Eu e senhora Valéria chegamos ao charmoso local em que Milo e eu amávamos tomar o café da manhã. Eu empurrava a senhora Valéria na cadeira de rodas. Assim que entramos, um garçom veio ao nosso encontro. Porém, não foi preciso que ele nos auxiliasse. Logo vi Milo, junto com Aioros e Seiya. Estranho! Onde estava Saga e Hyoga? Antes de entrar em devaneios sobre onde poderiam estar, me aproximei da mesa.

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— Camye, que bom que chegou! Vocês demoraram. – disse Milo.

— Depois lhe explico tudo. – apenas olhei para meu marido e ele entendeu que era assunto para mais tarde. – Aioros, Seiya, bom vê-los novamente. – disse sorrindo de leve.

— Ontem nem deu para conversarmos muito, né Camus?! Mas Saga e eu ficaremos mais um tempo aqui em Paris, poderemos nos encontrar mais vezes. – disse Aioros sorrindo docemente.

— Será um prazer! – respondi educadamente. – Antes de mais nada, gostaria de apresentá-los. Essa é a senhora Valéria, avó adotiva de Hyoga. Acredito que já o tenha conhecido. – Aioros afirmou com a cabeça. – Senhora Valéria, esse é Aioros e seu filho Seiya. Somos amigos de velha data.

— Prazer, senhor Aioros, Seiya. – senhora Valéria sorriu.

— Prazer, senhora Valéria. – disse Aioros.

Seiya permaneceu calado, apenas sorriu. Ele ficava muito inibido perto dos adultos, pois sabia que se fizesse algo errado, Saga ralharia com ele mais tarde. Sentei-me e ajeitei a cadeira de senhora Valéria na mesa. Passei o cardápio para que ela pudesse escolher o que iria comer.

— Onde estão Saga e Hyoga? – questionei.

— Eles foram ao banheiro. Estranho, já era para terem retornado. – respondeu Aioros. – Vou atrás deles.

Antes que Aioros pudesse se levantar, vimos Saga e Hyoga vindo em direção à mesa. Hyoga pareceu contente por ver a avó, mas seu rosto estava tão pálido. Não pude deixar de reparar que, além da palidez, seus olhos estavam bem vermelhos e suas olheiras bem profundas. Aquilo era preocupante! Hyoga passou pela avó, lhe dando um beijo no topo da cabeça. Ver o cuidado que ele tinha com ela, me enchia de orgulho. Isso só demonstrava para mim que aquele menino rebelde e sem educação não era meu menino de verdade. E a cada momento que eu passava ao lado dele, isso se confirmava mais. Só esperava que isso continuasse, pois eu não tinha boas notícias para dar.

— Camus, resolveu dar o ar da graça. – disse Saga, chamando minha atenção.

— Tive que dar um pulo no hospital antes de vir para cá. – respondi. – A propósito, essa é a senhora Valéria, avó adotiva de Hyoga. Senhora Valéria, esse é Saga, esposo de Aioros.

— Prazer, senhora. – Saga cumprimentou.

— Prazer. – ela respondeu.

— Então chegou quem vai nos contar toda a história de Hyoga. Confesso que estou curioso desde ontem, quando me disse que tinha um filho biológico. – Saga iniciou o assunto.

Eu dei uma leve suspirada. Não queria falar sobre aquilo naquele momento. Ainda mais com Hyoga e a senhora Valéria ao meu lado. Os dois já estavam bastante sensibilizados pela data. Ter que relembrar toda a história novamente não parecia pertinente. Mas não tinha como escapar daquilo. Comecei a contar, tentando não entrar muito em detalhes. De vez em quando eu olhava de soslaio para meu filho, tentando ver se estava desconfortável com aquilo. Claro que era só pra confirmar; ele não parecia nem um pouco confortável com aquela situação. Tentei ser o mais breve possível, mas era difícil. Era tudo muito complicado para resumir tanto. E quanto mais eu resumisse, mais eles perguntariam depois. Aquele assunto acabaria se estendendo mais do que eu gostaria.

— Pôxa, Camus! Que situação complicada! – Aioros falava um tanto quanto ressentido pelo que ouvira. – Mas que bom que tudo isso já passou! Agora podem focar em uma nova fase da vida de vocês.

