Flores de Rodório - A flor da Romãzeira

Capítulo 7 A Disputa das Papoulas


Sair da prisão criada por Fântaso foi uma tarefa muito mais simples do que lutar com o Oneiroi, mas, mesmo assim, foi complicado. Mesmo já tendo me livrado do ardiloso deus das fantasias, algumas coisas naquela dimensão armazenavam ainda sua cruel síntese e acabavam por dificultar minha passagem.

— Mostre o caminho. – falei em voz baixa, movimentando minha mão de forma rápida, fazendo surgir uma trilha de miosótis azuis que parecia seguir reta por uma boa quantidade de quilômetros.

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Sozinha, caminhando com certa pressa, não tive como não me perder em pensamentos, e imediatamente eles voaram para a figura do meu pai. Há tempos não pensava no velho Aquiles, ou, em como ele estaria seguindo sua vida sem mim... Era difícil pensar nisso, e acho que evitei que minha mente se desgarrasse para isso na ânsia de me poupar da dor em meu peito.

Meu pai e eu éramos ligados como qualquer pai e filha, mas, depois da morte da minha mãe, nossa relação pareceu se estreitar ainda mais. Eu era a única coisa que havia sobrado para ele, então papai tentou me dar tudo o que podia.

Me deu uma boa educação, me deu as melhores lembranças da minha vida, me deu seu amor e me deu a chance de crescer e me descobrir como um ser humano livre quando deixou de lado tudo o que falavam para me criar do jeito que bem entendia.

Era comum que passássemos horas e mais horas sentados à mesa da cozinha, apenas conversando ou jogando cartas enquanto discutíamos sobre algo que eu havia aprendido com meus tutores. Papai também era letrado, sabia das coisas como ninguém e até mesmo gostava de falar comigo em Grego Clássico quando estávamos sozinhos.

Papai era o típico grego, arranjava tempo para contar histórias e nos lembrar de nossas raízes a todo tempo! Era impressionante ver o quanto as histórias ficavam armazenadas em sua cabeça e depois ele as dispersava pelo mundo, fosse conosco em casa ou com as crianças que iam pedir comida na joalheria... Ele era bom também, acolhia cada uma delas, dava de comer e lhes contava as maravilhosas histórias que aqueciam o meu coração desde muito novinha...

Me lembro até hoje do dia em que ele me contou a história sobre Caronte, o barqueiro, e do quão assustada eu fiquei ao imaginar que teria de me encontrar com um homem que engoliria a minha moeda de ouro para me deixar passar para o lado do Mundo dos Mortos! Comecei a dormir com uma moeda debaixo do travesseiro, apenas para o caso de eu morrer dormindo. Papai precisou de meses para me convencer de que era só uma história e que eu não precisava me preocupar.

Mamãe riu horrores também... Ela ainda estava viva naquela época.

Inspirei profundamente, e quando fui tentar mover meu braço, não consegui, algo muito forte e apertado me prendia no lugar. Só então consegui compreender que estava presa, e todas as lembranças que passavam a frente dos meus olhos desapareceram no ar, como se nunca houvessem estado lá.

— O... Quê? – consegui perguntar, quando meus olhos finalmente desanuviaram e pude notar claramente os ramalhetes de papoulas erguendo-se por minhas pernas, troncos e pescoço, prendendo-me no lugar como se eu fosse um inseto tomado pela teia de uma ardilosa aranha. – Papoulas... – murmurei, olhando as papoulas rosadas que me sufocavam com seu perfume terrível.

— Sim, Diana, papoulas! – e a voz adentrou meus ouvidos. Meus olhos ergueram-se na direção de Morfeu, parado flutuando a minha frente, encarando-me como se eu fosse a coisa mais insignificante do mundo. – Mas não são quaisquer papoulas! Essas são as Papoulas do Morphium Coma, brancas como a neve, elas sugam todas as lembranças, desejos e emoções de quem cai neste golpe, até que as pétalas se tingem de vermelho e a alma da pessoa é roubada.

