Estrela da Tarde

Compromisso


Eu sabia que ainda estava sorrindo antes mesmo de abrir os olhos. Suspirei, sentindo a pulsação acelerar à medida em que minha memória reacendia e rolei na cama, escondendo o rosto com o travesseiro na tentativa de retornar para a inconsciência. Não queria despertar. Tinha medo de me deparar com a realidade e descobrir da maneira mais cruel que tudo não passara de um sonho.

Um sonho... o mais lindo de todos.

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Toquei meus lábios, relembrando a sensação; não haviam palavras adequadas ou fortes o suficiente para explicá-la. Eu nunca havia sentido nada parecido em um beijo. Será que isso era consequência da meia-vida, do aumento das emoções que vem junto com o vampirismo? Ou simplesmente era uma reação natural para o encontro de duas metades em um todo? Não havia resposta, desse fato eu estava ciente. Minha única certeza naquele instante era que meu coração já não me pertencia – de que por toda a eternidade, até o fim dos dias, ele seria de Seth.

Seth. Meu Seth.

Pensar no garoto-lobo fez com que eu me sentasse, acordando para a manhã de sábado já ansiosa para vê-lo outra vez. A chuva na janela não ia além de uma fina garoa e previ que até a hora do almoço não passaria de uma neblina, então decidi por visita-lo pela tarde – assim, não pareceria tão desesperada. Para me distrair até lá, decidi por ocupar o tempo livre com dança – vesti a meia cor de rosa, um collant preto de mangas compridas e as sapatilhas em velocidade recorde, descendo as escadas para o café da manhã enquanto prendia o cabelo.

Encontrei Esme na cozinha, revirando uma omelete de queijo na frigideira, determinada no esforço de me compor uma farta refeição. Havia de tudo na mesa; torradas açucaradas, pães recheados com parmesão, donuts com creme, frutas vermelhas frescas, ovos Benedict com bacon, tarteletes de limão, suco de laranja... Culpa e remorso se afundaram no meu peito aos poucos; ela só estava se dando a esse trabalho porque acreditava que precisava me compensar, que a minha partida de Forks se devia a algo que me faltara por parte de Cullen – como se não fora apenas a consequência de meus problemas se voltando contra mim. Vi-me de mãos atadas, sem ideia do que fazer para tirar esse pensamento horrível da cabeça dela.

— Bom dia, mãe – cumprimentei-a com um beijo na bochecha. – O cheiro está maravilhoso.

Esme não se virou, mas reparei que seu sorriso, em geral ameno, se alargou até mostrar os dentes. Havia uma clara intenção de resposta quando ela me girou a cabeça, a boca entreaberta, todavia sua voz se abafou ao focalizar meu rosto. Os olhos dourados se estreitaram, apesar do sorriso ter permanecido igual conforme me analisava, identificando o brilho nos olhos, o rubor acentuado, a expressão iluminada. Vi por sua mente o quanto cada detalhe era gritante e tentei disfarçar me sentando defronte à mesa, bastante trivial ao assaltar uma torrada açucarada da cestinha.

Ela piscou para se recompor, me servindo a omelete e um frapê de morango.

— É melhor que esteja, mocinha – advertiu, procurando compor uma seriedade no rosto de coração –, pois não quero ver sobrar nem migalhas nesta mesa.

— Seu desejo é uma ordem. – E lhe bati continência antes da primeira garfada.

Não demorou muito para que me encurralassem. Alice foi a primeira; sentou à minha direita e apoiou o queixo sobre os dedos cruzados, fitando-me com seu sorrisinho amolado de fada. Emmett apareceu logo em seguida, sentando à esquerda com uma expressão obscena. Edward foi a cartada final, segurando meus ombros como se estivesse fazendo massagem, mas na realidade só estava me impedindo de fugir. Revirei os olhos no que Jasper parou, encostando casualmente no batente com a sobrancelha arqueada, entretanto terminei de comer tudo bem devagar, sabendo que minha demora iria torturá-los mais.

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— Pessoal – comecei, degustando de um último longo gole do frapê –, se a pretensão de vocês é serem discretos, creio que não está dando certo.

