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Confusão

Nem é necessário dizer que Hades estava nas nuvens.

Ele até poderia caminhar saltitando por aí, de tanta felicidade, mas a boa educação que recebera o impedia de fazê-lo. A lembrança do beijo era tão vívida em sua mente que as vezes se pegava sonhando acordado com o gosto dos lábios dela, sentindo a maciez, os toques, os suspiros. As coisas até poderiam estar bem – muito bem, por sinal – se não fosse por um pequeno detalhe: Perséfone passou a semana inteira o evitando, no sentido mais literal que isso possa soar.

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Já não conversavam nos desjejuns – ela vivia enfiando comida demais na boca de propósito só para não ter que tocar no assunto – e saía da saleta o mais rápido possível para não ser abordada. Quando estavam juntos – talvez não tão juntos quanto Hades gostaria, já que a garota insistia em seguir Nyx para todo e qualquer canto – mostrava um interesse anormal nas próprias unhas, sempre com os lábios crispados e os olhos fixos no chão.

Ele queria muito saber o que se passava naquela cabecinha e isso seria fácil se, ao menos, ela fizesse o favor de falar.

Perséfone, porém, não parecia inclinada a qualquer contato.

— Dê um tempo a ela. — foi Hypnos quem disse, no escritório, depois que Hades o convocou para uma reunião de urgência. Quando a palavra urgência foi proferida, não imaginou que o assunto envolvesse os dramas românticos de seu senhor. Hypnos tentou não rir, ainda fazia força para não achar a situação hilária, mas era impossível controlar, dada as circunstâncias – circunstâncias envolvendo um Hades muito mal-humorado, tudo por causa de uma garota, como se fosse um adolescente. — Deixe-a processar o que aconteceu.

— Já se passou uma semana. — resmungou, cansado e irritado, com um copo de gim em mãos. A bebida dos humanos não fazia muito efeito em divindades, mas lhe pareceu conveniente beber algo enquanto conversavam sobre o desastre que vinha sendo sua vida amorosa. — Tenho certeza de que ela teve muito tempo para processar tudo.

— Você está sendo precipitado, Hades. — meneou a cabeça, servindo-se também com gim. — Ela é uma garota inexperiente. Deve estar uma pilha de nervos, quase surtando, coitada. Tenho certeza de que foi o primeiro beijo dela.

— Sei disso. — bebeu o resto do líquido em um gole só, depois cruzou os braços, rabugento. — Mas não quero que seja o último. E somos adultos. Precisamos conversar como adultos, não ignorar o que aconteceu.

Hypnos pensou que, apesar de toda essa fala, Hades estava longe de estar agindo como um adulto.

— Vá em frente, então. — deu de ombros, os sábios orbes brilhando com a luz vinda dos castiçais. — Mas não diga que não avisei.

Dito e feito.

Quando ele tentou aborda-la pela milionésima vez no corredor, tudo o que Perséfone fez foi inventar uma desculpa muito idiota para livrar-se de sua presença.

E ela conseguiu.

Felizmente – não para a deusa das flores, é claro –, Hades era um cara persistente. E quando estava determinado a algo não havia nada nem ninguém que pudesse pará-lo.

Desistir nunca esteve em seus planos. Ainda mais envolvendo o amor de sua vida.

Então, em uma manhã de segunda-feira, ele praticamente madrugou na porta do quarto dela, escorado na parede, mais do que determinado. Os empregados que andavam de um lado a outro – e cochichavam, fofoqueiros como eram – não sabiam ao certo quem estava sendo mais infantil nessa história toda: Hades agindo como se estivesse na puberdade ou Perséfone correndo dele como o diabo corre da cruz.

Realmente, era difícil saber.

O deus esperou pacientemente, ignorando os olhares risonhos de seus servos e os cochichos. Sabia muito bem o que todos achavam da situação – as paredes têm ouvidos e as fofocas corriam soltas pelo castelo, mesmo que a maioria delas não chegassem a ele.

E depois de duas horas plantado no mesmo lugar, com o mesmo semblante inexpressivo, a porta do quarto abriu, revelando uma moça estonteante em seu simples vestido branco, com o xaile pesando nos ombros, embora a cara estivesse amassada e os olhos inchados, como se não dormisse há muito tempo.

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E esses olhos, brilhantes e incrivelmente verdes, ficaram ainda maiores, esbugalhando-se, quando a visão foi tomada pela silhueta masculina.

