpando os outros para abafar seus próprios erros. Essa tática sempre funcionou no Brasil inteiro, por que não funcionaria aqui?

— É, funciona sim _ disse Ângela tentando abrir um sorrisinho.

Edgar assentiu com a cabeça e seu sorrido de canto.

— Faça um belo almoço para comemorarmos essa ideia genial, Ângela. E ah, faça alguma sobremesa para Núbia, algo que ela goste.

Ângela assentiu.

— Sim senhor, eu sei tudo que senhorita Núbia gosta, sei sim.

— Ótimo _ disse Edgar saindo da cozinha ainda pensativo e com um sorriso maldoso. Estava fazendo a lista de pecados de Jorge em sua mente e definitivamente, o prefeito de santo não tinha nada.

...

Núbia tentou voltar a se concentrar, mas seu cérebro explodia em pensamentos.

Todos lhes diziam para ter calma e paciência, mas ela não tinha nem um nem outro. Nas aulas de Cissa ela queria era cair na porrada, e nas aulas de Edgar ela queria fazer uma tempestade, será que era pedir muito?

Logo Núbia notou que definitivamente não era paciente e se perguntou se realmente era bom que as coisas acontecessem de forma repentina, se conseguíssemos tudo fácil, se os começos chegassem direto ao fim. Ela então lembrou-se de sua tia, tendo a morte na porta, mas enrolando para não atendê-la. ‘E foi por mim, sempre foi por mim’, pensou Núbia.

Quando Rita de Elis descobriu o câncer Núbia tinha sete anos, o médico estimou á Rita dois anos e ela viveu dez, dez sofridos anos, onde ela se tratava, ficava bem, e voltava a apresentar sintomas. Onde ela tentou não chorar na frente da sobrinha e ser forte para não deixar a filha adotiva sozinha no mundo.

Núbia sempre quis as coisas de pressa, mas ao mesmo tempo, passou a infância temendo os anos que passavam e levavam sua tia para longe dela. Agora Núbia Cabrall notava que devia ter vivido de forma mais leviana os dezesseis anos ao lado de Rita, devia ter aproveitado os míseros segundos e fazer o tempo passar mais devagar.

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Uma lágrima rolou pelo rosto de Núbia, ela abriu os olhos e limpou o rosto com a mão.

Apagou os incensos já não aguentando aquilo, ela não devia pensar em tais coisas, aquilo a fazia chorar, lhe fazia fraca.

— Já meditou? _ perguntou Thayna sentada na cama.

Núbia deixou um incenso cair com o susto depois fitou a fantasma com raiva.

— Tentei , mas... Comecei a pensar numas coisas e não consegui _ respondeu Núbia com cara emburrada.

— Pensou sobre a vida?

Núbia assentiu, pegando as pedras para guarda-las.

— Então estava dando certo _ esclareceu Thayna. _ Papai não lhe disse que meditar é descobrir a si mesma? Então, você é sofrida, mas tenta não mostrar isso, agora só estava confessando consigo mesma, estava dando certo, Núbia.

— Edgar disse que isso relaxaria, eu não me sinto relaxada.

— Por que não terminou a meditação. Coloque as pedras de volta em seus lugares _ ordenou Thayna.

Núbia revirou os olhos, mas decidiu que não custava tentar, assim obedeceu, Thayna.

— E agora?

Thayna flutuou da cama até Núbia e sentou-se de frente a ela, mas fora do circulo.

Núbia viu que o sangue nas roupas de Thayna parecia mais seco e o rosto dela estava limpo, e não sabia dizer se aquilo era normal entre fantasmas, mas decidiu não comentar nada.

— No que estava pensando quando chorou? _ perguntou Thayna.

— Minha tia, ela morreu _ disse Núbia não querendo dar detalhes.

— Será que isso é tão triste assim?

Núbia pensou em dizer que a pergunta dela era idiota, mas logo notou que o questionamento tinha certo sentido.

— Ela... Sofria muito, com a doença que tinha, acho que a morte foi um descanso, mas... Eu sinto tanta falta _ disse Núbia não segurando o choro _. Estou sendo egoísta não estou?

— Não, está sendo humana _ disse Thayna com um sorrisinho.

— Ela disse que queria estar ao meu lado, quando eu me formasse, ou quando tivesse um filho e... Isso não vai acontecer.

Núbia soluçou e enxugou o rosto.

— Por que não vai acontecer? Só por que ela morreu? Oras, também morri e estou aqui, não estou?

Aquilo fez Núbia paralisar por alguns segundos, depois olhou em volta.

— Eu... Penso nisso ás vezes, mas se ela estivesse aqui eu poderia vê-la.