Esme reprimiu uma risada e Emmett se debruçou mais na minha direção. Eu apenas o vira concentrado dessa forma jogando aquelas complicadas partidas de xadrez de oito tabuleiros com Jasper.

— Desembucha – cobrou.

Pisquei uma vez para ele, docemente:

— Perdão, do que está falando?

— Não se faça de boba, Anna, isso não combina com você – censurou Alice. – Ande, não aguento mais o suspense!

— Até eu estou curioso. – Jasper arrastou a cadeira do lado oposto da mesa e se acomodou com um meio sorriso intrigado. – Você criou uma espécie de campo empático enquanto dormia que fez todo mundo em um raio de cinquenta metros experimentar suas emoções. – E me apontou o indicador, categórico. – Você está apaixonada.

Minhas feições se enrijeceram na tentativa de impedir o calor que me subiu o pescoço. Não funcionou. Não me senti irritada; só não os queria se intrometendo nos meus assuntos particulares.

— Enxeridos – sibilei, desprendendo-me das mãos de Edward como se batesse poeira dos ombros. – Com licença, vou treinar um pouco. – E me levantei, esperando que fosse suficiente para um ponto final na conversa.

Escutei-os se debandar um a um – sendo que Edward foi o último – segundos depois de eu levitar a louça para a pia, usando de meus truques para deixar a cozinha limpa e organizada. Esme não tentou me impedir; ela percebeu que realizar essas pequenas tarefas cotidianas me ajudavam a espairecer e simultaneamente mantinha minha telecinese incisiva. Inclinando-se, ela me tocou com um amável beijo na testa.

Aprovo a sua escolha, querida, pensou. Vocês fazem um lindo par.

Mãe, está me deixando constrangida, repliquei, encolhendo os ombros.

Esme riu baixinho. Não ligue para seus irmãos, é a maneira deles de demostrarem que se importam. Era a primeira vez que qualquer pessoa ligava eles à mim com esse grau de parentesco – e isso me agradava.

Não havia ninguém além de Alice na sala de estar quando me aproximei do corrimão para o alongamento – cada um foi para um de seus inúmeros passatempos e ela foi a única que permaneceu ali, no canto junto ao seu computador, trabalhando em um conceito para o guarda-roupa de primavera. Emmett e Jasper estavam entretidos na elaboração um novo esporte; Rosalie estava dando uma calibrada no motor da Ferrari de Bella, a pedido de Edward, e Esme vistoriava um conjunto de plantas para um projeto de restauração de uma igreja antiga.

Respirei fundo à medida em que esticava meus músculos para o alto, procurando relaxar apesar de saber que não conseguiria conter a euforia por muito tempo – e precisamente por essa razão não culpei os Cullen por estarem tão interessados. Acabei me delongando mais do que o necessário no aquecimento e no que comecei a dançar de fato, optei por uma composição enérgica de execução mais atribulada – Sinfonia nº 4, de Mendelssohn. Não era propriamente um ballet, por certo, mas eu sabia que me tomaria muita concentração tanto para tocá-la quanto para desenvolver uma coreografia decente. Ergui os braços em um arco e permiti que meus pés seguissem por instinto o espírito livre da melodia, desligando-me do ambiente ao redor e de mim mesma na proporção em que me conectava de corpo e alma com o som do piano. Somente me tornei consciente do mundo de novo, desatando-me do torpor, quando a sinfonia seguiu para o con moto moderato e as mãos de alguém se apertaram em minha cintura, conduzindo os passos para uma espécie de valsa.

Resmunguei baixo em protesto. Desista, Ed, retruquei, eu não vou dizer nada.

Edward me içou no ar antes de me girar de frente para ele; sua expressão era de um divertimento sarcástico. E o que acha que eu disse aos outros? Bem, não importa. Você está esfuziante de felicidade, e isso já me basta.

Comprimi os lábios, desconfiada. A que devo o prazer dessa gentileza?

Ele deu de ombros. Talvez ao fato de que, cedo ou tarde, vou ficar sabendo do ocorrido.

Bom ponto, cedi. Onde estão Bella e Renesmee?

