Quando minha equipe de preparação me arruma para o jantar, consigo colocar minha mente no lugar e parar de tremer toda vez que me lembro daquele idoso inocente levando um tiro. Também consigo não deixar lágrimas brotarem em meus olhos quando me lembro do que Katniss disse sobre ela e Gale. Era algo que eu sempre soube de certa forma, mas ouvir dela me pegou desprevenido, como se eu estivesse distraído demais para perceber que alguém me socava repetidamente, e quando percebi, toda a dor dos socos anteriores tivesse me derrubado. Desço para encontrar os outros, e me deparo com Katniss envolta num angelical vestido rosa, que a deixa ainda mais linda. Esse é o meu problema. Quando decido de uma vez arrancar esse amor por Katniss de dentro de mim, coisas como essa me fazem fraquejar. Seu sorriso em minha direção me faz fraquejar. Seus olhos cinzentos e penetrantes me fazem fraquejar. Ando até seu lado, para acompanharmos Cinna, Portia, Effie e Haymitch que estão descendo para o jantar. Como num olhar de confirmação, assentimos um para o outro antes de darmos as mãos, afinal temos que ser convincentes. Não que isso seja problema para mim. Envergonhado pela minha reação mais cedo, sinto que não posso ficar calado.

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— Haymitch diz que eu estava errado em gritar com você. Você estava apenas operando sob suas instruções — engulo seco. — E não é como se eu não tivesse contado coisas para você no passado.

— Acho que eu quebrei algumas coisas depois daquela entrevista.

Sorrio.

— Apenas um vaso.

— E suas mãos. Não há mais sentido, entretanto, há? Não ser direto um com o outro?— ela pergunta, com os olhos fixos nos meus.

— Não há — Concordo. Ficamos no topo das escadas, dando a Haymitch uma vantagem de quinze passos com Effie. Enquanto ficamos parados, há uma pergunta que não sai da minha cabeça, e eu sinto que vou ficar louco se não disser algo sobre isso. Pigarreio, antes de as palavras saírem baixas, quase inaudíveis de minha boca.

— Realmente aquela foi a única vez que você beijou Gale?

— Sim – ela responde imediatamente.

Pondero um pouco sua reação, mas tudo que vejo em seu rosto é sinceridade. Suspiro aliviado e decido deixar esse assunto para lá. Ao menos por enquanto. Mas lá no fundo, algo me cutuca, me fazendo lembrar que um beijo ou mil beijos não faz diferença alguma, se você ama a pessoa.

— Já deu quinze. Vamos — digo.

Portas se abrem e eu tento sorrir como se fosse a pessoa mais feliz do mundo. Essa será minha rotina, e eu nem tinha me dado conta de que poucos distritos me separam do distrito 8 onde terei que encarar a família daquela garota que matei.

Os dias se passam exatamente assim. Encaramos multidões com olhares indecifráveis, fazemos discursos escritos pela capital, visto que deu tudo errado quando resolvemos fazer discursos pessoais. Vamos á jantares, visitamos fábricas. E entre tudo isso, temos que entreter as pessoas com nosso amor que só existe em mim. Katniss está fazendo uma ótima atuação. Tão boa, que ás vezes eu realmente acredito que seja real. Mas quando me lembro do motivo que ela está se submetendo a isso, que é salvar sua família e Gale, aceito minha realidade e continuo sofrendo, beijando seus lábios sem saber se ela sente algo quando me toca. Algo que não seja repulsa.

Quando o trem encosta na plataforma do distrito 8, cogito a hipótese de não descer do trem. Eu poderia fingir estar doente. Muito doente a ponto de não se levantar. Claro que isso daria muito certo se eu fosse apenas um menino do distrito 12 que não queria ir à escola. Mas eu sou um vencedor dos jogos. Se eu alegasse isso, a capital seria informada e logo médicos estariam aqui injetando remédios milagrosos em mim, fazendo eu ter de encarar o que me assombra. Toda noite. Minha equipe aparece e faz alguns “retoques”, como eles dizem, em mim. Visto uma roupa deixada num pacote em cima de meu armário, e vou a passos firmes até o quarto de Haymitch. Na primeira batida a porta se abre, revelando um quarto ligeiramente arrumado, para minha surpresa.

– Entre – ele diz, voltando a arrumar seu paletó.

