Ele e Eu

Capítulo 1


MUDAR.

ISSO ERA algo que eu não esperaria nem em um bilhão de anos.

Quando nos imaginava no futuro, nossa velha casa em Rockford, Illinois, sempre esteve no plano de fundo. Eu imaginava o meu antigo quarto, que já fora o sótão um dia, antes que, aos quatorze anos, eu decidisse sair de um dos únicos dois quartos no primeiro andar para me acomodar no quartinho no piso superior, – que até então estivera lotado por móveis velhos e empoeirados que papai acumulou ao longo de todos esses anos, depois que os substituiu por móveis novos, por nunca ter encontrado tempo suficiente para se livrar deles – com teto de carvalho baixo, como o lugar onde eu morreria.

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Claro, era um pensamento mórbido e introspectivo, porque, afinal, quem queria viver em uma única casa a vida toda, sem nunca mudar nada, com todas as coisas do mesmo jeitinho que sempre estiveram?

Bem, eu.

Não me lembro muito bem do que aconteceu na noite depois que papai contou que nos mudaríamos.

Só me lembro de minutos antes, quando ele se sentou ao meu lado na mesa da cozinha, onde eu costumava desenhar, e pediu delicadamente para que eu olhasse para ele.

Eu me senti tensa quando percebi que papai estava se esforçando para esconder a própria tensão na voz. Esse nunca era um bom sinal. Porque frequentemente isso queria dizer que aquela conversa seria difícil para nós dois. Meu coração começou a bater rápido, eu sabia que não gostaria do que papai falaria. E acho que ele também sabia.

Porque eu odiava notícias ruins e conversas complicadas, me demorei em largar o lápis sobre os traços de um canário quase terminado e a subir os olhos para papai.

Eu não estava errada, eu iria ouvir algo desagradável, estava refletido nos olhos claros dele. Automaticamente me encolhi, como se isso pudesse bloquear o que sairia da boca de papai.

Preocupado, e provavelmente sabendo que a qualquer momento eu estaria inalcançável, ele esticou a mão e gentilmente apertou o meu ombro, procurando me acalmar e me manter em terra firme.

— Está tudo bem, querida – papai disse, agora fazendo um bom trabalho em esconder o tom de voz aflito. O vinco entre suas sobrancelhas havia desaparecido. Sua expressão era tranquilizadora. — Não é uma notícia ruim. Na verdade, acho que será ótimo para você.

Eu o olhei, desconfiada. Se era tão ótimo para mim, por que ele pareceu tão nervoso?

— O que é, papai? – eu perguntei. Minha voz saiu confusa. Mas eu me esforcei para não parecer ansiosa.

Eu não gostava de mudanças. E eu tinha a impressão de que papai anunciaria uma.

Ele afastou os dedos de meu ombro, e deitou os braços na mesa, seu cotovelo quase tocando o meu estojo lilás de lápis de cor. Estava com sua aparência de escritor, com seu pulôver xadrez azul-marinho e branco sobre a camisa social azul-clara e os óculos de aro fino vermelho preso na ponta de seu nariz curvo.

Quando papai não estava de óculos, ele parecia mais como um civil, mesmo que estivesse com um de seus pulôveres xadrez.

— Você sabe que estou trabalhando em um novo livro, não é, querida? – ele perguntou, com seu costumeiro jeito persuasivo e sábio.

Acenei a cabeça, ainda confusa. Não fazia ideia onde ele estava querendo chegar. Há muito tempo não tínhamos uma conversa séria. Papai sabia o quanto eu me sentia incomodada com elas, por isso, acho que ele fazia o máximo para evitá-las. Mas parecia que, às vezes, elas apenas eram inevitáveis.

Papai olhou bem nos meus olhos. Essa era uma maneira de me passar confiança e me fazer entender o que ele estava falando. Eu conseguia ver a extrema bondade em seus olhos, mesmo sob os óculos de grau.

