Nos vestimos como pessoas da Capital, escondemos os uniformes com uns casacos exagerados, trocamos nossas botas por sapatos ridículos e as penduramos pelos cadarços nos trajes. Eu descubro que meu cabelo de fato é um problema quando nenhuma peruca é comprida o suficiente para escondê-lo. Dá trabalho, mas finalmente tudo é resolvido por Cressida. Está nevando lá fora, então podemos cobrir até o menor centímetro de nossa pele. Isso é levado ao pé da letra quando se trata do pessoal do 12, Finnick, Cato e eu.

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– Fiquem juntos – Everdeen diz, quando estamos saindo. As ruas estão cheias dos estranhos cidadãos daqui, andando de um lado pro outro numa afobação tensa. Reparo que Cato está ficando pra trás e diminuo a velocidade quando três grupos de Pacificadores aparecem correndo na esquina. Eu estou prestes a ser derrubada por eles e capturada pelo Snow e torturada pelo Uranius quando Cato se arrasta até mim e me puxa para abrir espaço para que eles passem exatamente como pessoas normais fazem.

Eu estou esperando que ele comece a rosnar sobre minha sequencia exaustiva de colapsos, mas ele não fala nada. Só continua atrás de mim quando voltamos a andar.

Começo a me dar conta de que não estou sendo útil exatamente como ele disse que eu não seria. É uma droga poder ouvir a voz de alguém falando “eu avisei”. É horrível saber que você chegou a um nível de confusão interna irresgatável. É simplesmente trágico não se conhecer.

Se há um fundo do poço para se chegar, eu estou no subsolo.

Respiro profundamente várias vezes e avanço um pouco mais pra perto de Cressida e Katniss.

– Como o Cato está? – Everdeen pergunta discretamente, como se falássemos sobre o tempo.

– Se não houvesse tantas camadas, vocês poderiam ver o sangue encharcando os panos – respondo prontamente, olhando de relance pra ele.

– Ela se lembrou de um lugar.

– Bom.

Então me deixo ficar pra trás novamente. Ele não está falando nada. Além de estar completamente com raiva de mim, eu acho que essa coisa também dói demais pra que ele o faça.

Reviro minha mente dois milhões de vezes procurando algo pra se dizer, mas simplesmente não existe. Como nunca, agora não é hora pras minhas desculpas. Nós vamos agir como bonecos movidos à corda, e, uma vez que ela acabar, vamos desmoronar como fantoches e despejar todos os erros até que não possamos mais nos mover porque estamos vazios.

Quebrada. Quebrada. Quebrada.

Isso soa como uma reposta para todas as minhas perguntas. Preenche todas as linhas em branco.

Eu sou uma boneca quebrada. Me puseram cordas e me moveram às suas vontades. Agora que as cortaram, eu estou quebrada. Esqueci quem eu era pra ser. Esqueci a frase eu devia repetir. Perdi a utilidade.

Eu deveria levar honra pro meu distrito. Não levei.

Eu deveria ter matado Everdeen. Não matei.

Eu deveria matar Snow. Posso sentir que estou esvaindo e vou fazê-lo até desistir no caminho.

Estamos numa área residencial agora, atravessando jardins meticulosos. O nosso destino final é uma loja encardida e apertada de roupas de baixo de pelo.

Essa é a glória de ser uma carreirista. A glória de ter sido quebrada na hora de tomar sua decisão mais valiosa.

Eu não poderia me importar menos sobre a aparência dos seres da Capital, mas essa mulher deixa alguma impressão na minha mente sobre nunca dizer que alguém é o “o maior de todos os tempos”. Uranius não é o maior assustador de todos os tempos. O cara com uma âncora entre as narinas que vi certa vez não é o maior exemplo de decadência de todos os tempos.

Tigris é. Em algum ponto de sua vida de prestígio como estilista do Distrito 1, ela decidiu que tentaria se parecer como um felino. Ou acentuar uma suposta semelhança, a julgar pelo nome. Então esticou o rosto até quase não ter um nariz, tatuou a pele com listras e pôs bigodes que quase arrastam no chão.