Ela tentou fechar e se esconder para sempre naquele maldito quarto, mas dessa vez ele foi muito mais rápido, bloqueando a porta com o próprio pé, as sobrancelhas escuras ligeiramente arqueadas, os braços cruzados e o rosto de quem estava muitíssimo aborrecido.

— Está fugindo de mim. — não era uma pergunta. Ela piscou sequencialmente ao ouvir a voz rouca – aquela voz que lhe causava arrepios na espinha –, chegou até a abrir a boca, mas som algum saiu, apenas um gaguejo sem sentido.

Sequer conseguia olhar nos olhos dele.

— Não estou fugindo. — mas a vermelhidão que começou nas orelhas e espalhou por todo o rosto a denunciou. Observou o sorriso que se formou no rosto dele, lentamente, como se acabasse de pega-la no flagra fazendo algo muito feio. Ainda assim, manteve a compostura, embora se sentisse patética. — Só estive ocupada.

— Você mente muito mal, Perséfone, e nós dois sabemos disso.

Nessa altura do campeonato, a deusa já estava prestes a ter uma síncope.

E nem era nove da manhã.

— Qual é o problema? — ele questionou.

— Não tem problema algum. — respondeu, mas não era verdade. Tinha, sim, um problema – e dos grandes. Não com Hades, mas com ela, especialmente ela. — Eu só precisava de um pouco de espaço.

— É, percebi. — crispou os lábios. — Depois que passou a semana inteira correndo de mim como se eu fosse o bicho papão.

Ali estava. O tom chateado.

A culpa a atingiu em cheio.

— Eu fiz algo errado? — ele continuou, com o mesmo timbre magoado.

— Não, você não fez nada errado! — apressou-se em responder, um pouco mais alto do que deveria.

— Só me diga por que está me evitando, Perséfone. — os olhos escuros brilhavam, cheios de súplica. A deusa não fazia ideia, mas o coração de Hades, flechado e apaixonado, doía sempre que lhe dava as costas ou se afastava. Enquanto ela fugia, o interior do deus corroía-se em tristeza. — É por causa do bei...

A pergunta ficou no ar, incompleta, porque ela tapou a boca dele abruptamente com as duas mãos. Os dedos estavam suados e trêmulos, os olhos ligeiramente arregalados e a expressão muito – e coloca muito nisso – nervosa.

Shhhhhhhh. Quer que alguém escute?

Ele a afastou delicadamente, a sombra de compreensão o atingindo. Suspirou pesadamente, atordoado e tentou mediar as palavras seguintes.

— Está com vergonha?

Ela não respondeu. E o silencio foi resposta o suficiente.

O rosto dele ficou sombrio.

Ele, então, riu. Mas não de diversão, não como se achasse graça. Riu como se acabasse de perceber o óbvio.

Ela limitou-se a fita-lo sem entender absolutamente nada.

Então, ele falou, o rosto cheio de decepção.

— Entendi. Bom, — passou a mão pelo cabelo preto, mirando qualquer canto, menos para o rosto dela. — devia ter imaginado que sentiria vergonha de estar com alguém como eu.

O pânico se apossou da deusa.

— O que? Não! Você entendeu errado! — ela agarrou a capa dele em uma atitude impensada, meio desesperada, como se temesse que o rapaz sumisse. — Eu jamais teria vergonha de você, Hades. Jamais. — frisou e, quando o rosto dele suavizou, sentiu-se mais calma. — Eu só... é que...

— O que?

— Você sabe... Eu nunca... er, eu nunca...

Então tudo fez sentido, apesar do pouco que foi dito. Se a expressão de Hades antes era sombria, agora era só divertimento.

— Céus, Perséfone, está com vergonha do que fizemos? Me evitou esse tempo inteiro por causa disso?

Não era por causa disso. Perséfone ainda tinha aquela sensação de que era errado a ideia de gostar dele, ainda mais beijar.

Beijar.

Só de lembrar sentia um negócio quente, uma falta de ar louca.

— Sabe que não pode me evitar para sempre, não é? — ele deu um passo à frente, temendo que ela afastasse, mas ela não o fez. Apenas encarou os próprios pés, rubra como um tomate.

Linda.

