Estava escrito "Samantha Puckett" no destinatário, e logo eu abri. Abri com um certo receio de ler o que eu menos esperava... E lá estava um emaranhado de letras apertadas e rabiscadas. Parecia até que as palavras explodiriam daquele pedaço de papel.

Eu simplesmente tentei me convencer de que não era a caligrafia dela.

Mas era inútil dizer que não.

"Eu sei que você seria a última a abrir um livro de romance meu, e é por isso mesmo que sei que quem abrir isso, com quase toda a certeza do mundo, não será você, mas ainda espero que esse alguém tenha o bom senso de avisar que eu escrevi pra você. Eu repeti o pronome você muitas vezes e o mais engraçado é que não sei quem é que está lendo, como já mencionei antes... Então, bom, imagine que você é a Sam.

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A parada é que inventei esse texto de última hora pra deixar claro que, pela primeira vez, eu menti. Eu menti de verdade. Menti quando disse que estava me sentindo mal. Eu só queria sair com o Paul pela primeira vez e me sentir livre, quer dizer, queria que ninguém além de mim soubesse disso. Mas me senti culpada, muito culpada. Então, bom, eu vou voltar depois. Eu juro que volto. Só estou fazendo o que meu coração manda. Eu sei que esse dia vai ser incrível. E que, se por um milagre dos céus você quiser escutar, eu vou te contar tudo.

De Carlotta."

Meus olhos apertaram tanto quanto cada uma daquelas palavras. Eu sentia uma raiva tão grande e uma angústia tão forte que, a partir daquele momento, entendi que aquele dia realmente não seria como os últimos. Que seria diferente, anormal. No pior sentido possível da palavra.

[...]

Matemática, matemática, matemática, matemática e... Matemática? Não, eu não poderia assistir uma aula de matemática por vontade própria. Eu simplesmente tinha que botar na cabeça tudo que tinha lido antes, sobre a Carly, sobre o Paul, sobre Carly ter cometido o incrível erro de sair com Paul no maldito dia em que ele foi pensar em estuprá-la, e em tudo que envolvia aquele bilhete e aquele maldito livro cheio de filosofias meramente melodramáticas e cheio de nexos que eu não conseguiria, nem por um milagre do Universo, compreender. Era só mais um maldito, péssimo, incrivelmente irritante dia anormal, carregado de outras preocupações de uma órfã traumatizada.

Mas não quando você mata uma aula pela manhã e lembra que a única pessoa que poderia falar com você e te convidar pra passear nos túmulos de um maldito cemitério localizado na área mais sombria e deserta de toda a cidade não está disponível, porque aí esse dia muda de tema. Você simplesmente não pode e nem deve se desculpar. Você é orgulhosa, você é Samantha Joy Puckett. É aí que o seu dia muda totalmente de um dia meramente anormal para um dia anormal e triste. É aí que você começa a compreender, por um milagre do Universo, os nexos do livro da sua ex companheira domiciliar iludida. É aí que as suas reflexões passam de destrutivas para melancólicas. Você está sozinha.

E, não, eu não estava preparada para caminhar até o apartamento e chorar outra vez. Eu precisava fazer alguma coisa, porque segundo um certo poema do livro, nada é impossível. E, bem, nada é pra sempre, então a oportunidade de tornar o impossível possível não duraria uma eternidade. Eu precisava fazê-lo. Mas eu não tinha nada além de lembranças, e lembranças são como estátuas de pedra que ornamentam um bosque. São intactas. São certas. Pessoas normais costumam dizer, apenas, que as lembranças são coisas que já passaram. E são.

Lembranças são imóveis. Lembrar é perda de tempo. É como voltar inutilmente num passado que jamais voltaria a ser real ou ao menos a se mostrar real apenas para mim. Lembranças não tornariam nada possível, mas isso era uma parte das reflexões melancólicas. E das más. Era a vez do Universo. Ele usaria minha consciência para me pregar peças, e, bom, seria uma boa tentativa de me deixar ainda pior do que eu estava. Ele sabia.

Quando eu tinha treze anos e minha depressão estava no auge, era exatamente desse jeito que eu costumava descontar todo o meu sofrimento e mágoa: em maus atos que viriam a se tornar más lembranças. Com drogas, álcool e tortura. Tão vago. Mas, era mais ou menos assim que Universo me fazia se entregar, porque naquela época ele estava se vingando.

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Senti um retardo mental como o que acontecia quando eu me drogava, e me embriaguei exatamente como quando as bebidas e aguardentes eram o que me resumiam por completo, um tipo de salvação. E, bom, com isso vieram as concretas lembranças. E naquele dia elas se tornaram reais, mais precisamente à meia-noite. A dor era como a do corte mais profundo.

E o Universo... ele estava contra mim de novo.