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— Com certeza! – respondi.

— Bom, acho que levando em consideração o quão recente foi tudo isso, imagino que estejam buscando um pouco mais de tempo a sós. – Saga falou, surpreendendo-me novamente. Ele realmente se tornara um bom amigo. – Podemos ir, não é Aioros?

— Claro, querido. – ele respondeu, já se levantando.

— Bom, devemos ficar por mais tempo na cidade, então ainda nos veremos antes de partirmos. Ligaremos antes, avisando.

— Será muito bom recebermos vocês em nossa casa, novamente. – Milo disse, cordialmente. – E fala pro Kanon deixar de ser sem educação e aparecer antes de ir também.

— Pode deixar. – respondeu Saga, rindo de leve. – Mas direi para ele deixar para mais próximo da partida. – olhei agradecido para Saga, que entendera a situação delicada em que nos entrávamos.

Despedimos-nos e logo estávamos apenas Milo, Hyoga, senhora Valéria e eu.

— Então? Para onde querem ir agora? Temos o dia todo! – disse Milo, empolgado.

Hyoga e a senhora Valéria se entreolharam. Eu sabia que Hyoga não queria ir em lugar algum. Milo provavelmente sabia disso também, mas estava tentando animá-los da maneira como sabia fazer. Se nenhum dos dois dissesse nada, sugeriria para irmos para casa. Mais tarde, caso eles quisessem, poderíamos sair.

— Eu tenho um pedido. – senhora Valéria nos surpreendeu, um pouco corada. – Eu sempre quis conhecer a torre Eiffel.

Eu e Milo nos entreolhamos, sorrindo. Como não acatar um pedido tão sincero e puro daqueles? Confesso que não era meu ponto turístico preferido, mas a maior parte das pessoas que passavam em Paris, queriam conhecê-lo. Não era de se estranhar.

— Então, vamos à torre Eiffel. Seu pedido é uma ordem. – disse Milo, fazendo reverência, apenas brincando.

— Não faça isso, senhor Milo. Assim fico encabulada. – vimos sua alva face ficar vermelha e rimos.

— Milo, poderia ir com a senhora Valéria, agora? – pedi ao meu marido.

— Ok, Camye. Nos encontraremos lá então. Você me liga?

— Sim.

Ele me deu um beijo estalado nos lábios e saiu com a senhora Valéria, andando e conversando com bastante humor. Milo era a companhia perfeita para aquela senhora. Ele era muito alto astral e sabia ouvir quando precisava. A senhora Valéria poderia contar todas as histórias que conhecia, quantas vezes quisesse, e Milo, ainda assim, ouviria com todo prazer e genuíno interesse.

Vi os dois saindo pela porta. Virei-me para meu filho. Ele estava um pouco cabisbaixo. Era difícil, para mim, vê-lo assim. Fiquei me perguntando quando foi que aquele sentimento se tornou forte aquele ponto. Ele havia chegado de repente, tinha apenas dois dias. Entretanto, parecia que ele jamais saira do meu lado. Era como se eu o conhecesse por toda sua vida. E aquele calor no peito apenas aumentava. O calor que sentia todas as vezes que olhava dentro daqueles diamantes, que transpareciam tristeza, mas uma pureza ímpar. Pra quem não queria ser pai, eu estava me saindo um daqueles bem corujas. Sorri com o pensamento. Nunca havia entendido ao certo porque Natássia e Milo tinham tanta certeza de que eu seria um bom pai. Bem, pelo visto eles me conheciam melhor do que eu mesmo. De fato, o instinto protetor que estava sentindo naquele momento era assombroso. Eu apenas queria colocar Hyoga em meu colo e dizer-lhe que nada mais o atingiria. Eu o protegeria do mundo, se assim fosse necessário. Queria que ele entendesse isso o quanto antes. Queria que aquela tristeza profunda pudesse abandonar seu olhar e desse espaço a mais doce alegria. Faria isso por Natássia. Faria isso por Hyoga!

Aproximei-me de Hyoga e segurei seu rosto entre minhas mãos. Sua pele estava fria. Suspirei pesadamente.