— Sei disso. — sussurrou, tão baixo que chegava a ser quase inaudível. A audição aguçada, porém, era uma de muitas qualidades do senhor dos mortos. A mão dela ainda segurava sua capa firmemente. Ele, com muito cuidado, encostou os dedos nos dela, apertando-os com suavidade para não a assustar. Perséfone não afastou ou hesitou. — Só não consigo evitar.

O rapaz olhou para os lados, certificando-se de que estavam sozinhos, e encarou a moça. Ela ainda evitava seu rosto, os lábios apertados, como se guardasse um grande segredo. Gentilmente, ele inclinou mais, os rostos muito próximos, as respirações mesclando. Conseguia sentir o cheiro dela – aquele cheiro extasiante de lírios com sabonete.

— Qual o problema com o beijo? — sussurrou, bem baixinho, mesmo que estivessem sozinhos. Isso pareceu causar algum efeito nela, já que a pele ficou arrepiada e a respiração mais ofegante. Não podia negar, era muito agradável ver tais reações. — Você não gostou?

— Não é isso. Eu gostei. Muito. — murmurou de volta, toda tímida, dessa vez os olhares se cruzando. — É que está errado.

Uma das sobrancelhas escuras arqueou.

O que, exatamente, está errado, meu bem?

— Tudo, Hades. — Ele continuou sem entender. Ela suspirou, notando a expressão dele. — Mas não é com você. É comigo. Eu estou sentindo um monte de coisas, e não estou sabendo lidar com nada. Isso que sinto... me deixa apavorada. Eu estou com medo, Hades. Sei que é idiota, mas estou.

Era isso.

Perséfone não entendia por que seu coração batia tão forte. Muito menos porque aquele beijo a atormentava e tirava seu sono. Não entendia tal ligação que tinham, aquele laço que os unia tão firmemente, como se estivessem atados.

Sua cabeça estava prestes a explodir, tamanha confusão. Desde a infância, Demetra a alertava sobre os perigos dos sentimentos por um homem, e fazia de tudo para mantê-la longe de cada um deles. Perséfone, menina e ingênua, nunca se incomodou com nada disso, porque confiava na mãe. Sabia que ela estava fazendo o certo.

Agora, não tinha tanta certeza.

Aqueles sentimentos, todas as sensações, estavam longe de serem ruins.

O que Perséfone não sabia é que, depois de todas as desilusões com Zeus, sentindo-se usada e suja, Demetra projetou todos os próprios medos na pobre filha. A manteve encarcerada, enchendo-a de insegurança.

E assim Perséfone cresceu, sem saber o que é amor, desejo, paixão.

Ela não tinha culpa. Ela nunca teve culpa.

Simplesmente não conseguia entender – entender por que queria estar com Hades o tempo inteiro.

Ou porque queria beijar ele de novo e de novo e de novo.

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Encararam-se por um minuto, os olhos de ébano brilhando, como se visse através dela.

E de certa forma ele via.

Entendia o lado dela. Via as dores, a confusão – especialmente a confusão –, aquela luta interna.

— Talvez você não tenha que lidar com nada, Perséfone. — disse, por fim, suavemente, a voz em um sussurro, olhando-a com tanta intensidade que ela prendeu a respiração. — Se permita sentir um pouco, sem culpa ou medo. Não tem nada de errado nisso. Uma vida sem sentimentos é uma vida vazia.

Não tem nada de errado nisso.

Ela o fitou longamente, respirando com dificuldade, tais palavras ainda ecoando na cabeça, preenchendo seu corpo de dentro para fora.

Uma vida sem sentimentos é uma vida vazia.

— Acho que você tem razão.

O silencio reinou.

— Hades?

— Sim, querida. — os dedos subiram lentamente para o pulso dela, apertando-o com delicadeza. Os olhos escuros, porém, permaneceram fixos nos esverdeados. Perséfone estava vermelha, muito vermelha, e ofegante, mas dessa vez não desviou, não correu, nem fugiu. Surpreendentemente, deu um passo à frente – um passo que selou praticamente toda distância que havia entre os dois. Nessa altura, o coração dele parecia prestes a explodir. E o dela, prestes a falhar. — Diga.

— Posso te pedir algo?

— Qualquer coisa.

— Você poderia... — mal conseguia respirar, mal conseguia se mover. As pernas estavam bambas, completamente inúteis. As mãos suavam. Ainda assim, as palavras saíram. Trêmulas, mas saíram. — me beijar de novo?