Meus olhos arregalaram-se, e por mais que eu tentasse conter meus pensamentos, era impossível não começar a me lembrar de todos os momentos felizes e infelizes da minha vida, que passavam por meus olhos como uma torrente de informações, e a cada imagem tremeluzente, eu sentia meu corpo ficar mais e mais imóvel.

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Arfando, pensava que aquele seria o meu fim. Eles podiam me ferir, podiam me escravizar, mas era difícil conter meu pensamento e minha imaginação. Talvez por isso Hypnos enviara Fântaso e Morfeu para me enfrentar! Teria sido melhor ter enfrentado Ícelo ou o próprio Oneiros... Eu preferia perder meu corpo a sofrer por intermédio de minha mente!

Fechando os olhos, deixei uma lágrima cair, perdendo completamente o movimento de meus membros. Realmente pensava que aquele seria o fim.

Porém, no momento em que pensei em realmente desistir, uma voz suave e muito doce adentrou meus ouvidos e ecoou no fundo da minha mente.

“Não desista! Eu lhe entrego minha benção!”

Aquela era a voz da minha senhora, Perséfone. Minha amada deusa e querida senhora, que precisava de mim e precisava da filha dela em suas mãos.

No momento seguinte, meu peito encheu-se de um calor agradável e senti meu corpo começar a ser coberto por algo que parecia ser água gelada, e essa água deslizava por todas as partes presas, até se solidificar.

Quando o liquido se solidificou, eu abri os olhos, encarando Morfeu com uma determinação que vinha bem de dentro do meu coração. Eu ia sair de lá, e iria sair de lá naquele momento. Forçando meus braços para o lado, eu ouvia os ramos de papoula chiarem e cederem, e, enquanto eu tentava me soltar, Morfeu intensificava o golpe, cerceando-me cada vez mais com seu poder.

Soltei um brado de guerra, queimando meu cosmo às alturas, ao passo que uma luz esverdeada saiu pelos pequenos espaços que as raízes das papoulas dele possuíam. A luz tomou conta do espaço, rasgando as raízes e me dando um impulso para dar um mortal para trás e cair de pé a vários metros de Morfeu, mantendo minha posição defensiva.

Minha respiração estava acelerada, e isso só se intensificou quando eu vi o olhar do deus sobre mim, como se ele visse algo tão surpreendente que seus sentimentos contidos se expusessem na forma de completa estática.

Ao olhar para baixo, vi minha imagem refletida no piso de obsidiana polida, e qual não foi minha surpresa ao ver-me portando uma armadura nos tons de prata e amarelo e decorada com flores de metal, delineando-se perfeitamente por sobre o vestido branco que eu usava por baixo dela.

O corpete justo tinha detalhes feitos em ouro, mostrando lindas papoulas amarelas ladeadas por miosótis azuis. O mesmo padrão de flores apresentava-se nos braços, pernas e no diadema que servia como proteção para minha cabeça. Era a armadura mais linda que eu já havia visto em toda minha vida, e era minha!

— Como? – Morfeu questionou, saindo de seu torpor e me tirando de meu estado de contemplação. – Você é só uma humana, não pode receber dádivas desse tipo!

— Correção, querido, eu sou uma ninfa e, pelo que está parecendo, agora eu tenho uma armadura divina! – e me coloquei de pé, estralando meus dedos. – Adorei seu presentinho feito de papoulas brancas, permita-me retribuir.

E, com uma explosão que poderia ensurdecer um ser humano comum, milhares de raízes fortes e potentes ergueram-se no chão, erguendo-se como se fossem tentáculos furiosos e em profusão, chacoalhando meu cabelo e avançando sobre Morfeu, envolvendo-o em um casulo bem apertado, deixando para fora apenas a cabeça.