— Meu filho, olha só pra você. Está pálido, olhos vermelhos, olheiras profundas. Está a ponto de ter um colapso por exaustão.

— Não seria a primeira vez. – ele me sorria de maneira melancólica, o que apertava meu coração.

— O que posso fazer para te ajudar? Estou preocupado. Devo levá-lo a um psiquiatra?

— Por favor, não. – senti algo em seus olhos, o que me chamou atenção. – Eu apenas preciso de tempo.

— E de quanto tempo estamos falando? – questionei, levantando minha sobrancelha.

— Não sei. – ele disse, me fazendo suspirar novamente. – Olha, não quero ser atrevido nem nada, mas existem certas coisas que você simplesmente não pode fazer nada para mudar.

— Você está certo. Mas posso lhe dar novas experiências, que farão com que essas se tornem menores. – respondi, fazendo com que ele suspirasse, dessa vez.

— Existe algo que eu possa fazer para que você pare de se preocupar dessa forma?

— Bom, se você me contasse tudo, já seria um começo. – tentei ser sutil, não queria forçá-lo a nada. Mas apenas o vi abaixar o olhar, em resposta. – Não confia em mim, não é? – antes que ele pudesse dizer algo, me antecipei. – Não o julgo por isso. Confiança é algo que se constrói. E eu vou te provar que sou digno da sua.

Dei um beijo em sua testa e me levantei.

— Vamos! Milo e sua avó nos esperam.

Estendi a mão e ele a segurou. Paguei a conta e saímos.

Não falamos mais nada durante o caminho. Ele parecia um pouco melhor, mas ainda absorto em pensamentos. Será que o que eu disse o afetou de alguma forma? Será que minhas palavras o estavam convencendo, mesmo que aos poucos? Eu bem sabia que, dependendo do que estivesse em seu passado, ele dificilmente me contaria. Mas também sabia que ele não esconderia por muito tempo. Nosso encontrou mexeu tanto com ele quanto comigo. A certeza com a qual ele chegara em nossa casa já não era a mesma. Eu podia perceber que ele estava começando a se questionar. Não sabia sobre o que, mas ele já não tinha mais convicção do que faria. Eu realmente não entendia muito bem. Ficava me coçando para perguntar para Milo as teorias que ele criara. Milo tinha uma intuição fantástica. Normalmente, suas teorias acabavam se revelando grandes verdades. Mas eu não queria recorrer a Milo toda vez que não entendesse algo sobre meu filho. Eu queria entender por mim mesmo. Eu queria conhecê-lo por mim mesmo. Queria saber tudo sobre aquele jovem. Seus medos, seus traumas, suas inseguranças, suas certezas, suas alegrias, seus gostos, suas manias; tudo! Queria saber como ele se sentia só de olhar. Queria ajudá-lo a se livrar daquele enorme fardo que ele parecia carregar.

Chegamos à torre Eiffel e logo avistamos Milo e a senhora Valéria. Eles pareciam conversar animadamente. Sorri de leve. Pelo menos a senhora Valéria parecia melhor. Isso era bom pra ela. Pensar na situação em que ela se encontrava me deixava bastante preocupado. Claro que não podia afirmar nada, mas pelo que pude acompanhar dos exames, a situação era muito mais delicada do que ela havia me contado. Isso me preocupava muito. Do jeito que estava, eu não teria como esconder nada de Hyoga. Já não me agradava muito ter que esconder isso dele, de qualquer forma. Eu teria que conversar com a senhora Valéria sobre aquilo. Afinal, por que ela tinha tanto receio que Hyoga soubesse? Claro que o abalaria, ele claramente a amava. Não seria uma informação fácil de processar. Mas eu estaria ao seu lado! Eu estaria ali! Não era como da outra vez! Ele teria o suporte que precisava, isso eu garantia! El não ia se sentir sozinho. Não ia se sentir perdido. Não ia se sentir abandonado. Então não tinha necessidade para guardar qualquer coisa dele. Precisava convencer a senhora Valéria disso.