Ele nem respondeu. Apenas a empurrou para dentro do quarto, fechou a porta atrás deles com o pé e puxou o rosto dela para perto. Os lábios encaixaram-se perfeitamente, feitos um para o outro. Os corpos juntos, quase se esmagando, uma das mãos dele segurando firmemente a cintura, a outra o pescoço.

Perséfone, então, fechou os olhos, sentindo-se completa.

Sem medo, sem culpas.

Apenas êxtase e felicidade.

+

Aquela era uma tarde amena no mundo dos mortais. Apesar da calmaria reinar, Eros não estava nada contente. Seu suntuoso palácio erguia-se magistralmente, cheio de colunas brilhantes e castiçais. Estava sentado em um sofá feito de nuvens fofas, com as asas de anjo muito bem acomodadas. Os olhos azuis, porém, fitavam a figura loira e esbelta, a criatura mais linda do mundo, que penteava o cabelo em frente a um tocador de ouro, admirando a própria imagem no espelho.

— Você está despreocupada demais para o meu gosto. — ele comentou, afofando uma almofada de nuvem, em seguida repousou a cabeça, sem retirar os olhos da mulher.

— Não há nada com que se preocupar, querido.

— Não foi isso que Hermes me disse. — rebateu. — Depois que flechamos Hades, ele é quem está me deixando a par de todos os acontecimentos, pela amizade que temos. Devemos muito a Hermes. Depois de tudo o que ele nos contou, digo com convicção que as coisas estão longe de estarem bem. Acho que fizemos uma grande merda.

— Pois acho que estamos no caminho certo. — Afrodite rebateu, encarando o filho com aqueles olhos ferozes. Cupido não fez nada além de retribuir o olhar. Era um dos poucos que não se deixava intimidar pela deusa do amor. — Hades é bom deus, apesar do que falam, e eu jamais permitiria que passasse a eternidade sozinho. Nem que uma garota como Perséfone entre naquele grupo estúpido de Ártemis. Demetra só pode estar louca. Logo ela, que se engraçou com Zeus, criando uma filha para ser completamente casta.

— Ela vai ficar louca se Perséfone continuar desaparecida. — Eros alisou as próprias asas de anjo, analisando as penas brancas. — Por nossa culpa. Escute, uma guerra não estava nos meus planos.

Nos nossos, você quis dizer. — a deusa virou-se, o rosto sério. — E isso não é uma guerra. É só um surto da Demetra. — abanou as mãos, como se não fosse nada demais. — Ela já até esta melhor, os humanos pararam de morrer desde que Zeus convocou a cúpula.

— Aí que está. — Cupido apertou os lábios. — Espere só depois que todos souberem que na verdade Zeus sempre soube onde Perséfone esteve. Vai dar ruim, mamãe, estou dizendo.

— Você anda conversando demais com Hermes. — resmungou, irritada, e rolou os olhos. — Sei que está preocupado, meu filho, mas nós sabemos que aqueles dois foram feitos um para o outro. Eu já sinto as vibrações. Perséfone está claramente apaixonada e nem precisou ser flechada para isso. Sabe o que isso significa, não sabe?

Sim, Eros sabia, mais do que ninguém.

Ele sabia o significado de alguém se apaixonar sem precisar de uma flecha.

O problema eram as consequências daquele plano maluco de sua mãe.

Afrodite gostava de juntar casais improváveis. E talvez esse, de fato, fosse um erro.

— Sei o que está pensando. — ela se levantou, alisando o vestido espalhafatosamente rosa, que moldava em cada curva de seu corpo esbelto. Depois se sentou ao lado do filho, acomodando-se em suas asas cheias de plumas. — Mas não devia se preocupar tanto.

— Você sabe que Perséfone está apaixonada, mas sabe também que ela nem sequer se deu conta disso. — dessa vez Afrodite ficou quieta. Seus poderes projetavam para toda e qualquer alma cercada pelo amor e, sim, sabia que Perséfone estava apaixonada, mas sentia as confusões, os medos, as angústias, apesar de não entender os motivos. — Isso é um problema.

— Céus, Eros, você precisa ser mais otimista. Eu sou a deusa do amor, a porcaria da deusa do amor, e sei muito bem reconhecer duas almas que estão destinadas a ficarem juntas, por isso mandei flechá-los. — cruzou os braços, irritada. — Confie em mim. As coisas vão ficar bem.

Mas Eros não tinha tanta certeza disso.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.