Efeito Borboleta

Cartas de Adeus.


Dor... É impressionante como essa palavra tão pequena, de apenas três letras, possa carregar em si um peso tão grandioso, tão devastador. No entanto, é ainda mais impressionante a forma como esse sentimento pode ser sentindo em diversas formas, de diversas maneiras. Prender o dedo na porta, por exemplo, dói. Morder a língua; dói. Ralar o joelho; dói. Torcer o tornozelo; dói. Um tapa, um soco, um pontapé; doem. Porém, de todos os tipos de dor que um ser humano é capaz de sentir, a mais sofrida, a mais cruel, é aquela que se sente no mais profundo do nosso ser. A dor de uma perda. E ela dói como poucas coisas são capazes de doer em toda a nossa vida. E para a nossa infelicidade, essa dor não possui uma cura, porque ela não é como certas dores físicas que podem ser eliminadas com medicação. Ela é uma dor mental, uma dor na alma. É uma dor que dura. É feita para durar. É uma dor tão profundamente dilacerante que, por vezes, transforma-se em líquida somente para transbordar através de nossos olhos. E ela transbordou em mim, de todas as formas possíveis, enquanto eu presenciava naquela melancólica tarde do dia 8 de outubro de 2013, o nome de Katniss ser gravado em uma lápide no Cemitério de Arcadia Bay.

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Eu nunca estive, e jamais estaria realmente preparado para aquela saudade sufocante amarrada pela certeza de que nunca passaria. Era uma saudade eterna. Uma angústia imensurável. Um vazio que preenchia o peito. Um desespero inexplicável, torturante. Mas uma hora a nossa ficha caia, e quando isso aconteceu, eu me vi completamente entregue a amargura.

Dois meses haviam se passado, e ainda que eu precisasse dar um tempo de tudo, a vida seguia o seu rumo, impiedosa. Dia após dia, hora após hora. Eu recordava-me de Katniss divagando em nossa infância sobre os buracos negros no espaço, engolindo estrelas, planetas, qualquer coisa, até mesmo galáxias. E aquele poderia ser, definitivamente, o meu estado de espírito. Não que eu fosse engolir as coisas ao meu redor, mas sentia-me com um enorme buraco no peito, sem saber como fechá-lo, como encará-lo, ou como ignorá-lo. Eu poderia descrever minha relação com Katniss como a famosa metáfora da caminhada no deserto e o copo de água fresca. Katniss era o meu deserto, algo que eu não sabia o que iria encontrar um passo a frente, não sabia onde estava me levando, mas tinha certeza de que era o lugar onde eu deveria estar. Da mesma forma que eu representava o desconhecido para ela. Então vinha a água, algo que representava o nosso conjunto. Cristalina, pronta para matar a sede dos caminhantes, pronta para qualquer necessidade de quem precisasse. Era impossível viver sem água, da mesma forma que era impossível um viver sem o outro. E agora eu sabia disso.

Tentando conter o fluxo interminável de lágrimas, ergui meu olhar por alguns segundos, mordendo o lábio inferior com força enquanto observava os feixes de luz solar atravessar a janela do meu quarto, mas a cada momento meu coração se quebrava mais um pouquinho. A cada pequeno movimento um soluço agonizante me escapava, pois uma memória diferente vinha a minha mente para torturar-me. Lembrei-me de quando nos conhecemos pela primeira vez. Lembrei-me de tudo, principalmente de todas as vezes que Katniss esteve ao meu lado, que segurou minha mão, que me deu tudo de si sem esperar nada em troca. Lembrei-me de todo o amor que via em seus olhos, conforto em seus braços, carinho em seus beijos, segurança em suas palavras. Lembrei-me de todo amor que sentia dentro do meu peito. Amor esse que, naquele exato momento, queimava como um inverno, consumindo minha pele, dilacerando minha alma. Então, não conseguindo mais segurar a emoção, deixei que as lágrimas corressem livres por meu rosto. Já tinha ouvido muitas pessoas dizerem que ninguém morria por amor, e, de fato, isso era verdade. Ninguém morria por amor. A gente morria pela falta dele.

Naquele momento eu quis escrever exatamente como me sentia, mas, de alguma forma, o papel ficou em branco, e eu não poderia ter escrito melhor.

