– Thiago, seu puto, cadê você? – Roger murmurou entredentes para o celular, abafando a voz com a mão para não chamar a atenção.

A sala de reuniões estava imersa num clima ameno de conversas rasas e risadas sem jeito. As pessoas se juntavam aqui e ali, comentando sobre o trabalho e outras banalidades. Victor estava trocando dicas de corda de guitarra com o cara do cigarro eletrônico, mas não parava de lançar olhares de relance para Roger.

– Você não ia até a esquina comprar um salgado? – Ele se virou para o fundo da sala, procurando fugir daqueles olhos penetrantes. – A porra da reunião começa em cinco minutos. Não acredito que você vai me deixar sozinho aqui quando estamos fazendo isso tudo por você!

Um bip do celular lhe indicou que tinha atingido o limite de tempo da mensagem de caixa postal. Maurício, o monitor do grupo, ergueu a cabeça em sua direção com a testa franzida. Roger lhe deu um sorriso amarelo e correu para uma das cadeiras mais afastadas do círculo que começava a se formar.

Passou a reunião inteira lá, fingindo ser uma das cadeiras de plástico branco. A única vez que desviou os olhos do painel de notificações foi para confirmar a suspeita de que estava sendo observado – os olhos de Victor pareciam arder sobre ele.

Thiago não voltou da padaria com ou sem salgado – se é que tinha ido até lá –, mesmo depois de Maurício ter dado a reunião da semana como encerrada.

Quando o grupo começou a se levantar batendo palmas, Roger subiu o capuz do moletom sobre seu cabelo crespo e fugiu para o hall do instituto. Puxou o celular do bolso na esperança de conseguir um sinal de vida de Thiago, mas tudo o que recebeu foi uma notificação rápida do percentual de bateria zerado.

– Que delícia – sua voz deixou transparecer toda a frustração que sentia.

– Pornô? – Alguém sussurrou rente à sua orelha.

Roger sobressaltou-se, com o capuz escorregando para seus ombros e o celular quase indo ao chão.

Victor estava perigosamente próximo a ele, com as mãos nos bolsos traseiros dos jeans e um sorriso matreiro nos lábios. Seu cabelo rebelde refletia a luz opaca do hall de entrada, assumindo um tom acastanhado.

Um burburinho animado vinha das escadas, precedendo um ou outro membro do grupo de apoio que se encaminhava para a saída. Os dois estavam praticamente sozinhos no hall, com a enorme imagem de pedra do anjo os olhando fixamente de seu pilar.

– Que foi? Não gosta de ser pego no flagra? – Victor levantou os ombros.

– Acho que ninguém gosta – Roger fechou o sobrecenho, recuperando-se. – Não que eu estivesse fazendo alguma coisa de errado.

– Claro que não. Eu não considero ver pornô em público como uma coisa errada – Victor deu uma risada anasalada.

Roger o encarou com certa repulsa, o que o fez se afastar. Revirando os olhos, ele seguiu direto para as portas duplas de vidro, recebendo o vento gélido da noite no rosto. Desejava que Thiago estivesse lá, para o fazer parecer menos sozinho e deslocado.

E falando em Thiago... Roger já estava a meio caminho do portão gradeado quando olhou para os carros na rua e percebeu que não tinha como ir embora. Sua carona era o amigo fujão – em cujo carro estava sua mochila com a carteira e a comodidade de poder pegar um táxi.

– Seu amigo te abandonou hoje? – Victor parou atrás dele, surpreendendo-o pela segunda vez, com um cigarro entre os dentes e um isqueiro na mão.

Roger o encarou com reprovação por alguns instantes, mas não achou que valia a pena esquentar a cabeça para dar lição de moral em um estranho petulante.

– É o que parece – ele checou o painel de notificações do celular uma última vez, e então desistiu.

A rua começava a ficar vazia com o pessoal do grupo deixando o instituto e voltando para casa. Roger definitivamente não queria ficar plantado lá, sozinho e com frio, esperando para ver se o espírito de camaradagem de Thiago o salvaria.

– Você sabe que ônibus passa na Vila Lavínia? – Ele guardou o celular no bolso e voltou-se para Victor.

Maurício passou pelos dois no portão, acenando apressadamente. O jardim ficou mais escuro quando as luzes do saguão se apagaram e o segurança pediu que eles saíssem. Roger deu um passo tímido e hesitante para fora, sentindo a ansiedade aflorar em seu peito. Ele não fazia a menor ideia de onde encontrar um ponto de ônibus no centro da cidade, ou de qual ônibus passava perto de seu condomínio. A única coisa que sabia era que Thiago estava terrivelmente ferrado em sua mão.

– Ônibus? – Victor o seguiu para a calçada, soltando uma baforada lenta. Sua sobrancelha direita fez um arco curioso. – Seu amigo não vai mesmo voltar para te pegar?

– Ao que tudo indica, não – Roger suspirou pesadamente, desviando os olhos para acompanhar o carro do monitor que descia o morro em direção à avenida.

Ao seu lado, Victor sacou um chaveiro e jogou o cigarro no chão para apagá-lo com a sola do coturno.

– Vem, eu te dou uma carona – ele girou os calcanhares e avançou para atravessar a rua.

Roger voltou a fitá-lo, levemente confuso. Victor andava em direção a um carro elegante e, por um segundo, pensou tê-lo julgado mal. Afinal de contas, talvez ele fosse um empresário despojado, ou um médico com estilo marcante, ou ainda... Mas não. Victor passou pelo carro para parar ao lado de uma moto preta enorme.