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Os três caminhavam a minha frente, conversando. Milo sabia como trazer o sorriso aos lábios das pessoas. Até mesmo Hyoga sorria, de vez em quando. Eu não queria ser o portador de más notícias e arrancar o sorriso deles. Senti meu celular vibrar. Não costumava olhar o celular nesses momentos, mas algo me dizia que era importante. Vi uma mensagem de Aldebaran. Era uma prévia dos exames de senhora Valéria. Dei uma olhada por alto e senti meu coração se apertar. Minha intuição estava certa. A situação não era nem um pouco favorável. Droga! Droga! Droga! O que eu faria agora? Devia contar o mais rápido possível? Devia esperar? Claro que não! Precisava de uma intervenção rápida. Mas seria razoável contar para Hyoga outro dia? Dar-lhe essa notícia no dia em que se lembrava da morte da mãe, talvez fosse demais. E, ao mesmo tempo, eu precisava ser rápido. Se tinha qualquer chance de que as coisas não se complicassem assim mais, eu precisava agir o quanto antes. E para isso, precisaria de uma intervenção mais agressiva. Olhei para Hyoga sorrindo a minha frente. Como eu queria que continuasse daquele jeito! Tudo que eu vira desde que ele chegou foram suas lágrimas. Por quanto tempo mais eu teria que vê-lo daquele jeito? Quanto tempo mais meu filho teria que sofrer? Já não bastara todos aqueles anos? Nem mesmo quando a luz da esperança começava a brilhar em sua vida, o destino permitiria que ele saísse daquele poço onde o jogara? Balancei minha cabeça. Eu não era aquela pessoa pessimista. Precisava ir com calma. Sempre fui racional. Não começaria a agir por impulso. Principalmente agora que meu filho estava comigo. Ele precisava de segurança! Eu não podia vacilar.

— Camye? – senti Milo pousar a mão em meu ombro, com um olhar preocupado.

— Sim, mon ange? – respondi, tentando passar a sensação de que estava tudo bem.

— Você parecia consternado. Aconteceu alguma coisa? – eu não podia mentir para ele novamente.

— Aconteceu sim, mas tudo a seu tempo. Assim que eu puder, lhe direi tudo. – tentei falar mais baixo, para que Hyoga não escutasse.

Milo não me questionou. Ele sabia que não adiantaria perguntar nada naquele momento. Ele apenas voltou-se para Hyoga e a senhora Valéria e continuou conversando.

Não demoramos muito mais e já estávamos voltando para os carros. Embora Milo quisesse passear mais, Hyoga queria voltar para casa. Convenci meu marido a irmos embora e, caso quisessem sair mais tarde, poderíamos dar umas voltas. Paris era mais bonita à noite mesmo. Mas eu sabia que provavelmente não voltaríamos a sair naquele dia. Se tudo corresse como eu queria, o dia não terminaria exatamente feliz.

POV Milo

Eu estava empolgado. Aquele passeio à torre Eiffel tinha sido uma excelente ideia. Tanto Hyoga quanto a senhora Valéria estava distraídos, até mais sorridentes. Porém, Camus parecia extremamente preocupado com algo. Não me surpreendi quando ele disse que tinha acontecido alguma coisa. Eu sabia o quanto ele queria se aproximar de Hyoga. Mas naquele momento ele parecia distante de todos, perdido em seus próprios pensamentos. O que será que o estava preocupando daquele jeito? Pelo jeito que ele falara, não adiantaria perguntar nada, ele não diria. Eu detestava quando ele fazia isso. Ele sabia que eu era extremamente ansioso, ficava ainda mais quando ele falava daquele jeito sério. Mas não adiantava, eu teria que esperar.

De volta aos carros, tentei de tudo para que pudéssemos ir a mais algum lugar. Aquilo estava fazendo tão bem a eles. Era perceptível. Claro, eu vi que Hyoga não estava muito confortável no restaurante. De fato, não era bem meu plano encontrar com Saga e Aioros. Mas não tinha como não sentar com eles. Volta e meia eu olhava para Hyoga, para ver se estava muito insuportável. Cheguei a ficar inquieto com a demora dele no banheiro. Graças aos céus Camus chegou com a senhora Valéria e não demorou muito para que nossos amigos fossem embora. Não sabia o que tinha acontecido entre Saga e Hyoga, mas ele parece ter percebido que a situação estava meio delicada. De qualquer forma, mesmo que tenha sido desconfortável, agora que estávamos só nos quatro as coisas pareciam bem melhores. E ir para casa naquele momento não estava em meus planos. Mas Camus resolveu ceder ao pedido de Hyoga e, como ele estava preocupado com algo, achei melhor não insistir. E se tivesse relação com Hyoga e a senhora Valéria? Talvez por isso ele tivesse concordado em voltar pra casa mais cedo. Se esse fosse o caso, eu queria saber o que estava acontecendo o mais rápido possível.

