Doppelgänger: Primeiro Dia

Capítulo 10 - Má sorte


Humanos se perguntam sobre o rumo de seus pensamentos após se depararem com o insólito. Esquecê-lo como um sonho insano tido enquanto acordado ou considerá-lo eternamente? Léo tinha que decidir…

Devo recomeçar a refletir do momento em que a ave me encarou perto da estátua, naqueles segundos, naqueles instantes que pareceram se arrastar mais que o normal. Algo mudou naquela hora, senti-me como se houvesse aberto alguma porta e metesse os olhos através da pequena fresta para observar coisas inacreditáveis. Mas não cheguei a abri-la totalmente, ou porque estava estupefato demais com o que via (ou sentia), ou porque a porta foi fechada antes disso. De qualquer maneira, uma experiência inteiramente anormal.

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Foi possível, naquela ocasião, desprezar o ocorrido supondo que minha imaginação tenha enaltecido as sensações. Numa análise racional, havia visto uma ave rara de Ventura, nada mais. O visual sinistro da gralha devia ter me passado algumas impressões ruins, e, estimulado pelo contexto misterioso do lugar e sua relação com as aves, acabei intensificando essas impressões.

Mas, e agora? Como posso explicar o fato de uma ave ter afugentado os garotos que me amolavam e ter me dado um cartão cujo significado não fazia o menor sentido? Uma palavra e uma sequência de números inscritos num cartão… Bom, considerando que não sou uma pessoa tão cética e o ambiente comumente misterioso onde me encontro, talvez não seja nenhum absurdo tratar isso com seriedade. Definitivamente, algo incomum aconteceu, e não posso ignorá-lo.

No entanto, não consigo conceber qualquer explicação para o pássaro ou o cartão. Decido então guardar esse cartão no bolso e deixar o enigma de lado para me concentrar num problema concreto: a tinta melada na face e nos braços. Saio andando com a pretensão de encontrar o banheiro mais próximo. Volto à entrada do prédio e percorro finalmente os corredores, atento a qualquer sinal de banheiro masculino. No percurso, recebo olhares: na maioria, curiosos; outros, complacentes; e alguns poucos desdenhosos. Estes últimos sem a menor preocupação de que eu os ouvisse dizer: “Sempre tem uns trouxas que levam trote.” Como eu gostaria que um deles estivesse no meu lugar para saber como é bom ser visado por olhares de escárnio!

Enfim, vejo uma placa azul afixada na parede cor de barro do corredor, e ao lado dela uma estreita passagem que dá acesso ao banheiro masculino à direita e o feminino à esquerda. Será um alívio não ser mais vislumbrado neste estado pelas pessoas.

O banheiro é bem amplo. Há oito divisórias e um mictório largo, além de uma extensa pia. Uma única janela comprida deixa a luz do dia penetrar no recinto. Procuro o interruptor, e a lâmpada aparenta estar queimada. Mas está claro o bastante para que me veja nitidamente no espelho; o rosto totalmente coberto por uma camada de tinta que começa a secar e a irritar os olhos, afora algumas finas sujeiras na camisa.

Sorte a minha, o recinto está desocupado. Ficaria meio incomodado se alguém me visse limpando a pintura que deixei fazerem em mim. Lavo a mão na água corrente e passo-a avidamente no rosto, sentindo a camada azul desprender-se da pele. Que boa sensação! Paro imediatamente quando ouço um gemido atrás de mim. Vem de uma das divisórias que está trancada. Nem me passou pela cabeça que poderia haver alguém ali conjurando o “número 2”. Volto-me para a torneira e recomeço a lavar o rosto, dessa vez com mais pressa. Passo para os braços e continuo escutando um gemido de alguém que está fazendo uma força incrível. Mais um pouco e poderei sair daqui! Chega aos meus ouvidos o que parece um sonoro alívio, seguido do característico som do papel higiênico sendo desenrolado.

Termino! Neste exato instante, escuto o trinco da porta da divisória e, através do espelho, vejo o Barril saindo com cara de enjoo.

É brincadeira, não é?

De todas as pessoas que poderiam estar cagando ali, tinha que ser justamente o gorducho cheio de piercings que me deu o trote? Será que a má sorte daquela gralha continua pairando sobre mim? Se é assim, porque isso não afeta o Barril também?

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— Olha só quem tá aqui! — exclama ele com o “i” bem arrastado. Penso rápido e ando na direção da porta do banheiro, mas não rápido o suficiente para impedir que Barril se coloque no caminho. — Vai pra aonde, moleque? — Ele tenta me intimidar.

Procuro sustentar uma expressão firme, sem medo.

— Eu não estou querendo papo, cara — digo, evasivo.

— Mas eu quero! — Ele aparenta estar irritado, meio transtornado. — Tipo, aquela parada que aconteceu agora há pouco foi estranha pra cacete, e muito ridícula também. A porra daquele pássaro começou a me bicar e tive que correr. Não sei, fiquei meio… puto, sabe. Meus amigos ficaram me zoando porque fui amedrontado por um pássaro. Não sei o que me deu naquela hora, falo sério. Mas fiquei bolado e preferi deixar você pra lá. Pensei que depois a gente ia se encontrar e continuar de onde paramos, mas não imaginei que seria tão cedo. — Agora sim, aquele sorriso malicioso, de antegozo pelas suas brincadeiras, estampa seu rosto.

— Olha, eu…

— Já bebeu água do vaso?

Droga! Isso não!