20 de Outubro de 2014

Estava claro novamente, e tudo era uma vastidão, um imenso e complexo amontoado de coisas sobre coisas, de pessoas, barulhos. Mas não era como se aquilo me incomodasse, nada realmente me importunava. As coisas passavam por mim como se eu fosse um corpo de outra dimensão vivendo em um mundo externo, diferente do que fora programado para mim. O barulho irritante do despertador em contraste com o silêncio da minha alma ainda fazia-se presente em minha mente. Eu não havia me mexido por um bom tempo, continuando ali na minha cama, fechando meus olhos novamente. Não era como se fosse algo realmente premeditado, não era intencional, era somente um reflexo do dia a dia mórbido que agora eu vivenciava. Minha vida, meu cotidiano, tudo parecia uma farsa, e eu sentia-me como uma sombra, um olhar indiferente que evitava o olhar dos outros. Lábios mudos, olhos mortos. Mas aquela era uma manhã diferente, por isso, obriguei-me a levantar, tomar banho, vestir uma roupa, e então sair.

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Eu havia levantado tarde demais, por isso tive que esperar uns bons minutos até conseguir pegar um ônibus rumo ao meu destino. Meus olhos viam-se perdidos no borrão das ruas do outro lado da janela, e era impossível descrever o que se passava em minha cabeça naquele momento. Nem mesmo um milhão de folhas seriam suficientes, nem todas as heterogeneidades linguísticas. A única coisa que eu sabia era que, era inevitável não pensar. Pensar na claridade, nas pessoas, na paisagem, na dor, em meu lugar. Meu lugar que agora estava vazio.

Uma vez que eu havia descido do ônibus e me encontrava encarando a fachada um tanto desgastada daquela casa azul no final da rua, consegui sentir esvair a sensação de existir, a impressão de pertencer ou de estar no mundo começou a faltar dentro de mim. Não conseguia distinguir meu passado, meu presente e meu futuro. Não me reconhecia mais, não reconhecia a ninguém. Tudo havia se tornado um peso sobre meus ombros. Havia cerca de um ano que eu não pisava sobre o solo daquela varanda, daquela casa, e estar ali trouxe uma enxurrada de sentimentos que jamais poderiam ser nomeados corretamente com palavras.

— Peeta?... Oh, querido, que bom que você veio! — braços reconfortantes me acolheram carinhosamente, e só então fui despertado do transe momentâneo em que me encontrava. Estava tão absorto em meus conflitos internos que havia tocado a campainha inconscientemente.

Aquilo era tão estranho, estar abraçando outra pessoa. Normalmente eu não procurava por ninguém, estava só, andando como uma pessoa solitária, a flanar, sendo ocioso, a ver sem olhar, a olhar sem ver. Eu havia aprendido a arte da transparência, da imobilidade, da inexistência. Havia aprendido a olhar as fotografias como se fossem pedaços de parede ou teto, os prédios como se fossem pinturas, textos que ninguém nunca decifraria. E agora eu estava ali, tendo outro corpo pressionado contra o meu. Era diferente, e eu sentia falta daquele tipo de afeto.

— Oi... — verbalizei meio cabisbaixo e um tanto envergonhado, enquanto enfiava minhas mãos nos bolsos da calça jeans já surrada, logo após Clara desvencilhar-se de nosso abraço — Desculpe pelo atraso.

— Sem problemas, querido. — sorriu-me compreensiva, e então seus olhos fixaram-se nos meus, tratando de analisar-me tão profundamente que, por um momento, senti como se minha alma ferida estivesse sendo exposta para ela — Você está bem? Faz um tempinho que não nos vemos.

Eu estava bem?

Aquela pergunta se repetiu inúmeras vezes por minha mente nebulosa e inconstante. Estar bem não era algo que poderia ser aprendido. A solidão, a indiferença, a paciência e o silêncio. A solidão levava noções, e então por estar só, não se percebia mais que horas eram. Você apenas se deixava levar, isto lhe era quase fácil. Você deixava o passar do tempo apagar de sua memória os rostos, os endereços, os números de telefone, os sorrisos e as vozes. Você se esquecia de que aprendeu a esquecer, que um dia você forçou a si mesmo para esquecer. Você já não entrava nos locais verificando as mesas com uma expressão preocupada, buscando pelos lugares as suas necessidades. Você não tinha mais necessidades. Eu não tinha. Então a resposta era não. Eu não estava bem.