Seria patético se não fosse trágico. Mas se há algo que soa mais trágico do que isso, é ficar sem o Cato a essa altura. Então eu pressiono meu cotovelo contra as costas de Cressida e sussurro “ele está morrendo”. Ela tira a peruca e todos nós temos que fazer o mesmo. Passa um tempo nos encarando e então, sem falar nada, desaparece. Depois de um tempo, acena pra nós.

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Ficamos parados por um tempo, permitindo que todo esse beco sem saída nos envolva. O incidente com os Pacificadores já me provou que permanecer lá fora é sinônimo de morte.

Não sei quais são as intenções dessa mulher, não posso olhar muito profundamente além de anos de miséria cintilantes e festas frequentadas pelos socialites decadentes daqui, mas sei que por ser a única, é a melhor opção.

A encontro parada na beira de uma escadaria. Como Katniss foi nomeada líder e eu me classifico num estado de incredulidade com minha própria incoerência, espero que ela termine de encarar nossa anfitriã e entre na minha frente.

O lugar, um porão bolorento e minúsculo, me parece confortável como nada nunca me pareceu. Após umas rápidas viradas de cabeças com ar de verificação, Pollux e Cressida começam a montar camas com os sacos de pelos que temos aqui.

– Eu sei que você está com raiva de mim – anuncio o mais friamente possível. – Mas agora eu realmente preciso não te deixar morrer. Deixa eu ver o quão horrível isso está.

É claro que vento nenhum levou o que aconteceu lá embaixo da terra. Cato me proporcionou sentir todas as piores sensações que alguém como eu poderia sentir e você não esquece que foi traída pela única pessoa que conhecia exatamente seus medos.

Entretanto, mesmo sabendo o quão o inferno está cheio dessas pessoas, não há nada que me deixe esquecer de que ele fez tudo o que fez pelo que lhe parecia ser meu bem.

– Eu pensei que Katniss tivesse dito que ia ver – Finnick diz, trazendo curativos. – Você sabe como fazer isso, Clove?

Claro que não. Mas não é como se eu tivesse outra escolha além daquela que me diz para amputar logo o braço do Cato.

– Estou prestes a aprender – respondo, dando de ombros.

– É um caso pra experientes – ele decide, suspirando. Enquanto arruma os materiais, se vira pra Cato. – Consegue mover, cara?

O estado dele faz com que minha mente aumente o nível de alarme. Nenhuma palavra desde o apartamento da mulher e olhos fechados que sugerem um doloroso recolhimento.

Me dar conta disso impacta tanto quanto mãos estapeando minha cara milhares de vezes. Ele está aqui por minha causa. Cato foi feito por trevas e vingança por muito tempo. Quando estava disposto a ver um futuro numa casa no distrito 2, eu o trouxe para a guerra.

Eu trouxe de volta pra guerra um ferido que acaba de conseguir se arrastar do combate.

Forçando um orgulho resoluto, retiro suas camadas e nos dou uma visão completa do ferimento.

– Vou pegar água – aviso. Soaria como um pretexto para fugir se houvesse um local para que eu o fizesse. Além disso, sou a única responsável por Cato aqui. Não tenho o direito de fugir e nunca me senti tão ávida por ser útil.

Quando volto com panos encharcados, Finnick me manda sair. Diz que não vai ser bonito.

– As coisas deixaram de ser bonitas há muito tempo.

E eu me sento do outro lado dele, empurrando minha mão para se entrelaçar com a dele.

– Você pode apertar até quebrar. Não uso a esquerda pra nada.

Às vezes eu sinto que estou perdendo a respiração junto com ele. Caindo em um abismo infinito. Seco umas lágrimas e falo que já vai passar. Espalho seus cabelos pra longe, e lanço outros milhares de promessas otimistas.

Mas Cato nunca chora. Ruge, cerra os dentes, mas nunca, nunca mesmo, chora.

Sentir sua reação é confortante. Não confortável, porque ele leva um pouco à sério a história de quebrar minha mão esquerda. No fim da sofrida operação, Everdeen aparece que é hora de ele dormir.