— Como ousa atacar a mim, sua maldita? – questionou ele, começando a romper alguns ramos de minhas papoulas amarelas. – EU SOU UM DEUS.

— E eu sou uma ninfa. – sorri, completamente tomada pelo furor da batalha e a sensação terrível que me dava vontade de aniquilar o inimigo. Aquele era um sentimento perigoso, e Aiolos tentou me ensinar a conter o frenesi, pois ele compartilhava dele. – Uma ninfa muito irritada e com pressa.

Fazendo um movimento com as mãos, os pequenos botões de papoulas começaram a se abrir e, pela quantidade e tamanho das flores, o perfume começou a ser exalado com uma força inimaginável.

Morfeu, percebendo-se preso em uma armadilha muito parecida com a sua, começou a se mover com mais pressa, e a cada movimento, seu sangue passava com mais rapidez pelo corpo, os pulmões pediam mais ar e ele começava a ser intoxicado pelas minhas papoulas amarelas, colocando-o em um estado cada vez mais letárgico.

— O... Quê? – perguntou ele, sentindo dificuldade em manter os olhos abertos e perdendo o movimento de seus membros.

Ordenei que as papoulas o trouxessem até perto de mim, ficando frente a frente com um dos deuses dos sonhos, olhei-o calmamente.

— Onde está Macária, Morfeu? – perguntei, sentindo uma gota de suor escorrer por meu pescoço. Estava fadigada pelo ataque dele e agora gastava minhas energias criando uma profusão de papoulas e exaurindo ainda mais o meu cosmo. – Diga-me, Morfeu, – pedi, com os olhos brilhando. – É a única coisa que preciso que me diga.

— Macária... – respirando de forma lenta, o deus fechou os olhos, deixando-se levar pelo veneno das papoulas que nublava os pensamentos. – Está...

No entanto, antes que ele pudesse me dar a informação que eu tanto desejava, um raio de luz prateada atravessou a sala e incinerou o corpo de Morfeu, assim como os ramalhetes das minhas flores, jogando-me para trás com a explosão do corpo do deus.

Desnorteada, olhei para cima, de onde vinha Oneiros, encarando o local onde antes esteve o corpo de seu irmão, respirando fundo como se não se arrependesse daquela situação. A explosão havia me deixado imóvel, completamente imóvel, mas eu tentava de todas as formas me mexer, conseguindo apenas um espasmo em meu dedo indicador direito.

— Você deveria ter ficado na prisão de Fântaso. – ditou ele, a voz levemente alterada, pousando a alguns metros de mim, para depois caminhar em minha direção, batendo o metal de sua armadura no chão negro e lustroso. – Agora, eu vou ter de lhe parar.

Consegui me colocar de joelhos, segurando minhas costelas por sobre o torso da armadura, cuspindo um pouco de sangue no chão, limpando meus lábios com o dorso da mão.

— Por que continua levantando? – perguntou Oneiros, parecendo frustrado. – Será que eu tenho que te matar para que desista dessa odisseia maluca?

— Ah, você não sabe nada sobre seres humanos, principalmente sobre mulheres. – ri, colocando-me de pé. – Nós somos as criaturas mais teimosas e obstinadas do universo. Então, sim, você vai ter que me matar. – ditei, começando a desprender o aroma das papoulas amarelas.

— Diana. – Oneiros avançou um passo, fazendo-me recuar. – Se parar agora, eu conseguirei salvá-la... Conseguirei tirá-la daqui e lhe colocar em um lugar onde nem Hypnos te alcançaria. Por favor, pare agora.

— Por que você faria isso? – perguntei confusa, sentindo meu coração pular. – Por que quer me salvar?

— Porque você é diferente. – confusa, eu o olhei, estática. – Você não é como ele disse que seria.

— O quê? Oneiros...

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— Posso te levar para O Jardim dos Sonhos, lá ele não a encontraria e você poderia viver. – o deus veio até mim, segurando-me pelos ombros. – Eu tiraria esses sentimentos impetuosos que Hades colocou em sua cabeça.