— Peeta? — Clara estalou os dedos em frente aos meus olhos, e só então pude perceber que havia me calado por tempo suficiente para deixá-la com uma expressão preocupada.

— Não... Eu não estou bem. — soltei um suspiro pesado — Mas estou sobrevivendo. — completei rapidamente, tentando esboça-lhe um sorriso, porém o mesmo saiu mais como uma careta.

— Compreendo. — ela encarou meu rosto por mais um tempo, profundo e intensamente, fazendo todas as palavras de conforto não ditas escorrerem por seu olhar. Então assenti, fazendo-a sorrir gentilmente — Venha, entre. Está começando a ficar frio aqui fora, e pelo que vi no noticiário, irá cair um temporal mais tarde. — assenti novamente, entes de seguir seus passos para o interior da casa.

Sala silenciosa, um suspiro, um piscar de olhos, o murmúrio incessante da cidade, a sequência de barulhos que Arcadia Bay produzia com vozes, cantos de pássaros, latidos de cachorros, motores freando, acelerando. Tudo em contraste ao ritmo que saía da torneira pingando na cozinha, e que parecia ecoar em caixas de som. O tempo passava, eu sabia que sim, mas nunca sabia ditar as horas. Era tarde? Era cedo? Ainda via-se o sol.

— Onde estão Haymitch e Prim? — resolvi perguntar, minha foz saindo quase silenciosa.

— Foram pescar, voltam somente à tarde. — respondeu com simplicidade — Você quer comer algo? Acabei de preparar uma fornada quentinha de cookies com gotas de chocolate. — agradeci por sua gentileza, mas tive que recusar seu convite, meu estômago andava um tanto revoltado nas últimas semanas — Tudo bem, querido... Bom, vamos subir, então? — meu corpo gelou de modo quase instantâneo, mas eu precisava ser forte. Engoli em seco pelo que pareceu ser a décima vez só naquele segundo, e olhei atentamente para a escada, em uma tentativa falha de organizar meus pensamentos. Vamos lá, Peeta. Você consegue. — Está tudo bem? — assenti, tomando alguns segundos para respirar profundamente, antes de finalmente seguir seus passos silenciosos até o andar superior. Meu peito estava apertado e parecia que o ar não passava mais corretamente por minhas vias respiratórias.

De repente, o barulho estridente de madeira rangendo ecoou por todo o ambiente, fazendo-me estancar no lugar. Era a porta. Era o quarto dela. De modo quase indistinguível, ouvi as batidas desenfreadas de meu coração. O quarto só não havia se tornado uma ilha deserta por conta das diversas caixas espalhadas pelo piso de madeira. Mas ainda sim, não deixava de ser assustador se fosse comparar a como ele estava há certa de um ano. Ele até poderia ser considerado uma bagunça devido às pichações em forma de frases e diversos pôsteres espalhados pelas paredes, além de roupas e CDs jogados pelo chão, mas eu conseguia ver aquilo como um reflexo da mente de Katniss. Confusa, porém extraordinária. Mas agora, tudo o que ele representava era a ausência, a falta, o calar daquela que não mais estava ali.

Eu precisava de calma, de silêncio, para que pudesse sentir o movimento da minha caixa torácica, o que provava fisicamente que eu ainda existia. Bastava esperar, esperar até que não houvesse mais nada a esperar. Deixar-me levar pela multidão, seguir as sarjetas, os ventos, as margens, as correntezas. Perder o tempo, não ter qualquer desejo ou revolta diante a todas as injustiças da vida. Eu havia lutado tanto para ficar bem, para não perder a sanidade, mas se eu pensasse claramente, veria que estava lutando no escuro. Em um profundo escuro que apenas eu sabia e que apenas eu entendia a intensidade. Todos ao meu redor estavam sob a ameaça eminente da minha própria desorientação, da minha desordem. Eu não havia escolhido aquela dor insaciável, eu não havia escolhido aquele ar sufocante que perfurava dentro de mim, no entanto, estava ali, e eu jamais saberia conviver com ele.

