Expresso

Capítulo 4


Bati com as mãos frias na porta. Uma batida leve, que logo se fez ouvir uma voz rouca de dentro do quarto me deixando entrar. Então assim o fiz, apertando os olhos para enxergar melhor no escuro. Olhei o relógio digital em cima da mesa de cabeceira, constando exatas 3:30 da manhã. Desviei das bagunças espalhadas e papéis jogados no chão, sentindo com os pés nus o macio carpete. A parede esverdeada do quarto estava úmida e fria, dava para ver o contorno dos tijolos debaixo.

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A luz da lua iluminava por entre a persiana, suja e amarelada. Iluminava seu o tórax magro, sentado de mal jeito sozinho na cama. Sua cabeça estava baixa, e suas pernas cruzadas. Sentei-me no colchão, fazendo o ranger da cama velha quebrar o silêncio. Eu estava de lado pra ele, mas próximo o suficiente para ouvir sua respiração pesada.

Ele então, esticou o pescoço e encostou a cabeça no meu ombro. Nos seus cabelos escuros bagunçados eu fiz um carinho, logo depois passando a ponta dos dedos pela sua bochecha.

Não faz muito tempo que chegamos na mesma altura. Nossos ombros agora se alinham. Antes,ele era um pouco mais alto, um pouco melhor com as notas na escola, um pouco mais amado por nossa mãe. Eu era o filho apagado, sempre fui. Sei que muitas pessoas que estão na mesma situação que eu guardariam rancor por isso. Mas eu não, sempre o amei, cego. Eu era seu cúmplice nas noites que ele saia pela janela de casa sem ser visto. Eu escondia suas advertências do colégio. Eu estava lá quando ninguém mais aturava suas crises. Desviei meus pensamentos por um momento.

Ele umedeceu os lábios, e levantou a cabeça:

— Sentiu minha falta? – me perguntou, com um sorriso curto.

Seu sorriso me lembrou o sabor da chuva na qual brincávamos a tarde toda. Quando eu, frágil, me machucava todo, ele dava risada. Me fez chorar tantas vezes...

Ele, porém, foi o único que me incentivou a me aceitar. Depois que ele disse " Vá,conte para nossos pais" , permanecendo ao meu lado, segurando minha mão durante toda e revelação e o choque após a notícia, eu aprendi a me amar, e receber amor dos outros. Comparando o garoto e o rapaz de hoje em dia, apenas me resta perdoar tudo o que Marcos me fez passar.

— Não – menti.

—__________________________________________________

Acordei de manhã e percebi que acabei dormindo na cama dele. Sentei-me , coçando as costas. Eu não lembro de muita coisa, e não lembraria tão cedo pois ele já tinha saído para o trabalho.

O trabalho...

Olhei com os olhos ardidos de sono para o relógio, marcando algum horário que com toda certeza era depois das dez.

Enfiei uma bala de hortelã na boca com a mesma rapidez que vesti meus jeans e moletom, saindo de casa para pegar o ônibus.

Eu já imaginava a bronca que eu iria tomar, apertando os lábios ao tentar me distrair da dor sentida na cabeça. Juntei minhas mãos desprovidas de luvas e não prestei atenção no caminho por onde andava. Não prestei atenção aonde eu estava. Quando distraído, levantei os olhos, eu o vi.

Gritei por dentro. Berrei de vontade de simplesmente sumir.

Com os olhos amendoados e sorriso branco, ele falava no celular, com os braços na cintura. Gesticulava, falando alto. Algo sobre provas ou notas, minha audição não estava clara.

Queria ser um avestruz, pra simplesmente enfiar a cabeça na terra. Me escondi atrás do apoio de metal do ponto de ônibus, levando o polegar a boca, ao pensar que até minha respiração faria barulho. Ele então mora perto dali? Estaria saindo para o trabalho? Fiquei no silêncio com um barulho interno me martelando ao imaginar as infinitas possibilidades. De jeito algum que eu poderia pegar algum ônibus com ele ali. Estava bem na frente dos bancos, sentado, a algum metro de distância de mim. Eu sentia seu perfume. Uma mistura de azedo com charme líquido.

Observando de fora a situação, eu poderia muito bem parecer um maníaco, escondido nas costas dele. Olhei em volta, com as bochechas pegando fogo. Só tinha nós e uma velhinha, mais ao longe.

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Ele desligou o celular, o guardando no bolso. Era um modelo bem velho, ainda com botões. Sorri, imaginando a sequência de números que eu sonhava em anotar na minha agenda... Imagine, ligar para ele! Peguei-me imaginando ligar todas as noites e todas as manhãs, só para começar o dia ouvindo sua voz.

Falando em celular...tive uma imensa sorte de bem nesse momento, com a neve criando um silêncio sepulcral entre nós dois e nenhum maldito carro na rua para disfarçar, meu celular recebeu uma mensagem. Fez um barulhinho bonitinho, bem sonoro. Bem mesmo. Alto o suficiente para fazer eu me contorcer inteiro e sentir vontade de vomitar. Alto o suficiente para ele levar um susto, virando-se pra trás.

Não sei explicar muito bem o que aconteceu, mas eu entrei num modo de defesa tão desengonçado que acabei tropeçando ao tentar sair de trás dali, caindo com tudo no chão. Obrigada Deus, por possibilitar a ele a oportunidade de ver tudo de camarote. Ouvi a pancada que meu corpo fez. Senti os nervos do meu joelho reclamarem da minha estupidez. Ouvi aquela risada maravilhosa.

Tá, não era tão maravilhosa quando o motivo era unicamente eu. O gosto da neve misturada com o cimento da calçada não era nada agradável, então rapidamente eu ergui meu torso e lutei contra meu pé doendo, me levantando. Sentei-me, sentindo a bunda/calça molhadas, e óbvio que geladas. Eu estava de costas para ele, que tentava abafar o riso com as mãos. Apalpei o bolso da calça atrás do celular. Mensagem de... Ruby.

Em caps lock. E mutos emoticons bravos.

MERDA, EU ESTAVA ATRASADO.

MUITO ATRASADO.

Me levantei tropicando no ar, agitadamente olhando em volta. Estreitei os olhos em busca de um ônibus. Quase que me esqueci dele, até que:

Ah! É você! – ele se levantou, rapidamente surgindo ao meu lado. Rapidamente demais.

Dei um pulo para trás, levantando a cabeça para olhar para ele.

— Não vai me cumprimentar? – Ele me perguntou. Sorria, com os braços abertos na minha direção.

Eu tremia até a base, sem reação.

— O-oi... – respondi-lhe, corado.