— Oneiros... – segurei as mãos dele, encarando-o de forma preocupada. – Você... Você está apaixonado por mim? Isso não é possível, nos vimos apenas uma vez!

— Eu a vejo todas as noites desde que nos conhecemos, Diana. – continuou ele, levando a mão até meu rosto. – Eu a conheço muito bem, pelos seus sonhos, e sou eu quem deixa passar a imagem de Macária. Fiz muitas coisas por você, Diana... Coisas que, se fossem descobertas, arruinariam-me para sempre.

Sentia meus olhos arderem, e só então percebi que uma névoa amarelada erguia-se ao nosso redor. O sedativo das papoulas havia se exalado em quantidades gritantes e formavam uma nuvem que se condensava ao nosso redor. Oneiros começava a falar coisas que não queria revelar por conta da névoa de Papoulas.

— Me... Me desculpe. – pedi, tocando o peito da armadura dele. – Eu não posso parar agora, se você veio me enfrentar, significa que estou perto...

— Quase lá. – ele soltou uma risada fraca, piscando os olhos com dificuldade.

— Eu não quero lutar com você. – disse, deixando uma lágrima cair. – Você é bom, Oneiros... Por que obedece as ordens de Hypnos? Por que faz isso?

— Somos semelhantes, Diana, – ele passou a mão por meus cabelos, batendo levemente no diadema de prata. – lutamos por aqueles que nos deram a vida!

— Eu... Eu espero que possamos ser amigos em outra vida. – volvi, segurando-o pelas mãos, deixando uma lágrima cair.

— Eu também.

No momento seguinte, iniciamos uma luta que ficaria marcada no Mundo dos Sonhos. Cada soco, cada chute e cada rajada de cosmos abalavam as estruturas do Submundo, abrindo vãos luminosos nas paredes negras que nos envolviam naquela parte isolada da Prisão dos Sonhos.

Com a luz, meus miosótis azuis começaram a florescer em profusão, direcionados a um estranho portal que abrira-se com o impacto do meu corpo contra as paredes. Nenhum dos dois tencionava parar e, por mais que minhas papoulas já o intoxicassem, Oneiros mantinha-se forte, lutando com toda a potência de seu corpo e cosmos divino.

Novamente de joelhos no chão, eu cuspi mais uma vez uma bolota de sangue, gemendo quando o deus dos sonhos oníricos me pegou pela cintura, ergueu-me no ar e me lançou novamente contra o nada, até que eu batesse contra mais uma barreira, fazendo cair cacos gigantes do que deveria ser uma barreira construída por Morfeu.

Estava muito próxima do portal por onde os miosótis azuis adentravam, e, vendo Oneiros fraquejar ao andar em minha direção, desprendi ainda mais o perfume das papoulas, intensificando a névoa amarela, fazendo-me tossir algumas vezes também. Era uma quantidade absurda de sedativo até mesmo para mim.

Por isso, quando percebi que ele estava fraquejando, criei ao redor dele um casulo de raízes e fiz com que elas sugassem para dentro do casulo toda a névoa das papoulas. Tremendo pelo esforço em manter o casulo selado, e ainda mais por ter que suportar Oneiros tentando rompê-lo a todo momento, consegui manter a formação fechada até que não mais sentisse os movimentos do deus contra as raízes.

Deixando mais lágrimas sentidas caírem, abaixei o casulo até o chão, tocando-o rapidamente antes de correr na direção do portal iluminado.

Oneiros era bom, eu sabia disso e me ressentia por saber que ele havia se apaixonado por mim... Não queria que isso tivesse acontecido. Não queria ter de matá-lo. Se ao menos ele me odiasse...

Seria mais fácil.

Meus pensamentos nublaram-se quando eu adentrei pelo portal luminoso e meu corpo flutuou como se não pesasse nem uma grama sequer!