— Mais uma dose. — O garçom me olhou estranho, e parecia me desafiar.

— O que foi que você disse, garota?

— Mais! Mais, porra, tô falando grego? Mais uma dose do "troço" mais forte que vocês tiverem nesse boteco.

Ele foi tratar de atender o meu pedido enquanto eu batia minhas unhas na mesa de madeira num ritmo inquietante. E, certamete, estava me encarando o tempo todo como se eu realmente me incomodasse, como se fosse natural que alguém como eu sentisse pavor de um garçonzinho. Eu sorria do nada e ria do nada também, chorava depois de uns segundos e podia sentir olhares se fixarem na minha mudança repentina de humor, mesmo que ninguém me olhasse.

E finalmente fui atendida. Engoli tudo de uma vez, mas sabia que nenhuma daquelas bebidas era forte o bastante para mim. Por que uma menor de idade não pode ser bem satisfeita? Por que aquele garçom de merda se achava mais másculo ou capaz do que eu? Inaceitável. Da próxima vez que se meterem com Samantha Puckett, eu... Eu... Bom, eu estava bêbada. Eu estava tão bêbada que quase fui carregada pra fora dali.

[...]

Segurei firme o sobretudo que ia até um pouco acima dos meus joelhos e passei a língua no meu lábio superior. Não havia ninguém além de mim naquele lugar e os antigos "amiguinhos" da Carly garantiram que era naquele beco onde provavelmente eu poderia encontrar o Paul. Mas era só eu. Eu no nada. O vento frio e o clima instável me faziam pensar em dar meia volta, mas ouvi algum ruído de longe e pude enxergar uma possibilidade de alguém estar ali. Estava tarde, onze horas da noite. E tudo que eu tinha comigo era um tipo de alicate inútil que mal servia para machucar pessoas. Ficaria tudo bem? Sim, ficaria.

Respire. Respire. Respire.

— Quem está aí? — eu perguntei. Escutei uma voz dizer algo como "já vou" nos fundos de um tipo de casa, cômodo, ou sei lá. Era uma voz grossa e firme.

Eu tinha certeza de que já tinha ouvido aquela mesma voz antes, em algum momento da minha existência. Vi a sombra se aproximar e senti meu coração bater forte e minhas mãos suarem frio.

— Sam? O que está fazendo aqui?

Olhos verdes e cabelos castanho-avermelhados cacheados, em uma figura magrela e desleixada. Tudo isso na calça jeans, camisa e jaqueta de couro surrados.

Derick. Não podia ser o Derick.

— Nada com relação a você. — Suspirei. — Vim falar com o Paul.

— Então, Samantha, você não tem mesmo o que dizer depois de matar a sua própria... — ele nem pôde terminar. Ele não tinha provas e sabia que tudo se complicaria ainda mais.

Derick era próximo de Grace. Ela costumava viver sozinha até que meus primos fossem visitá-la e, quase sempre, Derick estava lá com ela. Ela o considerava muito e ele era um dos seus "favoritos", diferente de mim. E, sobre nós... Nós só nos odiávamos. Éramos quase como inimigos mortais. Eu não queria. Eu queria me aproximar e talvez até conhecê-lo melhor do que eu conhecia, mas ia contra o seu ego.

Eu era só uma órfã abandonada.

— Chame o Paul, só isso. Eu e ele é que temos coisas sérias a conversar.

— O que você é do Paul?

— Não interessa.

Respire. Respire. Respire.

— Vou descobrir qual é a sua, Puckett.

— Boa sorte. — Sorri ironicamente e ele virou de costas, com raiva, gritando pelo nome do "outro".

Criminoso. Otário. Filha da puta. Ou, quem sabe, nada além de Paul. Preferia chamá-lo só de Paul por enquanto. Vi outra sombra se aproximar pelas paredes do beco e, dessa vez, eu não sabia quem era, mesmo que já pudesse deduzir. Nunca nos encontramos antes daquela noite, e o idiota realmente soava como decente. Marginal... Um marginal fingido.

Era mesmo um marginal escondido numa roupinha de filhinho da mamãe... Seus cabelos eram milimetricamente arrumados e quase que totalmente negros.

— O que você quer? — Ele chegou todo confiante e lançou as palavras com desdém.

Nos encaramos profundamente e ele me olhou de cima a baixo, se aproximou, me puxou pra perto e eu, de acordo com meus planos, deixei que ele fantasiasse tudo que queria comigo. Senti aquele bafo horrível no meu ouvido perguntando, novamente, o que é que eu queria com ele e seus amiguinhos imbecis naquele horário tão restrito, mas eu não respondi nada e deixei que se aproveitasse do momento. O enganei. Não fui doce, nem bruta. Fiquei calada como a noite.

