Eles por ela e ela por gatos

Meditações e alguém chamado Sarah


Minha atenção estava focada naquelas orelhinhas a minha frente. Mexiam de um lado para o outro, atentas. A face do felino negro permanecia em um livro de alquimia, enquanto tomava seu café quente e fresco a minha frente. Meus olhos curiosos, do outro lado da mesa, captavam cada movimento que ele fazia. E sem tirar os olhos das pequenas letras, ele apontou para o pedaço de pão e o outro copo de café que estavam ali.

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Quantas vezes vou ter que repetir para comer, Amélia?
Ele parecia irritado.

– O que está lendo? – perguntei em tom infantil. – parece ser bem interessante.

Ele virou o livro, calmamente, na minha direção. Letras esquisitas formavam frases em uma língua que eu desconhecia. O sorriso de divertimento dançava nos lábios dele, enquanto assistia minha frustração diante da situação.

– É isso que estou lendo. Interessante não?

Eu podia sentir o deboche de longe, me acertando em cheio. Derrotada, peguei um pedaço do pão e enfiei na boca. Ele apenas riu, e virou novamente o livro para si, lendo em voz baixa. Aquela língua soava como latim, era bonito de ouvir, mesmo que baixinho. Era bonito de admirar um ser tão diferente, estudando, concentrado. Me perguntei como seria ver Serafim assim. E me arrependi. Um perto no peito veio, forte, angustiante. O que ele estaria fazendo agora?

Suspirei baixinho, enquanto bebia um gole do café.

– Esta bem baixinha, terminei. – o felino disse mais alto, fechando o livro. – enquanto você termina de se alimentar, posso compartilhar um pouco do que faremos hoje.

Balancei a cabeça positivamente, mordendo mais um pedaço do pão.

Seu treinamento básico para alcançar seu objetivo será uma meditação profunda. Com a ajuda de um pouco da minha magia, claro. Por isso precisa estar bem alimentada, com o sono em dia e sem enfermidades.

Após a ultima palavra, Sebastian aproximou-se e colocou a mão sobre minha testa e na mesma rapidez que veio, se afastou.

– O que não é mais o seu caso. Fico feliz de informar que sua febre já passou. Então temos todos as exigências em questão atendidas.

– Aí não tem nada falando sobre estado mental? Porque pelo que eu saiba, é necessário uma mente vazia, sem pensamentos ou preocupações, e o que eu mais tenho no momento são preocupações. – rebati, sem muito animo, tomando o ultimo gole do café.

– Que parte de “vai precisar da ajuda de um pouco da minha magia”, você não entendeu? – respondeu convencido, se levantando. – vamos. Quanto mais cedo você começar, mais rápido conseguirá atingir seu objetivo.

Ele parecia um general. Alto, postura impecável e voz confiante. Mas é claro que ele queria rápido meu sucesso, isso significava o sucesso dele também. E quanto mais rápido fosse, melhor para os dois lados. Certo? Meu olhar de irritação deveria ser nítido nesse momento, mas ele não deu sinal de que ligava. Estava em postura de professor. Ou sargento, o que era mais compatível agora.

Agora estávamos no jardim. Aquele vasto e florido jardim de antes, agora coberto por flocos de neve. As arvores apenas em galhos, as flores mortas ou inexistentes em alguns canteiros. Aquela paisagem era melancolica e inédita para mim que jamais tinha tido contato. Ele ficou quieto por algum tempo, me deixando analisar e registrar a vista. O portãozinho que dava acesso ao casarão estava todo coberto também. O caminho estava soterrado, era difícil enxergar. A porta parecia semi aberta, a do casarão. Mas como estávamos longe, era difícil de saber com certeza.

– Temos companhia.

Ouvi a voz de Sebastian ao fundo.

Me virei, vendo que ele estava improvisando um forro em uma das arvores, como uma cabana.

– O que? Ninguém vem aqui. – respondi com a voz tremula. Eu ainda não estava pronta para encarar quem quer que fosse.

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– As vezes a preocupação é mais forte que o julgamento alheio. – ele disse calmo, apontando na direção oposta a que eu estava olhando. – Você tem cinco minutos.

Quando olhei para o portão novamente, um par de olhos cor de mel, assustados, me olhavam. Minhas mãos foram parar na frente da boca, enquanto me aproximava correndo do meu fiel escudeiro.