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— Não se torture tanto, Peeta... — a voz suave de Clara surgiu a minha frente, fazendo-me erguer o olhar para encará-la — Eu sei que tem sido difícil, que você quer fugir, encontrar outra casa, outro horizonte, mudar de pele, de coração. Mas acredite, para você, a vida só está começando. Ainda virão muitos dias solares para abraçar você e dizer que sim, tudo ficará bem, e todo o caminho valerá a pena. — engoli em seco, e com as emoções a flor da pele, dei um passo à frente, envolvendo-a em um abraço forte e reconfortante, sendo igualmente correspondido — Vou deixá-lo a sós, acho que você precisa desse momento para se permitir respirar com mais tranquilidade. Mas estarei na cozinha, se precisar, é só gritar... está bem? — como resposta, apenas assenti, já que naquele momento eu parecia ter perdido a capacidade de falar. Ela então sorriu genuinamente, antes de depositar um beijo carinhoso em minha testa e seguir escada abaixo.

Após uma profunda tomada de ar, segui a passos um tanto cambaleantes para dentro do quarto, analisando minuciosamente cada centímetro do mesmo. Era tão inexplicavelmente estranho estar ali e não poder ouvir a risada bem humorada de Katniss, ou o seu corpo balançando de um lado a outro sobre a cama, enquanto ela cantarolava junto à música que emanava da estação de rádio. Ela era fascinante. Quando estava em silêncio, era linda. Quando falava, estava novamente linda, e construía formas únicas de belezas em palavras que me fazia admirá-la ainda mais. No começo da nossa amizade, eu a via de modo tão simples e puro, então uma espécie de beleza espiritual se impôs a ela e eu senti fascínio ao observá-la. Seu calar, até quando não queria dizer alguma coisa, dizia, e era profundamente belo.

Sentindo minhas pernas fraquejarem em consequência a minha incapacidade de controlar emoções, deixei meu corpo cair sobre o tapete felpudo no meio do quarto, puxando a caixa com o meu nome para perto, com o intuito de observar melhor os objetos em seu interior. Em uma ligação no início do dia anterior, Clara havia me contado que decidira encaixotar boa parte das coisas de Katniss para a doação. Eu havia achado seu gesto muito nobre, e sabia que onde quer que a morena estivesse, estaria muito feliz com a iniciativa da mãe.

Após um momento considerável, onde me dediquei a respirar calmamente, retirei o primeiro objeto de dentro da caixa. Era um caderno de desenhos, já bem desgastado devido ao tempo, mas que me arrancou um sorriso sincero. Katniss e eu o adorávamos, pois era onde criávamos os nossos próprios personagens de histórias em quadrinhos. O próximo objeto a ser retirado fora um álbum de fotografias, e este, arrancou-me mais lágrimas do que poderia ser nomeado. Lágrimas de um gosto tão amargo quanto o ferro. Aquilo era o mesmo que embarcar em uma viagem de volta ao passado, não literalmente, mas tão intenso quanto. Um passado onde nossas maiores preocupações estavam relacionadas a fazer todo o dever de casa o mais rápido possível, para poder brincar até o momento de o sol se pôr e a primeira estrela surgir com todo o seu esplendor no céu. Era tudo tão mais fácil, tão mais simples. Mas agora, tudo o que havia me restado era um imenso vazio no peito e uma alma irreconhecível. Então eu compreendi, não era o adeus que machucava, eram as lembranças que ficavam.

Ainda inerte no sentimento de angústia profunda, avistei algumas cartas no fundo da caixa, cartas estas que tinham suas dedicatórias remetidas a mim. De cenho franzido e mente confusa, peguei cuidadosamente os envelopes devidamente lacrados, analisando-os atentamente, e ao reconhecer a caligrafia um tanto desajeitada de Katniss, abri-os de modo quase veloz.

10/03/2010

Caro, Peeta... Meu pai me comprou esse papel de carta uma vez quando eu reclamei que não conseguia mandar um e-mail, pois a internet estava fora do ar. Hoje, eu pensei: “Ei! Acho que está na hora de escrever para o Peeta!”.