– Você acha que vai precisar de pontos? – pergunto ansiosamente, esfregando o cabelo dele, um pouco trêmula.

– Não. Vai se fechar sozinho. Ele só precisa dormir.

– Ok. Obrigada – fico um tempo em silêncio, contemplando penosamente o rosto quase adormecido de Cato. Então ergo os olhos para o responsável pela nossa existência nesse instante. – Finnick – chamo.

Me dou conta de que tudo o que eu sei é que Finnick tem que voltar pra Annie.

Ele olha pra mim, parando de se ajeitar na sua cama improvisada.

– Obrigada. Agora eu definitivamente não tenho como pagar por tudo que você fez.

O cara do 4 sacode a cabeça, sorrindo o sorriso triste e conformado dos que sabem exatamente o que esperar.

– Ninguém está cobrando, Clove.

*******

O que Odair disse continuaria na minha mente se eu não houvesse apagado rapidamente quaisquer resíduos do que há assim que arrasto minha cama para perto da de Cato e apago. Eu deveria dormir por anos, mas um pesadelo me desperta mais cedo que todos os outros.

O que me perturba o sono aconteceu naquele mesmo duto. Dessa vez Cato tem uma espada nas mãos. A girando, ele sorri e diz o que disse: “Você vai voltar pra casa”. Mas ele está me olhando como olhava para as pessoas da arena e verbaliza mais uma palavra que faz o mundo desabar.

“Sozinha.”

Enfia a espada no coração e cai, perdendo a vida como bonecos infláveis perdem o ar.

Eu sou uma espectadora. Não me movo, de repente, nem tenho um corpo. Minha visão enquadra seu sangue e seu sorriso doentio por tanto tempo que penso que já não pode ficar pior e está prestes a acabar. No entanto, me surpreendo como todos aqueles monstros aparecendo e se curvando sobre Cato, uivando. Por entre seus corpos peludos, manchados com seu sangue, as últimas palavras dos restos mortais que um dia foram ele para mim são “É sua culpa, Clover.”

Eu acordo procurando uma ação, respirando como quem acaba de emergir da água. Ver sua expressão dolente e não doentia me tranquiliza de um modo cruel. Descubro que estou mais perto dele do que me lembro estar antes de adormecer.

Mas não vejo nenhuma razão para me afastar e estou me deitando novamente quando meu olhar é capturado por dois pontos escuros e brilhantes. Por entre as cobertas, me dou conta de que Cato está perfeitamente ciente de que acordei. Sustento seu olhar, sem ter conhecimento de mais nada a se fazer.

– Está melhor?

Eu continuo sem saber o que falar. É o Cato que está me perguntando tal coisa.

– Sou eu quem deveria estar te perguntando isso – digo, desconcertada a ponto de olhar pra baixo. Ele anui.

– De repente. Só que você não perguntou.

Isso muda o rumo da conversa.

– Então você não está melhor.

– Eu não tenho que estar melhor, Cato. Eu não fui mordida por um bestante. Ainda dói? Eu vou pegar mais bandagem pra trocar as suas.

Mas Cato nega tudo, sacudindo a cabeça para todas as palavras que pronunciei desde que abri a boca.

– Você precisa estar melhor pra não congelar quando passar por Pacificadores.

– Eu sei – sussurro, decepcionada e relutante. – Mas perder o braço soa mais urgente do que ter de se curar de colapsos.

Eu me levanto para ir pegar os curativos, mas ele diz que ainda não está na hora. Me deito de novo, constrangida.

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– Por que você não está falando comigo, mesmo? – Cato questiona depois de um tempo em que ficamos calados olhando pra direções diferentes. É essa barreira de constrangimento.

– Porque se eu o fizesse, teria então que te pedir desculpar por te trazer pra cá para quase perder um braço.

– Ah. Compreensível. Se você estivesse falando, eu aceitaria suas desculpas.

– Bom. Eu diria “obrigada”.

Então eu efetivamente me deito de volta.

– E eu te conheço bem o bastante pra não atribuir culpa nenhuma a você, Clove.

Bom. Isso derruba um problema da minha pilha.