– Haymitch – começo, fechando a porta atrás de mim. – O que eu tenho que fazer pra conseguir encarar isso? Eu vou ter que ver a família daquela garota... eu vou...

– Você não consegue encarar – ele me interrompe, sério – você finge que encara.

– Minha vida vai ser assim para sempre? Terei que viver numa mentira? Mascarando todos os meus sentimentos verdadeiros? Olha, eu não sei se quero isso para mim – digo, perturbado.

– Agradeça por você ter uma vida. Só isso.

Suas palavras pesam em mim, e me arrebatam como um soco. Me sinto pequeno e supérfluo. Dou meia volta e vou até o vagão restaurante, onde fico grato por não ter ninguém. Como alguns pedaços de pão, que parecem pedras descendo em minha garganta mesmo estando extremamente macios e saborosos. Escuto um toc-toc de saltos e imagino que Effie esteja vindo acompanhada dos outros. Saio do vagão e corro para meu quarto, onde me enfio embaixo das cobertas, como quando eu era criança e achava que ficar embaixo de um cobertor poderia resolver todos os meus problemas, que olhando agora não passavam de meras bobagens. É triste saber que quando eu ficar mais velho toda a agonia que vivo agora não se transformará em bobagem. Poucos minutos se passam, quando Portia bate na porta, avisando que está na hora. Respiro fundo várias vezes e sinto que posso ter um ataque a qualquer momento. Isso só me faz ver como Katniss é forte, pois o que ela passou no distrito onze foi muito pior.

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Encontro Katniss na sala, e ela me abraça. Mal tenho tempo de reagir e ela me solta. Não entendo muito o significado disso, mas talvez seja porque ela saiba o que terei que encarar. Só que para mim, é diferente, pois eu matei essa garota. Não foi por defesa, vingança, nada. Acho que as pessoas nunca vão entender que fiz isso para proteger Katniss. Mas se entendessem, não faria diferença, pois eu fiz isso. O motivo não muda nada. O trajeto que fazemos da plataforma até o edifício da justiça, parece um borrão para mim. Eu sorrio quando vejo câmeras, ás vezes beijo Katniss, mas nunca, nunca solto sua mão. E isso não é por conta das câmeras, é que se eu soltar, sei que não irei conseguir. Quando me dou conta, estou atrás de grandes portas de ferro, com uma espécie de tecido fazendo ziguezague por entre as estruturas, e Effie fazendo uma contagem, que eu desejo ser eterna, mas ela termina, e me vejo sendo lançado para fora, onde o sol embaça minha visão por um tempo, mas fazendo em segundos, eu enxergar uma multidão me encarando. Fazendo em segundos eu enxergar, num palco bem a minha frente, uma mulher de meia idade e duas crianças, me olhando como se eu fosse a criatura mais cruel, horrível, e odiosa já existente. Escuto o discurso feito pelo prefeito, de cabeça baixa. Escuto o discurso feito por Katniss com meus olhos ainda fixos no chão. Quando chega a hora de eu me pronunciar, aperto com força o papel em minhas mãos, e o leio, incapaz de encarar o palco em minha frente. Quando eu termino, recebemos flores e somos saudados por algumas palmas que não são altas o suficiente para encobrir as vaias que recebemos. Quando estamos voltando para dentro do prédio, num impulso incontrolável, me viro para dar uma última olhada para a família daquela pobre criança. É quando meu olhar se fixa em uma garotinha, que imagino ser irmã da minha vítima. Ela me fita com ferocidade. Seus olhos castanhos me provocam náuseas, pois fazem eu me lembrar da sua irmã, me olhando com clemência antes de morrer. Continuo andando, ainda olhando para a pequena menina, e quando estou prestes a entrar no edifício vejo ela pronunciar claramente uma palavra. Minhas pernas perdem as forças, e eu me vejo escorado a um pilar, quando as portas se fecham atrás de mim. Tristeza desespero e arrependimento me invadem. Pois essa garotinha, acabou de dizer o que sou. Acabou de dizer, o que eu sempre serei. Um assassino. O que mais me dói, é saber que se eu tivesse a chance de mudar o que fiz, eu teria feito a mesma coisa, pois se eu não tivesse assassinado aquela garota, Katniss poderia não estar aqui comigo, e isso é uma coisa que eu jamais conseguiria suportar.