– Espirro. – falei baixinho, enquanto abria a porta e saia. – Eu...

– Senhorita Amélia, você esta bem! Esta bem!

Ele repetiu alto, com os olhos marejados, enquanto se jogava em cima de mim, me abraçando apertado. Mais apertado do que qualquer medroso faria.

– Mas você não esta bravo comigo? – perguntei com a voz tremula, segurando o choro. – Eu traí sua confiança.

Ao menos, era assim que eu me sentia. Mas parecia que Espirro não ligava muito para isso agora. Aquele abraço apertado, aquelas lagrimas que caiam na minha roupa, e que se secavam ao toque do tecido. Tudo aquilo me mostrava a amizade verdadeira. Que ele acreditava no que eu estava fazendo. Eu podia sentir pelo meu corpo todo aquele gesto de carinho. Ele era família. E entre um soluço e outro, o pequeno felino desajeitado me soltou, e me olhou nos olhos com aquele sorriso que combinava mais com o verão.

– Eu estava preocupado com você. Sabia que estava doente, desde que colocou a ideia teimosa de vir aqui. Senhorita Amélia, eu fiquei bravo sim quando não voltou, mas bravo porque estava preocupado. Tive medo de vir antes, e encontrar aquilo que temia. Mas reuni coragem, coragem essa que você me ajudou a resgatar, e vim atrás de você. Já disse uma vez, eu acredito que você saiba o que esta fazendo, e esta e, busca do real propósito pelo qual esta em nosso mundo. Posso temer por seus métodos. – ele disse receoso, olhando Sebastian. – mas ficaria satisfeito de que me provasse que estou errado em temer. Como vem fazendo.

Aquele brilho infantil me iluminou. Era a força que eu precisava. Alguém ali confiava em mim. Eu não tinha decepcionado Espirro. Uma lagrima escorreu pela minha bochecha. A única que não tinha conseguido segurar. Limpei com as costas da mão e sorri. Talvez o primeiro sorriso sincero e sem medo dos últimos dias. Balancei a cabeça de modo afirmativo e dei um passo para trás.

– Espere e verá, Espirro. Eu não vou te decepcionar. E ainda vou esfregar na cara daquele seu Mestre idiota que ninguém me controla. E que eu sempre estive certa em tomar a atitude que acabei de tomar.

Minha voz era forte e cheia de esperança. Essa era eu. A menina esperançosa, atrás de uma aventura. Uma resposta. E eu acharia ali, com Sebastian.
A cena foi comovente, mas seu tempo acabou princesinha. Temos muito trabalho a fazer.

Escutei o felino negro berrar debaixo da tenda recém criada.

– Vá. Eu irei esperar por uma resposta. Preciso controlar a situação com os outros gatos. Eles estão impossíveis e querendo respostas.

Espirro me deu um ultimo abraço antes de sumir pela porta, lá no fundo. Entrando na tenda, vi Sebastian sentado em uma almofada, e várias almofadas em volta dele. Com um toque suave em uma das almofadas, ele me chamou para perto. E quando me sentei, senti o cheiro de incenso forte, sem estar queimado.

– Vai usar isto? – perguntei, apontando para os palitinhos aromáticos.

– No momento certo, sim. Agora pare de ser curiosa, e venha deitar logo. Desse jeito sua cabeça vai ficar mais cheia do que precisa. – rosnou ele.

Obediente, me mantive quieta, e deitei nas almofadas pomposas, encostando a cabeça no colo dele, o olhando debaixo. Me foquei naqueles olhos claros, e meus pensamentos começaram a se embaralhar, e sumir, um por um.

Não abra a boca agora. Você vai começar a se sentir estranha, mas é normal, apenas confie em mim, e tudo dará certo.

Me concentrei naquela voz calma. Mas é claro que não deu certo da primeira vez. Ouvi uma bronca daquelas, e tentamos de novo. E de novo. E de novo. A tarde toda se passou e eu não conseguia nem ao menos me desvincular de pensamentos banais. O outro dia ocorreu a mesma coisa. Tentamos a tarde toda, e nada. O outro dia houve uma nevasca e não pudemos nem ao menos salvar a tenda e as almofadas. Sebastian não parecia preocupado, disse que recuperaria tudo aquilo no dia seguinte. Nosso contato foi pouco no dia da nevasca. Ele me ofereceu um casaco quente que havia ali, e uma lareira quentinha. Era o suficiente para aquecer o ambiente. Passando o dia longe de mim. Talvez fosse para não colocar mais ideias na minha cabeça. Não sei ao certo.