— Edgar pensa o mesmo sobre mim _ disse Thayna em tom baixo. _ E ele não consegue me ver porque mesmo após anos ainda não aceitou minha morte. O mesmo acontece com você, Núbia. Aceite, sua tia morreu nesse mundo, mas sempre estará viva em sua memória, e em algum outro lugar, mas se você ainda está aqui, nesse plano, é porque ainda têm objetivos a alcançar e descobertas para fazer, então viva!

Núbia assentiu seriamente e ficou um longo tempo calada pensando naquilo e chorando um pouco mais, porém logo as coisas pareceram fazer mais sentido e Núbia abraçaria Thayna se ela não fosse um fantasma.

— Obrigada _ disse ela com sinceridade.

A áurea de Thayna pareceu clarear e ela sorriu.

— Não precisa me agradecer.

Núbia baixou o olhar e quando voltou-se a Thayna para fazer uma pergunta ela havia sumido.

Agora com o coração mais calmo, Núbia ascendeu outros incensos e voltou a meditar, dessa vez com um sorrisinho, não de felicidade, mas de esclarecimento.

...

Após o almoço Ângela serviu um pão de coco como sobremesa e os olhos de Núbia brilharam.

— Amo isso! _ disse Núbia.

Ângela deu-lhe um sorrisinho e acenou com a cabeça.

— Se concentrar pareceu um trabalho muito difícil para ti, por isso a recompensa _ disse Edgar apontado para o pão.

Núbia já cortou três pedaços enormes, os colocou no prato, mas comeu com a mão mesmo.

— Mas eu gostei de meditar no fim das contas _ disse Núbia de boca cheia.

— Ótimo, sentiu-se mais clara?

— Sim, muito. Aprendi rápido até não acha?

— Claro, falta só aprender a comer de boca fechada, não?

Núbia bufou, mas engoliu o pão e tentou se comportar.

— Você não vai comer também?_ disse ela notando que Edgar somente bebia seu vinho misturado e ele franziu o nariz.

— Não gosto muito de pão doce, foi feito só para ti mesmo.

Núbia levantou uma sobrancelha.

— Não vou esquecer que você matou alguém só por causa de um pão.

Edgar deu ombros.

— Não é esse meu objetivo. Mas mudando de assunto? Quantos livros daqueles que te emprestei você já leu?

Núbia fez aquela cara que expressa claramente : ferrou.

— Eh... os de bruxaria li os dois. Os seus diários de estudo li algumas partes e aquele de história... até agora não intendi por que me deu aquilo.

Edgar segurou o próprio queixo daquela forma charmosa que costumava fazer quando planejava algo.

— Unhum... Nós falamos mais cedo sobre talismãs, e concluiu que quem sabe seja bom eu te explicar sobre minha fonte de poder.

O coração de Núbia quase parou.

— Eu... é, eu adoraria saber _ admitiu Núbia tentando segurar a ansiedade de ver o capuz.

Edgar levantou uma sobrancelha.

— Meu diário fala sobre meu talismã, não leu?

Núbia negou com a cabeça e por dentro desejava que Edgar não quisesse ver o diário, se não ela estava bem encrencada.

— Eu comecei a ler seus diários agora _ justificou ela.

— Está bem, mas creio que já tenha ouvido falar sobre o Saci, _ Núbia assentiu e Edgar prosseguiu: _ Bem. O Saci não era um pestinha como diziam, ele era um demônio, uma criatura mandada pelo próprio lúcifer para infernizar os sertanejos.

— Mas como ele surgiu e por quê? — perguntou Núbia, como sempre curiosa.

Edgar pareceu satisfeito com a pergunta.

— Não sei muita coisa, mas o que sei escrevi no meu diário, no entanto já que não leu, posso te contar. Bem, foi em meados do século XVII no Brasil. Ele era filho de uma escrava com um capataz branco, o que lhe deu uma característica um tanto peculiar, o chamado traço branco, traço este que conquistou os senhores. Ele era uma criança bonita para o povo que pertencia, então costumava trabalhar mais no casarão do que na agricultura, isto é, nas partes menos... difíceis.

— Ele era considerado melhorzinho por ter um traço branco? Que idiotas racistas!— disse Núbia fazendo cara feia.

Edgar revirou os olhos.