O engraçado é que não sei bem o que dizer, porque tem três meses que a gente não se fala. Apesar das minhas ligações, meus SMS... Não que eu esteja chateada nem nada. A verdade é que eu sinto sua falta, Pee. Falta das nossas conversas, de ficarmos deitados no telhado observando as estrelas. Sinto falta dos seus abraços, de observar seus olhos. Eu sempre possuí um fascínio inexplicável por eles.

Estou sendo muito dramática? Acho que sim, né? Mas eu só queria que você estivesse aqui comigo. Eu sonhei com o meu pai de novo. Aquele mesmo sonho, onde eu estava lá, sentada ao lado dele quando o acidente aconteceu. Parece que, depois de cada um desses sonhos, fica ainda mais difícil lembrar o que é real e o que não é. Tudo que eu lembro depois de acordar é que eu sinto muito a falta dele. Espero que isso não mude.

Puta que pariu. De jeito nenhum eu vou mandar isso aqui, né?

Assinado: Katniss, a Abandonada.

Foi impossível segurar a risada perante a sua assinatura no final, era bem à cara dela mesmo escrever algo daquele porte, porém não deixei de sentir o aperto no peito quando a mesma citou as ligações e as mensagens não respondidas. Mas, principalmente, quando ela citou sobre os sonhos tortuosos que costumava ter. Eu havia sido tão imbecil. Um completo covarde por tê-la abandonado em um momento tão delicado quanto aquele. Mas a minha cota de culpa e magoa por aquele afastamento egoísta já havia chegado ao seu auge, afinal de contas, conviver tanto tempo com aqueles tipos de sentimentos tão corrosivos, nos deixava, de certa forma, imunes ao impacto causado por certos acontecimentos.

20/05/2010

Sabe? Eu meio que parei de ir tanto para a escola. Assim como você parou de falar tanto comigo.

Olha que coisa: eu não conseguia mais pensar em uma boa desculpa, então, parei de tentar. Simplesmente não ia. E estava tudo bem. Ninguém falava nada – a não ser minha mãe que, agora, está saindo com um idiota escroto de bigode. Loucura, né?

É como se eu tivesse ficado invencível de uma hora para outra. Talvez seja a vantagem de ser "filha do cara morto". Ninguém sabe o que fazer comigo, então ficam até felizes quando eu fico em casa. E cá estou eu, escrevendo para você, sem me preocupar se vai me responder ou não.

Talvez, um dia, quem sabe, quando você voltar e pedir desculpas por ter se esquecido de mim e a gente fizer as pazes, eu te mostre esta carta, então iremos lê-la, juntos, e quiçá até dar umas boas risadas.

Ou talvez eu decida que o Peeta das cartas seja muito mais legal que o Peeta de verdade, e você viva aqui para sempre como o meu ex-melhor amigo imaginário atual por correspondência. Só o tempo irá dizer.

Assinado: Katniss, a Chefona das Cartas.

A melancolia presente naquela escrita estava sufocando-me. Eu sentia uma dor tão profunda quanto à de um punho rompendo minha caixa torácica, apertando meu coração sem dó nem piedade. E aquela sensação desesperadora só aumentou conforme eu lia as cartas seguintes, onde ela relatava como se sentia ao não conseguir ajudar Prim em suas crises de pânico. Em como se sentia uma estranha dentro da própria casa. A gravidade e carga emocional de coisas que ela teve que carregar, era pesada demais para uma pessoa tão jovem.

05/09/2010

Eu passei muito tempo sem saber o que fazer; assombrada pelo fantasma do meu passado. Quando a noite estava cheia de terrores e os meus olhos cheios de lágrimas. Mas, em um céu com milhões de estrelas, quem se importa se mais uma luz se apagar, não é mesmo? Bem, eu me importo. E você, Peeta, se importa?

Você não pode me responder, eu sei. Você não existe. Você é só uma mentira que eu uso para fugir da realidade, para continuar vivendo no passado. E talvez isso não seja tão ruim... Mas, acho que não quero mais viver no passado. Quero estar no presente. Muitas coisas aconteceram, e está mais suportável continuar agora. No entanto, eu ainda me pergunto: “Quando foi que você decidiu que havia se cansado de mim, Peeta?” Nossos caminhos se separaram de uma maneira que eu não consigo nem compreender. Foram anos de amizade sincera, de cumplicidade. Mas bastou o silêncio, a quietude, o calar, o sumir, para que o tão temido esquecimento acontecesse, e, pelo que vejo, apenas eu saí machucada.