Foi o tempo de eu questionar que o som de passos silenciosos se aproximando pelos fundos da mansão se destacaram acima do chuvisco. Feito um brando sopro de inverno, Bella adentrou graciosamente na sala com Renesmee a tiracolo, uma visão que me fez estacar no lugar. O tilintar das teclas do piano travou. Renesmee estava vestida de forma idêntica a mim, desde o coque no cabelo até as sapatilhas, e havia um brilho de expectativa em seu olhar que eu conhecia perfeitamente bem. Desatei a rir feito boba para não chorar de emoção – ninguém nunca me tomou como exemplo para nada antes.

— Você está uma preciosidade, princesinha – elogiei, correndo para ela e a trazendo para o colo.

Sua mão tocou meu rosto, escondendo a covinha que eu tinha na bochecha esquerda – a mesma que se replicava na dela.

— Pode me ensinar a dançar tão bonito quanto você, tia Anna? – pediu, e de repente a sala estava atochada; Esme desceu as escadas e Rosalie apareceu do lado de Alice já com uma câmera nas mãos.

— Ora, mas é claro que não! – Fiz a pose ranzinza de Edward, recebendo dele um cutucão como castigo. Os olhos de chocolate de Renesmee se ampliaram e lhe fiz cocegas, caindo na gargalhada. – Você será ainda melhor do que eu. Quer começar com as aulas agora?

Ela soltou o ar, aliviada por não passar de uma brincadeira, e fez que sim, entusiasmada. As teclas do piano voltaram a deslizar, mas dessa vez em uma melodia suave e sem nome, criando um tênue plano de fundo enquanto eu devolvia Renesmee ao chão e iniciava a lição pelo alongamento e em seguida, pelos passos básicos de ballet. Rosalie preparou a câmera e os demais se amontoaram próximo ao sofá, assimilando cada pormenor como a um espetáculo.

Eu nunca tinha ensinado alguém a dançar na vida, mas tinha certeza de que não deveria ser tão fácil. Renesmee tinha uma desenvoltura impressionante em pegar os movimentos e decorar seus nomes em francês, habilidade que talvez nem adultos teriam – na metade do dia ela já sabia o que, na minha infância humana, eu demorei quase um ano para aprender. Ao final, a pequena estava tão ávida por mais que precisei criar uma coreografia simples e rápida para que ela se desse por satisfeita – acabei escolhendo usar Für Elise, de Beethoven, como base. Não demorou para que ela dominasse; logo estávamos reproduzindo a sequência em harmonia, com os cliques febris da câmera de Rosalie nos acompanhando.

Havia acabado de iniciar com a última repetição quando o ronco de um motor conhecido vindo da rodovia nos alcançou – automaticamente meu coração tropeçou em seus batimentos, pois a quilômetros eu poderia distinguir o barulho daquele Ford. Não me desviei da melodia, entretanto; prossegui com os pés firmes e os braços suspensos, apesar do piano ter falhado uma nota. Edward e Alice trocaram um olhar conspiratório e de súbito Emmett estava apoiado sobre o guarda-corpo acima de nós, o queixo apoiado sobre os braços.

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Até Renesmee reparou a incomum mudança de comportamento ao redor, trocando uma perna pela outra e invertendo um dos passos.

— Foco, Renesmee – sinalizei.

— Você não está olhando!

— Estou sim – rebati. – Com os olhos do idiota do seu pai. Agora, focada na coreografia. E nada de me fazer caretas!

Minha pulsação ficou verdadeiramente escandalosa no que o carro estacionou diante da entrada e a porta se abriu – evitei ao máximo espiar, ciente de que perderia o fio da meada. No cessar da música, Renesmee e eu fizemos uma reverência e cumprimentamos a plateia.

— Pratique os alongamentos com frequência, sim? – instruí a ela, dando um beijo na testa.

Tentei transparecer naturalidade à medida que caminhava até a porta de vidro, porém minha fachada foi por terra no instante em que meus olhos se encontraram com os de Seth. Hesitei um passo. A primeira coisa que constatei foi que ele estava usando roupas sociais, embora tivesse evidentemente se irritado e desistido de pôr a gravata. A segunda foi o vistoso buquê de rosas vermelhas que trazia nas mãos.