— A editora está me pressionando – ele disse, e então fez uma pausa para se certificar de que eu estava prestando atenção. Quando viu que eu estava, continuou: — Eu preciso escrever esse livro o mais rápido possível. Mas você sabe, querida, eu preciso de inspiração — papai parou novamente, provavelmente se perguntando se não estava falando rápido demais. Porém não estava, eu estava entendendo tudo perfeitamente. Perguntei-me se era porque nada do que ele dissera até aquele momento era uma novidade. Acenei, indicando que ele poderia prosseguir. Mas papai só falou depois de alguns segundos. Acho que estava na hora da novidade. — E então após falar com Anko, tivemos uma ideia. Eu e você, querida, mudarmos para outro lugar – certo, agora ele estava falando rápido demais. Porque acho que ouvi errado.

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Só que um estudo mais a fundo dos olhos receosos de papai me disseram exatamente o contrário.

E, naquele momento, toda a preocupação de papai ganhou sentido, porque eu comecei a tremer como se estivesse no meio de uma nevasca e a chorar descontroladamente. Após isso, não lembro de mais nada, mas papai disse que não fiz nada além de tremer e chorar a noite toda. E sei que é verdade porque, na manhã seguinte, meus olhos ainda estavam vermelhos e inchados, assim como meu rosto, mas não havia nenhuma marca dos meus próprios dedos em meus braços ou pernas.

Papai tinha esperado que eu despertasse, na poltrona de camurça branca ao lado da minha cama, com os remédios do dia, um copo com água, alguns biscoitos e um copo de leite. Engoli os comprimidos e me alimentei após escovar os dentes, e depois papai e eu retornamos a conversa da noite anterior – claro, por insistência dele, por mim, essa conversa já estaria acabada.

Houve mais choro da minha parte, mas passado o choque, ficou só nisso. Paciente, papai esperou até que minhas lágrimas parassem de cair, então explicou para onde mudaríamos, disse que já estava de olho em uma casa fantástica e prometeu que eu seria muito feliz lá, e que não era para eu me preocupar com as consultas com Shizune, porque ele já havia conversado com ela, e minha antiga psicologa tinha indicado um psicólogo/psiquiatra, que, segundo ela, era um dos maiores do país. Mas papai deixou claro que a escolha era minha antes de se retirar do quarto e me deixar pensando sozinha.

Eu passei o dia todo na cama, entre as cobertas, de pijama. Meio-dia, papai apareceu na porta do quarto com uma bandeja com meu almoço, e quando torci o nariz dizendo que não queria comer, ele insistiu para que eu engolisse pelo menos algumas garfadas; esse foi o único momento em que me pressionou, e, mesmo assim, não teve nada a ver com a possível mudança. Comi tanto quanto conseguia, o que não queria dizer muita coisa, mas papai não reclamou quando subiu para buscar o prato e o encontrou quase todo cheio.

Quando desci com o pôr do sol de fim de tarde, a luz baixa e dourada entrando pela janela, eu já tinha uma resposta.

Fui até o escritório de papai, porque havia o procurado por toda a casa e não tinha o encontrado. O escritório foi o último lugar onde procurei porque papai não costumava estar nele naquele horário, apenas quando tinha um surto de inspiração e não conseguia parar de escrever, o que não era o caso. Ele não estava na frente de seu notebook quando abri a porta, estava no telefone falando com Anko, sua agente.

Ele me viu, fez sinal para que eu entrasse, e eu o obedeci.

— Sim, Anko, eu sei. Sim, entregarei no prazo – ele esperou Anko terminar de falar no outro lado da linha.

Sentei-me na cadeira giratória confortável na frente da sua mesa de madeira escura. Papai esfregou a testa com os dedos da mão que não estava prendendo o celular ao ouvido.

— Certo. Obrigada, Anko. Até amanhã – papai finalizou, desligando a chamada.

Ele parecia cansado, ainda com a aparência madura e bonita, mas com o rosto um pouco mais sério do que o normal. Senti-me culpada, porque certamente ele não devia ter dormido por causa do meu descontrole. O último havia sido há sete meses, e por isso talvez sua expressão abatida tenha sido como um soco em meu estômago.