As feridas estão abertas ainda, e não se é possível tapar buracos feitos com balas de canhão com um simples curativo. Mas eu entendo, afinal, quem iria querer ter como amiga uma garota tão problemática? Você tem uma vida pela frente, e eu espero que você encontre alguém que te entenda melhor do que eu, que seja melhor do que eu, que te faça feliz. Seja feliz, Peeta. Talvez eu faça o mesmo, ou ao menos tentarei...

Eu levei muito tempo para aceitar sua partida, mas agora eu não imagino nem mais a sua volta. Contudo, quero que saiba que você foi bom demais para mim enquanto esteve aqui, enquanto ainda me amava, e acredite, eu não irei encontrar outro igual a você. Então obrigada, pela sua amizade, por ter sido meu porto seguro por tanto tempo...

Eu te amo, Peeta.

Adeus...

Assinado: Katniss.

Um soluço escapou por meus lábios, juntamente de outro e mais outro. Eu podia jurar que todos os meus sentimentos haviam parado de funcionar naquele exato momento. Meus olhos estavam arregalados, minha boca seca e o coração batendo tão fortemente dentro do peito que seria possível até mesmo vê-lo através do meu tórax. Então eu chorei, chorei por tudo e ao mesmo tempo por nada. Chorei de saudade, chorei de tristeza, de culpa, de medo, de angústia. Chorei por ter feito a pessoa que eu mais amei sofrer. Katniss não merecia aquele trágico final. Não! Ela merecia mais, muito mais. Merecia amar, ser amada. Merecia noites, dormir juntos, acordar juntos. Merecia sorrisos, gargalhadas. Merecia estar lá até as estrelas não brilharem mais, até os céus explodirem e as palavras perderem os sentidos. Ela merecia uma nova chance, uma nova vida.

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Com a visão completamente distorcida por conta das lágrimas, estiquei uma de minhas mãos para alcançar uma fotografia em especifica. Nela, Katniss estava ao meu lado, com um dos braços sobre os meus ombros enquanto sorriamos animadamente para a câmera. Aquela foto havia sido tirada por Thomas, poucas horas depois de a morena e eu nos conhecermos. Éramos tão pequenos, e não fazíamos a menor ideia do rumo tortuoso que as nossas vidas iriam tomar. O que havíamos feito para merecer tanta dor? Outro soluço escapou por meus lábios, este, porém, muito mais agonizante que qualquer outro. A verdade era que eu não estava mais suportando todo aquele amontoado de sentimentos desconexos. Não estava mais suportando viver em um mundo sem Katniss Everdeen.

E foi ali, com o coração na mão e os olhos transbordando, que eu tomei uma decisão.

Enxugando todas as minhas lágrimas e juntando todas as forças da qual eu ainda possuía, foquei toda a minha atenção naquela fotografia residente em minhas mãos. E então comecei a voltar no tempo. Voltei mais do que nunca. Minha cabeça começou a doer, meu nariz começou a sangrar. Comecei a sentir cada parte do meu corpo ser forçada de uma forma absurda, como se algo estivesse me puxando, me sugando através do espaço-tempo. Fui desaparecendo aos poucos conforme outras partes do meu corpo começaram a sangrar, até que o mesmo fosse completamente coberto por um vermelho vivo. E então eu cheguei. Cheguei novamente no dia em que a fotografia havia sido tirada. Observei atentamente as nossas versões de apenas cinco anos brincando no balanço do parquinho, e com os meus últimos suspiros, sussurrei as palavras mais dolorosas de toda a minha existência. Fora apenas um sopro jogado ao vento, mas claro o bastante para que a minha versão com menos idade ouvisse e repetisse, fazendo Katniss correr aos prantos para os braços de Thomas, para bem longe de mim. Aquilo doeu como um inferno, mas seria melhor assim.

Então, com um sorriso triste nos lábios e um vazio tomando conta do meu coração, olhei uma última vez para a pequena versão da minha Marrentinha, e depois disso eu nunca mais vi nada. Eu deixei de existir naquela realidade, assim como todas as memórias de todos os momentos e acontecimentos. Eu desisti de tudo, somente para que Katniss pudesse ser feliz.