Muito vagamente escutei a sala esvaziando e pouco me importei em estragar as sapatilhas enquanto escancarava a porta e descia os degraus molhados, somente queria diminuir a distância entre nós. Quando ficamos frente a frente, ele me passou o buquê sem dizer uma palavra, segurando um meio sorriso.

— São lindas – falei, escondendo o rosto em brasas nas pétalas e inalando o perfume. – Como adivinhou que são as minhas favoritas?

Seth separou os lábios para responder, mas parou e estreitou os olhos:

— Não adivinhei. Elas só me lembram muito você. – Ele apertou uma folha entre os dedos. – Verde, como seus olhos. – Em seguida, deslizou o indicador pelas pétalas. – Vermelho, do seu cabelo. – Sua mão livre afagou meu rosto, o polegar delineando meus lábios. – Delicada e suave, como sua pele. – E, por fim, Seth tocou um espinho, abrindo um largo sorriso malicioso. – E afiada, como sua língua.

Ri baixinho e fiquei na ponta dos pés conforme me inclinava para ele, sôfrega por um outro beijo que me derretesse os ossos, todavia senti olhos fuzilando minhas costas. Nem precisei olhar para saber que meus irmãos estavam se amontoando na sacada para bisbilhotar. Recuei, impaciente e aborrecida.

— Vamos a algum lugar? – indaguei, analisando seu terno preto com um interesse mal disfarçado. Seth estava lindo de morrer.

— Por favor, não leia meus pensamentos – suplicou, com as mãos espalmadas no alto. – É um presente.

Dei de ombros.

— Está bem, vou lhe dar o elemento-surpresa. Devo me vestir a rigor?

— Por mim, poderia ir do jeitinho que está. – Seu olhar percorreu meu corpo e, reagindo a devaneios inapropriados que chisparam em sua cabeça, Edward pigarreou no segundo andar.

Fingi não ter escutado.

— Quinze minutos, garoto-lobo – estipulei, voltando para dentro da mansão.

Um vaso com água me esperava na mesa de cabeceira quando entrei no meu quarto junto com um soberbo vestido verde-esmeralda estirado pela cama – e para a minha surpresa não era o da primeira visão que tive, uma constatação que me levou a crer que Alice devia ter em estoque um exército de vestidos me esperando para serem usados. A peça era de uma beleza bárbara; de alças, o discreto decote em V era adornado por renda e o cruzado nas costas se afunilava na base da coluna, permitindo que o longo comprimento em recorte de seda e chiffon fosse fluido e esvoaçante.

Tomei uma ducha rápida e fiz uma maquiagem bem leve nos olhos antes de colocar o vestido, deixando meus cachos caírem soltos nos ombros como toque final. Sorri para meu reflexo no espelho; parecia uma ninfa da floresta saindo para um passeio em final de tarde.

Seth perdeu a voz ao me ver aparecer no alto da escadaria; gaguejou meia dúzia de palavras antes de conseguir algo coerente:

— Você está perfeita, Anna. – Engoliu em seco e sorriu. – Bom, mais do que de costume. Não, não se mova, me deixe olhar mais um pouco para você. – Vi que seus dedos tamborilaram no lado do corpo e entendi que estava memorizando para poder desenhar depois.

Ainda que fosse um pedido bem fofo, tive que desconsiderar.

— Podemos ir? – Desci as escadas com pressa, com o salto das sandálias de tiras fazendo um tac-tac irritante. – Honestamente, não quero abrir brechas para Eddie e os outros. Estão parecendo uma trupe de cheerleaders fofoqueiras.

Ele compreendeu mais depressa do que eu esperava. Riu e balançou a cabeça negativamente, como se já devesse ter previsto isso.

— Fiquem tranquilos, vou cuidar muito bem dela! – avisou e eu praticamente o arrastei porta afora, inquieta para me livrar daquela situação constrangedora e que poderia ficar pior a qualquer momento, pelo que dependesse de meus irmãos.