— Estamos falando de séculos atrás, naquela época não havia esse pensamento do racismo, ao menos não a consciência que isso fosse algo errado. Mas como eu ia dizendo: Quando a mãe dele morreu, o rapaz foi vendido para outro senhor e lá ele também trabalhava dentro do casarão, o que fez com que tivesse uma convivência maior com a filha do senhor, que devia ter a mesma idade que ele. O Saci e a sinhá começaram a descobrir a maturidade, ele era um pré-adolescente e ela uma bela garota, e, não demorou muito para o escravo se ver apaixonou pela filha do patrão, e a moça ao invés de afasta-lo, somente se aproveitou da paixão do rapaz, provavelmente achava divertido ter um admirador, mas não tinha os mesmos sentimentos. Logo, porém, a sinhá foi prometida a outro rapaz, mesmo tendo só uns quinze anos, pois isso era comum na época, e... Bem, ao que sei, ela deve ter enfim feito o Saci notar que o amor dele não era reciproco, que ele foi usado esse tempo todo e que não passava de um escravo para ela, e, isso o deixou maluco, doente por vingança. Ele matou muita gente por ódio, principalmente a moça que dizia “amar”, cotando-lhe a cabeça após tortura-la. Saci era esperto e ágil, um gênio do mal, que capitão do mato algum conseguia segurar. Então os homens da vila em que vivia o caçaram, até mesmo seu próprio povo, os escravos, participaram da persignação; cotaram-lhe uma das pernas para que não escapasse, o amarraram no tronco, o açoitaram e o queimaram vivo.

Núbia arregalou os olhos.

— E como ele voltou?

— Bem, a crença das pessoas quando mutua pode fazer grandes afeitos na realidade, a tal energia que nós bruxos tanto falamos. Sem contar que há algumas versões que contam que Saci fez um pacto com o demônio. Seja como for. Toda vez que acontecia algo de errado ou estranho, culpavam o tal escravo Saci, era um praguejo comum do povo, mas de tanto falarem e o chamaram ele voltou, não como um escravo injustiçado, mas como um demônio com o poder de todo o ódio que recebeu em sua alma.

— E o capuz?

— Alguns dizem que foi um presente da tal sinhá e que ele usou até a morte, outros dizem que colocaram isso na cabeça dele para abafar seus gritos antes de morrer, são varias as versões, o que interessa é que o poder do demônio ficou acumulada no capuz, um grande e negro poder, mas bem útil, admito.

Edgar sorriu de canto, levantou seu cajado e apertou em um dos tantos relevos da madeira e esta parte se abriu. O Cabrall introduziu o dedo no buraco ali feito e começou a tirar um pano vermelho com brilho cruel. Quando o tirou por completo, chacoalhou-o o fazendo ganhar forma.

— Esse é seu talismã _ disse Núbia se segurando para não pegar o capuz e sair correndo.

— É. Um poderoso talismã, mas perigoso, pois é muito conectado ao seu dono original.

Núbia franziu os olhos.

— E o saci? O senhor o matou não foi.

Edgar segurou a satisfação em enfim ouvir aquela pergunta.

— Não Núbia, eu não o matei, ele ainda está vivo, preservado em seu corpo original, na humanidade que lhe restou.

Aquilo sim pegou Núbia de surpresa.

— Digamos _ prosseguiu Edgar _que o demônio conseguia se conectar ao capuz e mexia com minha cabeça, tentava ter minha alma, assumir meu corpo. Eu queria o poder do capuz, mas não um demônio de brinde, assim decidi que aquela alma demoníaca devia voltar a seu verdadeiro dono. Fiz uma magia perigosa e proibida, que somente com a essência do capuz foi possível e o poder de tal. Eu trouxe o Saci de volta, o escravo, o garoto de quinze anos que se tornou um assassino por desprezo e tranquei o demônio nele. Mas os poderes ficaram comigo.

Núbia arregalou novamente os olhos.

— Como?

— Digamos que o rapaz original, deu origem a duas almas, a humana e a demoníaca, e eu renasci a humana para guardar a demoníaca. Essa magia demorou muito, consegui realiza-la após décadas usando o capuz.

— Então o Saci está por ai?

— Sim, nós fizemos um trato, ele guardava o demônio dentro de si, mas tinha uma segunda chance de viver, dessa vez, sem ser escravo e num novo século. Eu ainda dei a perna dele de volta e deixei que ele usasse o poder uma única vez na vida, era um trato justo na minha opinião. Nas minhas contas hoje ele teria uns 21 anos, achei que iria sumir depois de tudo, mas creio que o demônio ainda fale com ele, por isso hoje tenta conquistar o capuz de volta.

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— Como assim? _ disse Núbia já assustada.

Edgar se curvou e a encarou.

— Você já sabe a resposta, minha cara, no fundo, você sabe. Admita, meu diário não está com você, ele pegou não foi? Antes que você começasse a ler e descobrisse isso tudo que estou lhe contando. Aquele livro de história, as cicatrizes do ex-escravo não te lembra nada, guria? Por acaso já falou o apelido dele ao contrário? Me diga, em todo esse tempo que estão juntos, ele já te contou sobre o passado? Ele já demonstrou um lado mal, não foi? Pois bem, esse é demônio preso nele, comandando suas ações. Núbia, Cícero AKilah é o Saci. Ele quer o capuz para ter seu poder de volta, mas nunca soube como conseguir isso, até você aparecer.

Núbia o fitou irresoluta, tentou, mas palavra alguma saiu de sua boca, sentia-se novamente num abismo, caindo sem parar para a escuridão profunda.