No caminho de volta, Hyoga e a senhora Valéria voltaram comigo. Camus disse que tinha algo a fazer antes de ir para casa. Não perguntei nada, apenas pedi para que ele não demorasse. No carro, eu tentava puxar assunto, mas apenas a senhora Valéria parecia interessada. Hyoga olhava pela janela, totalmente perdido em pensamentos. Ele estava muito instável. E por mais que eu me esforçasse em animá-lo, eu sabia que ele não ficaria feliz tão fácil assim. Mas eu não desistiria!

Chegamos em casa. Achei melhor levar a senhora Valéria para o quarto e deixar que ela repousasse. Mesmo sob seus protestos, carreguei ela escada acima. Se Camus teve o trabalho de buscar uma cadeira de rodas para que ela se locomovesse, provavelmente não era bom que ela ficasse subindo e descendo as escadas. Hyoga e eu deixamos o quarto dela e nos dirigimos para a sala.

— Então? O que quer fazer? – perguntei a Hyoga.

— Bom, meu plano era ficar no quarto, deitado. Mas sei que você não vai deixar. – ele respondeu com humor, o que me deixou mais feliz.

— Está aprendendo. – respondi, sorrindo. – Para que não fique muito injusto, podemos fazer algo que goste. O que costumava fazer na Sibéria para passar o tempo? – ele deu que ia falar, mas eu cortei. – Exceto ler.

— Assim fica difícil. – ele deu uma pausa, parecia pensar. – Bom, eu gostava de cozinhar. Posso fazer o almoço. Já comeu comida russa, né?

— Por incrível que pareça, nunca comi nada típico da Russia.

— Ótimo! Então hoje você vai experimentar um dos pratos mais populares da minha cidade. Só preciso saber se vocês tem todos os ingredientes.

— Vamos à cozinha e eu te mostro onde estão as coisas.

Levei-o até a cozinha e mostrei onde estava tudo, enquanto ele me falava do que precisava. Logo ele começou a preparar tudo. Sentei-me à mesa e observava enquanto ele trabalhava.

— Quer dizer que você fala quatro línguas, gosta de estudar e ainda cozinha?! Desse jeito não vou conseguir me enturmar com outros pais. Do que vou reclamar de você? – perguntei com humor.

— Você ainda pode desistir da ideia de me querer como filho. Aí não vai precisar se preocupar com essas coisas.

— Boa tentativa, mas você sabe que isso não vai acontecer.

— Eu sei. – ele falou em um tom um pouco melancólico. Achei melhor ignorar e mudar de assunto.

— Então seus hobbies são ler e cozinhar? Não fazia mais nada para passar o tempo?

— Não. – de alguma forma eu sabia que ele estava mentindo. – Eu morava numa pequena vila, não tinha muita coisa pra fazer. Qualquer coisa muito diferente disso, eu precisava caminhar até a cidade. Não era tão longe, mas dava quase uma hora de caminhada. Dependendo de como o clima estava, não dava pra sair de casa e percorrer uma distância daquelas.

— Entendi. Mas, pelo que sua avó disse, era você quem ia à cidade para comprar comida e remédios, não é?

— De uns anos para cá, sim.

— E você apenas ia ao mercado e farmácia? Não passava em nenhum outro lugar? – vi que ele ficou calado por alguns segundos. Aquela pergunta o fez lembrar de alguma coisa.

— Não. – ele respondeu de uma maneira mais seca.

— Você mente muito mal.

— Por que eu mentiria sobre isso?

— Não sei. Me diga você.