Esperei que estivéssemos afastados o suficiente de casa, já na rodovia rumo à La Push, para que eu pudesse disparar com as minhas dúvidas em paz. A neblina, que embotava a paisagem ao redor, se prendia ao carro feito tentáculos e tive a vaga impressão de estar viajando no tempo.

— Sem querer estragar seus planos, Seth, mas não está me levando em um baile ou algo do gênero, não é? – Atirei logo de cara, sem paciência para ser sorrateira.

Ele vergou a sobrancelha com uma expressão estranha nos olhos:

— Bem, nunca ouvi falar de bailes que comecem às... – consultou o relógio que eu lhe dei no pulso e sorri –...duas da tarde. Por que raios chegou a essa conclusão?

— Tenho a impressão de já ter visto isso antes. – Enrolei um dedo entre os cachos, não pretendendo dar explicações. – Teve notícias do Kurt?

Um sorriso irônico se esticou entre suas bochechas.

— Aquele malandro não mostrou as fuças desde que o vimos dançando com a Lívia. – Ele me encarou de soslaio. – Consegue me dizer onde estão os pombinhos?

— É uma informação contraindicada para menores. – Estremeci, bloqueando a visão. – Como se fizesse diferença, Kurt vai lhe contar os mínimos detalhes pela tarde.

Por um ínfimo segundo, Seth perdeu o controle do Ford.

— Nossa. Caramba, sério que eles...? – Sem palavras, Seth leu meu olhar e gargalhou. – Quem diria, suas dicas se saíram melhor que o esperado.

— Na verdade, se soubesse o que eu sei, veria que era justamente o esperado... – murmurei à meia-voz e Seth me franziu o cenho, questionando. – Esqueça. – Preferiria mesmo que ele continuasse ingênuo; fazia parte de seu charme.

Achei suspeito que, ao ultrapassarmos os limites de La Push, Seth fosse na direção contrária à de sua casa e fiquei realmente curiosa quando estacionamos no lado do mesmo galpão em que acontecera a festa na noite anterior – estava me controlando para não remexer em seus pensamentos no que ele me abriu a porta do Ford e me puxou pela mão até a entrada.

— Que alívio saber que não estamos invadindo – brinquei, vendo-o usar uma chave grande e enferrujada para destrancar o cadeado velho.

— Digamos que conheço um cara, que conhece um cara... Agora, feche os olhos. – Notando minha confusão, ele mordeu o lábio, perspicaz. – Surpresas devem ser tratadas como surpresas.

Sem argumentos para contrariá-lo – pois, no fim das contas, Seth basicamente estava usando minhas próprias palavras contra mim –, obedeci. Prontamente senti sua palma cobrir meus olhos, a ponta de seus dedos me buscando pela cintura antes de conduzir. Um arrepio tentador trepidou meu corpo no contato de pele contra pele e percebi que suas mãos em mim já não eram exatamente inofensivas – havia uma interessante segunda intenção por detrás. Talvez não tão ingênuo assim, afinal, pensei.

Uma vez dentro do ambiente, o que captei primeiro foram os aromas. Entre a inconfundível fragrância de madeira molhada, havia a lavanda de produtos de limpeza misturado à poeira, flores silvestres, tudo predominado pelo apetitoso cheiro de carne e molho de tomate. Todavia, abaixo disso, ainda tinha algo a mais – um fraco odor camuflado sem sucesso.

Farejei duas vezes, sendo categórica no veredito:

— Por que tem o dedo, e o cheiro, dos seus irmãos nessa história? – Reconheci o rastro peculiar dos lobisomens, sendo o de Leah o mais marcante.

— Precisei de ajuda para arrumar tudo e eles se ofereceram – Seth banalizou, movendo os ombros. – Espero que goste, meu anjo.

Inspirei no que suas mãos libertaram meus olhos. Próximo ao palco havia sido posta uma mesa redonda para uma refeição a dois. Um arranjo de flores brancas, amarelas e lilás estava centralizado entre os pratos cobertos e os talheres impecavelmente alinhados, a toalha de renda branca caindo pelas laterais. Apesar de ainda ser dia, eram velas acesas que atribuíam ao redor uma iluminação discreta – as nuvens densas e cinzentas no céu de fato criavam a ilusão de um princípio de noite. Um pouco além da mesa, havia um projetor de filmes antigos com toda a sua parafernália e um sofá voltado para o palco, com uma caixa cheia de rolos empoeirados se posicionando na lateral.