E, bem, segundos depois, eu me inclinei para tocar seus lábios e ele cedeu, deslizando suas mãos para meu corpo nas áreas mais suaves — o idiota estava mesmo acreditando que aquilo surtia algum efeito sobre mim. E foi quando eu recuei e, num único golpe, fiz com que ele se curvasse de dor. Investi na sua "área" mais sensível, como recompensa. E ri gostosamente.

Depois, o ataquei com as piores palavras. Sabia exatamente como um "tipo" daqueles se revoltaria.

— O que é que você pensa de mim? — eu comecei. — Não sou dessas que vêm aqui te procurar por sexo.

— O QUE VOCÊ QUER? — Podia ver a fúria em seus olhos. Não tive medo porque ele já tinha consciência do que eu era capaz. Seria capaz de tudo por respostas.

— Eu só quero argumentos.

— Quem é você?

Silêncio.

— Sou amiga de uma das suas... Vejamos... Se lembra da Carly? — Paul engoliu seco. — ESTOU PERGUNTANDO SE VOCÊ LEMBRA DA SUA NAMORADA, INFELIZ!

— Quem?

Eu o encarei outra vez, e disse diretamente:

— Você vai pagar caro. Vai pagar caro por ter estuprado minha melhor amiga.

— Ninguém mandou aquela patricinha se meter comigo. Ela me ameaçou e eu... — A frase permaneceu ausente de término, porque em seguida veio o tapa. O tapa que deixou até marcas naquela cara pálida.

E quando ele pensava em retribuir a agressão, Derick impediu, segurando o braço de Paul firmemente, e em seguida murmurou num tom quase inaudível que sabia exatamente como se vingar de mim e com quê. Eu hesitei. Os dois trouxeram outros amiguinhos que tentaram me arrastar pra dentro daquela espelunca, e por muito tempo eu relutei. Eu gritava alto e nenhum deles parecia se preocupar com isso, na verdade.

Fechei os olhos e me rendi.

Quando abri meus olhos novamente novamente, Derick acendeu a vela.

Meu corpo começou a ir contra meu pensamento, outra vez, e eu precisava sair dali. Era impossível. Me trancaram no banheiro e apagaram as luzes, e não haveria outro jeito senão fechar meus olhos, porque eu realmente não poderia reagir. Eu mal tinha forças para assoprar aquela vela e mal podia olhá-la e sentir medo, porque conforme o medo aumentava tudo piorava ainda mais. As lágrimas iam caindo e eu não conseguia, pela primeira vez, me livrar das cordas, o que me fez chorar alto. Muito alto. Alto o suficiente para que todos ouvissem.

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... E não era exagero, só trauma. Só distúrbio mental.

Eu podia ouvir todos rindo dos meus prantos.

Lembrei de quando tinha visto o fogo pela primeira vez — de como o achava inofensivo. De como eu assoprava as velas do meu aniversário exatamente do jeito que uma criança normal faz. Me lembrei de quando minha mãe sussurrou um "está tudo bem" e seu coração, horas depois, parou de bater. E me lembrei de quando vi meus pais juntos pela última vez, sem compreender que aquela seria, de fato, a última vez. E, de fato, não houve outra.

As lembranças do incêndio vinham detalhadas como eu jamais tinha sentido em uns quatro anos. Lembrava de quando despertei do sono ao ouvir um objeto se quebrar no andar de baixo e desci as escadas de ferro, vendo a casa completamente cinza por causa da fumaça, minhas mãos inocentes segurando a parte do corrimão que ainda estava intacta. Lembrava do momento em que chamava o nome dos meus pais e quase não conseguia ficar de pé, porque meus pés estavam descalços e doíam muito. Eu não queria chorar, mas eles arderam tanto que eu precisei sair correndo, o que mais tarde originou algumas feridas pelo meu corpo. Eram queimaduras que acabavam não ardendo tanto quando contrastavam com a tamanha saudade que eu sentia do passado, das minhas bonecas, dos meus pais. Meus pais. Meus pais que esqueceram de si mesmos no momento em que me viram em perigo. O toque desesperado que eu senti, como se algo estivesse errado, como se eu não pudesse, de maneira alguma, estar ali. E os braços me levaram o quão rápido se pode dizer adeus.

Meu pai. Ele estava me dizendo adeus no momento em que me salvou, e eu mal sabia interpretá-lo.

As coisas em minha mente, dentro daquele banheiro, não seguiam uma ordem cronológica. Eu precisava encontrar uma forma de me ferir, ou então não viveria. O meu coração apertava a cada segundo e meus gritos eram contínuos e muito altos. Eu criei um novo pavor do fogo, ainda maior, quando soube que não havia outro jeito.

Nenhum outro jeito, senão encará-lo.