– E aí? Vai esperar seu amigo até semana que vem, ou vai me deixar te levar para casa? – Ele gritou do outro lado da rua, atraindo os olhares das poucas pessoas que cruzavam as calçadas.

Com um suspiro, Roger obrigou-se a caminhar até a moto monstruosa. Durante todos os quatro metros até lá, cogitou insistir na ideia do ônibus e não se envolver além do necessário com aquele tipo de homem. Porém, Victor poderia deixá-lo diretamente em frente ao condomínio, enquanto ele teria de descobrir em que ponto descer caso fosse embora de ônibus.

– Isso tem a ver com o idiota do meu amigo ter insinuado que eu estou a fim de você? – Roger quis saber.

Porém, sua voz saíra tão baixa que Victor nem se incomodara em voltar-se para ele.

– Você faz parte de uma gangue? – Roger conseguiu dizer depois de uma série de pigarros, tentando afirmar a voz e parecer menos patético. Franziu o cenho, reparando nas franjas de couro que pendiam do guidom da moto e no crânio de bode acima do farol.

– Faço – Victor deu de ombros. – Segura aí – lançou um capacete preto para Roger, colocando outro em sua própria cabeça.

– Qual o nome? – Roger esperou que ele se ajeitasse no banco para ocupar o lugar do carona. Sua voz assumira um tom vacilante assim que se dera conta de não saber onde colocar as mãos.

– Eu não revelo tudo no primeiro encontro, sinto muito – Victor riu, pisando no pedal e dando uma leve acelerada. – Já andou de moto antes?

– Em motos normais, sim.

– Oh, não fale assim da Carmelita – Victor acariciou o guidom da moto com uma voz melosa. – Ela é sensível.

– Isso tem nome?

Isso, meu caro, é o amor da minha vida – Victor ajeitou o capacete rapidamente e voltou a envolver o guidom entre os dedos. – Está segurando firme?

– Er... – Roger olhou para as próprias mãos, então para a Carmelita e depois para a descida íngreme do morro. – Acho que não.

Victor passou as mãos para trás, procurando as dele. Roger tentou desvencilhar-se quando entendeu a intenção do gesto, mas não conseguiu. Vagarosamente, suas mãos foram colocadas na cintura de Victor, acometidas por um leve tremor que ele juraria de pé junto ser por conta do frio.

– Não solte – o motoqueiro murmurou, finalmente dando a partida na moto.

Roger engoliu em seco ao ouvir o motor rugir alto sob os dois. Seus olhos se fecharam involuntariamente quando a moto começou a descida e suas mãos seguraram em Victor com força.

– Já está assustado? – O outro gargalhou.

O vento assobiava em seus ouvidos e cortava suas bochechas apesar do capacete. Estar numa moto era aterrorizante e libertador na mesma medida.

– Então, você quer mesmo ir para casa?

– Como assim?

Ele notou os ombros de Victor se levantando.

– Não sei. As pessoas costumam sair sexta à noite.

A moto acelerou para ultrapassar um ônibus e sair da avenida. Roger se esforçava para manter uma distância segura entre seu corpo e as costas de Victor – seus batimentos cardíacos estupidamente acelerados não podiam o entregar.

– Bom, eu não – ele murmurou, dando sinal de que não estava disposto a revelar muita coisa também. – E você disse que me levaria para casa.

Victor deu um muxoxo brincalhão – pelo menos Roger interpretara assim –, virando uma esquina e depois outra.

– Pensei que você iria me surpreender, Roger. Mas você é exatamente o que parece ser – seu capacete meneou negativamente. – Vai me dizendo o caminho, tudo bem?

Roger balançou a cabeça afirmativamente, mas percebeu que Victor não podia ver o sinal.

– Tudo bem.

Ele precisou forçar a voz para ser ouvido algumas vezes, mas Carmelita o deixou são e salvo no lugar certo. Victor subiu com ela na calçada, mantendo-a ligada enquanto Roger descia e retirava o capacete.

– Tem certeza de que quer ficar em casa? Está frio, mas nada que uma boa dose de Daniels não resolva – Victor ergueu a viseira do capacete para encará-lo. As pontas rebeldes de seu cabelo escapavam para fora, balançando sobre o colarinho da jaqueta.

– Lamento decepcioná-lo – Roger usou de todo o sarcasmo disponível em sua língua, estendendo-lhe o capacete de volta. – Obrigado pela carona e desculpe o incômodo.

Travando uma luta interna entre o bom-senso e a vontade instintiva de sair correndo até o portão do condomínio, ele afastou-se da moto com cautela.

– Te vejo na semana que vem? – Victor praticamente gritou atrás dele.

Quando o porteiro destravou o portão, Roger ainda permitiu-se virar uma última vez para trás e encarar a fenda no capacete escuro. O vapor do escapamento de Carmelita se misturava à névoa da noite em nuvens espessas. A densidade do ronco do motor parecia indicar que o motoqueiro esperava uma resposta positiva – como se a carona e todo o resto fosse um pacote de cantada barata nas entrelinhas.

Roger percebeu que quase não sentia mais frio, enquanto os cantos de sua boca subiam num sorriso discreto. Não tinha certeza se aquilo tudo era uma cantada, mas também não queria admitir para si mesmo que esperava que fosse – se sentir desejado fazia bem ao ego de vez em quando.

– Quem sabe – ele deu de ombros, enfiando as mãos no canguru do moletom. – Boa noite, senhor Prestes.