Sorri para a simplicidade da surpresa. Seth me conhecia bem; eu não poderia ter gostado mais.

— Muito romântico – aprovei, me aproximando da mesa. – Você cozinha?

Ele bufou:

— Convivo em uma casa com duas mulheres bastante geniosas. – E me puxou a cadeira. – Quando elas brigam, quem você acha que lida com as panelas?

Assenti, tendo que concordar com seu raciocínio – as brigas entre Leah e Sue no seu arsenal de lembranças faziam a Guerra Civil Americana parecer uma luta de travesseiros. Aguardei-o se sentar para enfim destampar o prato e experimentar a comida, certa de que ele iria querer minha opinião. Achei a escolha dele para a refeição um tanto mordaz – pois espaguete com almôndegas e o cenário à volta parecia uma releitura de A Dama e o Vagabundo—, mas o macarrão não estava apenas apresentável; o sabor era tão bom que me fez revirar os olhos.

— Está delicioso. – Mordisquei uma bolinha de carne. – É a sua especialidade?

Não havia qualquer presunção quando me respondeu:

— Isso e o famoso peixe frito dos Clearwater. Fui o único a quem meu pai confiou essa receita secreta. – Ligeiramente melancólico, Seth se curvou e pegou duas latas de Coca no balde com gelo perto de seus pés. – Culinária era a nossa forma de aliviar o fogo cruzado entre a Leah e a minha mãe.

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— Sente muita falta dele, não é? – ponderei, ficando triste também.

Ele fez que sim, cabisbaixo. Seu dedo se demorou no lacre da lata de refrigerante.

— Às vezes acontece algo que eu gostaria de poder contar a ele e tenho que me lembrar que ele já não está aqui... Fica pior quando é uma coisa boa. – Do nada, um sorriso exultante venceu seu rosto. – Sabe, meu pai ia adorar conhecer você.

Fiz uma careta automática.

— Duvido muito, Seth. – Bebi um gole de Coca para limpar a garganta. – Harry Clearwater era conhecido por ser um membro do Conselho tão tradicional quanto o Velho Quil.

— É, aí você me pegou. Mas meu pai tinha um fraco com mulheres bonitas e teimosas – as sobrancelhas se levantaram, sugestivas –, uma fraqueza que com certeza eu herdei dele. Vivia matraqueando que ser um cavalheiro era meio caminho andado para um bom conquistador, que o segredo estava nos detalhes, que nem puxar a cadeira, abrir a porta... – E deu de ombros, dando fim à nostalgia. – Fico feliz que ele tenha me ensinado a ser educado.

Detive o garfo na metade do caminho.

— Ora, isso explica muita coisa. – Eu especulava a origem de seus bons modos desde o casamento de Emily e Sam e duvidava muito que alguém da idade de Seth ainda lesse livros de regras de etiqueta, pelo menos nesse século. Era bom ter a curiosidade saciada.

A tristeza nos olhos de ônix de Seth desapareceu no segundo em que uma conversa a respeito da festa emergiu, preenchendo o galpão com risos à medida que lembrávamos que das cenas bizarras que presenciamos depois que alguém apareceu com um barril de cerveja – pole dance no pilar, declarações de amor para objetos inanimados, uma competição de arroto que terminou em vômito e um levantamento de copo para o qual me desafiaram, mas eu neguei... Comemos devagar e só quando ele se convenceu de que eu não abriria o bico sobre o sumiço de Kurt e Lívia, foi que fomos para o sofá. Apaguei as velas com um sopro, uma a uma, ao que Seth ligava o projetor.

— O que vamos assistir? – quis saber quando me acomodei no sofá, debruçando-me sobre o encosto para fitá-lo se atrapalhando com a caixa. Secretamente, calculei se ele sabia mexer naquela coisa, mas ele parecia preciso em colocar cada peça em seu devido lugar.