No dia seguinte acordei no chão da sala. Coberta com o casaco e com a cabeça encostada em um travesseiro. Olhei de volta, e senti o cheiro de café. Sebastian devia estar fazendo os preparativos para um novo dia de tentativas. Não me parecia nem um treino. Comemos em silencio, não quis perguntar dessa vez sobre o livro. E nem nada. Ele parecia aborrecido. Talvez até mais frustrado do que eu. Entre uma pagina e outra, ele me olhava. Eu sentia o olhar, mas não o olhava de volta. Estava tentando me concentrar, ou melhor, tirar meus medos e pensamentos do primeiro plano. Era difícil, eu pensava em tudo. Ele foi o primeiro a sair da mesa. Disse que faria os preparativos e que eu tinha apenas alguns minutos para terminar minha escassa refeição. Terminei o pão rápido e me demorei no café. Não mais que o necessário. Corri para fora, encontrando Espirro sentado ao lado de Sebastian, dentro da tenda recuperada.

Esta mais frio. – eu disse, passando as mãos ao redor dos braços, enquanto me aproximava.

Bom dia, Senhorita Amélia.

E antes que eu pudesse dizer algo, Espirro se explicou.

Vim te visitar, e Sebastian me contou da sua dificuldade. Disse que talvez você se sentisse mais confortável comigo aqui.

Ele parecia feliz com a ideia. Sorri em resposta e me sentei ao lado dele.

Vamos tentar. A ideia me parece boa.

Sebastian deu de ombros e me chamou para a posição dos outros dias. Assim que me deitei, senti a mão pequena de Espirro tocar a minha, olhei de canto para ele e vi que sorria. Aquilo, de certo modo, me acalmou. Respirei fundo, fechando os olhos, ignorando Sebastian que me olhava de cima. Algumas coisas vinham a minha mente, e logo sumiam. Era como uma onda. Vinha, trazendo memorias e pensamentos, e depois recuava, levando tudo embora. E depois voltava, com outras coisas, e as levava embora também. Aquele balanço me pegou, e cada vez mais eu era puxada para o fundo. Uma sensação de estar se afastando da margem, mas sem se afogar, e sim adentrando ainda mais nas aguas profundas, como se alguém me guiasse.

Meu corpo estava mole, inerte. A escuridão tomava conta agora. Nenhum som. Nenhuma luz. Ninguém além de mim. Mas não me trazia pânico. Era uma calmaria, como estar deitado sem se preocupar com nada. Algum tempo assim, e senti um toque. Era suave, e me balançava. Meus olhos, mesmo relutantes, se abriram. Ainda estava escuro. Pisquei algumas vezes até perceber que tinha alguém ali comigo.

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Me senti confusa, mas ainda lembrava o que estava fazendo ali. O porque de estar ali.

Amélia?

Uma voz não conhecida me chamou. Era como sinos tilintando.

Amélia. Acorde.

Ela me balançou mais uma vez. E virei a cabeça.

Um sorriso meigo dançava nos lábios dela. Uma mulher de cabelos castanhos claros, ondulado e compridos, com a pele muito clara, me encarava. Ela usava um vestido branco de alcinha, o que lhe dava o ar perfeito de um anjo. Aqueles olhos verdes cor do mar me encararam. Amorosos e cheios de alegria.

Quem é você?

Minha voz ainda estava tremula e fraca, mas aos poucos, consegui me levantar, com a ajuda dela.

Sarah.

Naquele momento respirei fundo. Como se tivesse acordado de um afogamento. A respiração funda, a dor no peito, mãos tremendo. Quem era essa menina? Meu corpo estava um pouco travado. Talvez pelo choque. Se é que era meu corpo físico. A sensação de leveza me fazia acreditar que não.

Temos muito o que conversar. Acalme-se primeiro.

Ali tive a certeza de que havia encontrado o que procurava. A resposta. E estava com ela.