Eu não me lembrava de doer tanto.

Limpei a garganta, na tentativa de afastar o nó que começava a se formar em minha traqueia.

— Querida, está precisando de algo? – papai perguntou. Ele estava sentado em sua outra cadeira confortável, olhando-me com olhos atenciosos, apesar de fatigados.

Uma lágrima solitária desceu pela minha bochecha, porque aquela decisão era tão difícil.

— Não, papai – respondi. E antes que ele pudesse perguntar por que eu estava chorando e eu perdesse a coragem, falei em um fôlego só: — Acho que podemos fazer isso.

Não precisei explicar do que estava falando, porque papai entendeu na mesma hora. Ele se levantou, deu a volta na mesa, se agachou na minha frente e me abraçou, enquanto eu soluçava cada vez mais alto. Passando a mão em meus cabelos para me consolar, ele repetia que tudo ficaria bem e que seríamos muito felizes.

Eu não queria me mudar.

Eu não queria.

Mas papai parecia tão contente com a ideia, e eu sabia que ele amava aquela casa tanto quanto eu e que sabia o quanto ela era importante para mim. Papai nunca faria algo que pudesse me fazer infeliz. Ele disse que seria bom para mim, e, mesmo com um aperto enorme no peito, resolvi acreditar em suas palavras.

Depois de uma noite inteira e uma parte da manhã seguinte na estrada, com uma breve parada em uma lanchonete chamada Johnny Rockets, papai e eu avistamos uma placa a três metros do chão, com o nome da cidade na qual estávamos prestes a entrar: TOMS RIVER.

Eu estava com a cabeça apoiada ao encosto do banco de trás de Dorothy, nosso Corolla azul-claro, que já havia sido branco mas que papai mandou pintar em homenagem à personagem principal de O Mágico de Oz, nosso livro preferido, e olhava a paisagem montanhosa e verdejante através do vidro da janela, fechada por causa do ar condicionado.

O clima estava levemente quente, e o céu estava azul. Não havia prévia de chuva, e eu me senti um pouco relaxada, porque pelo menos eu não precisaria ficar duplamente desanimada – chuva sempre levava um pouco da minha energia. Eu ainda estava um pouco chateada com a mudança, tinha chorado escondido de papai durante a semana toda, enquanto as nossas coisas aos poucos eram despachadas para nossa nova casa, e me senti razoavelmente tentada a me amarrar junto ao corrimão da escada quando papai começou a colocar as nossas malas no porta-malas de Dorothy. Mas eu tinha conseguido me arrastar para fora de nossa antiga casa quando papai anunciou que estava na hora de ir.

Sei que papai também estava triste por deixá-la, principalmente quando vi seus olhos passearem vagarosamente pelos cômodos vazios antes de trancar a porta da frente. Mas ele lidava melhor com mudanças do que eu, que não consegui impedir que mais lágrimas gorduchas caíssem enquanto abria a porta de trás do Corolla.

Agora, papai dirigia calmamente para dentro da cidade, que não fiz questão de observar. Ele estava usando um suéter café com leite e calças jeans. Parecia mais jovem, apesar de já parecer jovem o bastante para um homem de quarenta e poucos anos.

— Parece que estamos nos últimos minutos de nossa curta viagem de treze horas – papai disse, ziguezagueando pelos poucos carros na rua.

Ele parecia disposto, embora tenha dirigido a noite toda. Acho que esse era um dos muitos benefícios da profissão dele: trocar o dia pela noite. Se papai fosse um animal, ele certamente seria um morcego.

Tentei não olhar pela janela ao meu lado. Uma coisa era você olhar a paisagem deserta da estrada, outra, era você olhar para uma cidade habitada, repleta de pessoas. O fio solto em meu moletom de repente pareceu muito mais interessante.

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Enrolei e desenrolei o fio no dedo indicador, e fiquei nisso por longos minutos, até que, fundamentalmente, Dorothy parou, e papai anunciou:

— Parece que chegamos!