— Encontrei vários rolos com clássicos na caixa, mas que tal... – E exibiu um rolo que encontrou no fundo. – Cantando na Chuva?

Senti-me iluminar por inteiro:

— Ótima escolha.

— Vou confiar em seu julgamento – Seth veio para meu lado, passando o braço musculoso e quente sobre meus ombros –, porque eu nunca assisti.

— Como você nunca...? – Meu queixo caiu de indignação. – Santo Deus, é o musical dos musicais, é como não assistir O Poderoso Chefão! – Agitei a cabeça negativamente. – Ah, temos que consertar esse erro. Sentado e quieto.

— Sim, senhora – riu e me beijou na têmpora.

O projetor irradiou luz e lançou sobre a parede acima do palco a imagem do animado trecho de abertura, nos silenciando com a música e logo nos primeiros minutos já senti os olhos de Seth sobre mim, me admirando enquanto eu batucava os dedos no braço do sofá em resposta ao som do violino e meus pés se moviam por instinto debaixo do tecido do vestido.

— Não vou nem perguntar se você dança sapateado – comentou, o abraço estreitando –, porque parece uma pergunta estúpida.

Reprimi um sorriso.

— E é um pouco estúpida.

Foi mais ou menos nessa hora que parei de prestar atenção no filme e fiquei absorvendo suas reações, encantada. Havia momentos em que seus olhos se arregalavam, que o sorriso se firmava, que o riso se escapava e que o toque em mim ficava mais delicado, mais suave.

À certa altura, contudo, Seth franziu o cenho e soltou o ar pela boca. Suas mãos ficaram úmidas de suor.

— Anna – sussurrou, um tanto tenso –, se a sua intenção é me distrair, meus parabéns, porque está funcionando.

— Desculpe. – Recuei. Nem havia me tocado, mas estava cantando junto ao seu pescoço, no pé da orelha. Ele me dispersava bem até demais. – É que é quase impossível não cantar essa música.

Seus olhos se viraram para mim, entretanto não eram os olhos de Seth – eram os olhos famintos do lobo ardendo sob a pele:

— E quem mandou parar? – redarguiu, a voz rouca me arrepiando.

O beijo veio com sabor de alívio, como se eu tivesse passado muito tempo provando de uma incômoda aflição e ela se calasse no antídoto de seus lábios. Suspirei de contentamento e o puxei pela gola da camisa ao mesmo tempo em que Seth se debruçava sobre mim, prendendo-me contra o sofá. Suas mãos obstinadas resvalavam pela superfície do vestido e, diante da minha mordida em seu lábio inferior, elas se tornaram quase indomáveis à medida que Seth cravava os dedos sobre minha pele, como se me reivindicasse para ele. Eu me sentia dele. Completamente.

Entrancei meus dedos entre seus cabelos negros e rebeldes quando sua boca correu para meu queixo, a língua quente em seguida traçando curvas até meu pescoço e gemi seu nome baixinho ao senti-lo repuxar a pele fina entre os dentes. Isso arrancou dele um som grave e profundo, que reverberou em calafrios gélidos na minha espinha, afugentados pelo calor de seu corpo unido ao meu.

Estávamos tão colados um ao outro e ainda assim não parecia o suficiente. Não me sentia satisfeita – a ganância era como veneno em minhas veias. Subi para seu colo e fechei sua cintura entre meus joelhos no exato instante em que seu antebraço enlaçou minhas costas, como se Seth pudesse prever meus movimentos. Os dedos gravavam minhas formas em suas digitais conforme me acariciavam e seu hálito era tão entorpecente que só consegui me desatar dele e clarear a mente quando a luz no projetor se apagou e o escuro caiu feito uma cortina.

Arfei, o peito subindo e descendo com a respiração densa:

— Acho que perdemos o final do filme.

— Podemos voltar o rolo do início – sugeriu igualmente ofegante, mas com um tom travesso. Seu polegar desenhava círculos na minha coxa.

— Ou... – escorreguei de volta para o sofá, as mãos alisando o vestido – ... quem sabe tentar assistir de verdade no próximo. – Parecia a coisa mais certa a se dizer; moças com a educação que eu tive não se atiram no colo de cavalheiros, sob quaisquer circunstâncias.

— Está bem – cedeu, embora não muito feliz. Um bico de desapontamento hilariante se instalou em seu rosto à medida que ele caminhou para o projetor, vasculhando a caixa. – Pode ser Os Sapatinhos Vermelhos?

Comprimi os olhos em fendas:

— Edward lhe passou uma lista dos filmes que mais gosto? – investiguei.

— Não, por quê?

— Esse é o nono no ranking— apontei em tom acusatório. – Tenho grande parte do figurino e um par de sapatilhas vermelhas de estimação. Até fui de Vicky Page em uma festa à fantasia nos anos 80.

Seth encaixou o rolo no projetor e se ajeitou novamente no sofá com um sorriso pretensioso.

— A bem da verdade, não foi difícil deduzir. Tem dança nele.

— Justo – concordei, calando-me com som da abertura do novo filme.

Não posso dizer com toda a certeza, mas a hora que se seguiu foi uma das mais difíceis de toda a minha existência. Procurei em vão me manter atenta à imagem na parede – sem a menor ideia do que estava vendo, apesar de já ter assistido Os Sapatinhos Vermelhos dezenas de vezes –, lutando contra meu corpo que insistia a todo minuto ir para mais perto de Seth. Chegou ao ponto de eu ter que me agarrar ao braço do sofá – notando com perturbação que ele estava fazendo o mesmo – e quando a tortura de me conter se tornou insuportável, desafivelei os sapatos e andei descalça até o palco, pausadamente e no ritmo da melodia dando passo seguido de passo.

Parei no meio do palco, interferindo na imagem do filme que se projetava sobre mim, porém isso não pareceu ter importância para Seth, que seguia cada ímpeto meu com olhos extasiados. Em sincronia com a protagonista do filme, deixei-me levar pela música que, a despeito de ser praticamente virginal, virava um paradoxo luxurioso em meu corpo. Seth ficou de pé e seus dedos tamborilaram outra vez, contudo não na ânsia de desenhar – o brilho cálido em seus olhos o delatava.

Ele colocou as mãos no bolso da calça, para refreá-las, e subiu as escadas do palco até ficarmos a centímetros um do outro:

— Você faz a bailarina do filme parecer uma pata desengonçada – murmurou, maravilhado.

Estranhamente, o elogio me fez corar. Desviei os olhos e a dança, antes provocativa, se tornou uma divagação sem rumo, feito um gracejo de criança. Sua mão capturou meu rosto, fazendo-me parar e nos seus olhos de obsidiana tantas emoções revoluteavam que não consegui nomeá-las.

— Eu amo você – disparou em um só fôlego. – Sabe disso, não sabe? Talvez eu esteja me precipitando, mas eu fui enfeitiçado desde a primeira vez que a vi virar uma pimentinha... – Seth riu, tocando meu rosto enrubescido e eu fiquei ainda mais carmesim. – Lembra? Sentada na beira do rio, usando uma camiseta velha minha... Não quero que se sinta pressionada, Anna. Seja por mim... Pelo imprinting... Pelas pessoas que já pensam que somos um casal... Ou qualquer outra coisa. Quero que fique comigo porque é o que você deseja. Quero que seja minha porque eu a conquistei.

Apoiei minha mão sobre seu coração furioso. Como ele ainda poderia ter dúvidas sobre meus sentimentos, depois de tudo?

— Sempre pertenci a você. Apenas demorei demais até perceber.

Seth então me beijou exasperado, com febre, com adoração, trazendo à boca tudo o que estava enclausurado em seus olhos. Minhas pernas tremeram, os ossos dissolvendo, e eu me encontrava a ponto de jogar os braços sobre seu pescoço quando ele interrompeu o beijo:

— Então... – Encostou a testa na minha. – Isso é um sim para o pior pedido de namoro da história? – sondou, ainda confuso, querendo reafirmar o compromisso.

Ri alto.

— Não sei mais o que poderia ser, seu bobo. – E o beijei, para selar enfaticamente minha palavra.