Ele ficou calado. Eu tinha prometido ao Camus que não o forçaria a nada. Mas aquela situação já estava me incomodando muito. Mesmo que Hyoga superasse a morte da mãe, o que já seria difícil, ainda teríamos que lidar com outra coisa que sequer sabíamos do que se tratava. Quando falei minha teoria para ele, senti que algo muito errado tinha acontecido. E, por alguma razão, parecia afetá-lo ainda no presente. Como se houvesse algum medo real, algum contato recente. Não sabia explicar. E se de algum modo eu estivesse certo sobre a existência de mais alguém em sua vida? Quem seria essa pessoa? Que tipo de contato ele ou ela tivera com Hyoga? Pela reação dele, não era algo muito agradável. Mas o que poderia ser? Exploração infantil? Abuso sexual? Qualquer hipótese era terrível! Imaginar que Hyoga pudesse passar por qualquer coisa nesse sentido era assombroso. Por mais que eu soubesse que eu tinha um sexto sentido pra essas coisas, esperava estar errado. Talvez, pela primeira vez na vida, eu não queria estar certo sobre minha intuição. Emboras as reações de Hyoga ao assunto não ajudassem muito.

— Que cheiro bom! – fui tirado dos devaneios com a chegada de Camus. – Hyoga cozinhando?

— Ele disse que nos faria um almoço russo hoje. – respondi ao meu marido.

— É mesmo? Sempre quis experimentar.

— Minha mãe nunca cozinhou para você? – Hyoga perguntou.

— Não sei se sua avó já lhe contou algo sobre isso, mas sua mãe era um desastre na cozinha. Ela detestava cozinhar. – Camus pareceu lembrar-se de algo com certa nostalgia.

Ver Camus se lembrando de Natássia daquela forma era muito difícil para mim. Antes, ele evitava a todo custo se lembrar dela. Mas agora, ele parecia sentir-se feliz ao trazê-la de volta à memória. Ok, era sim meio patético ter ciúmes de uma pessoa que já havia morrido! Eu sabia disso. Mas eu já não estava mais tão seguro de que conseguiria oferecer a Camus algo mais que ela. Quer dizer, eles tiveram um filho! Mesmo que Camus não tivesse muito interesse em ser pai, ao se ver naquela situação, eventualmente ele acabaria gostando. Não era à toa que eu vivia insistindo com ele para que adotássemos um filho ou filha. Eu sabia que Camus queria ser pai, lá no fundo. Mas por alguma razão ele bloqueava esse desejo. Até onde eu sabia, ele também não tivera uma boa relação com o pai, podia ser por isso.

— Então ele puxou isso de você, Camye. Sua comida é maravilhosa. – tentei mudar de assunto.

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— Ele pode ter aprendido com a senhora Valéria. Ela disse que é uma exímia cozinheira. – ele respondeu.

— Bom, vamos descobrir hoje, de qualquer forma.

Não demorou muito para que o almoço estivesse pronto. Ele nos serviu e explicou qual era a melhor maneira para se comer aquele prato, de acordo com as tradições russas. Ele quis levar para a senhora Valéria, mas Camus o impediu. Disse para comer primeiro e depois ele mesmo levaria para ela. Hyoga não discutiu, sentou-se para comer.

— Caramba! Isso é muito bom! – falei.

— De fato, mon ange. Está delicioso. – foi a vez de Camus, elogiar.

— Isso não é nada. – vi que Hyoga corou de leve. Fiquei com vontade de apertar ele todo, tão fofo.

— Claro que é! Pro Camus elogiar a comida, tem que ser muito bom. Ele é super exigente. Eu tive que ralar na cozinha pra ele aprender a gostar da culinária grega.

— Não é bem assim. – Camus fechou a cara e eu comecei a rir. – Bom, eu já terminei. Vou servir e levar para a senhora Valéria.

Camus deixou a cozinha, ficando apenas Hyoga e eu novamente. Ele não parecia muito interessado em conversar naquele momento. Achei melhor não ficar forçando também. Fiquei apenas observando-o. O que será que estava passando naquela cabecinha? Ele se mostrou de tantas formas diferentes desde que chegara que eu não podia dizer, com certeza, quem ele realmente era. Gentil, educado, atencioso, rebelde, atrevido, arrogante; parecia tudo verdade e ao mesmo tempo muito contraditório. Lembrava um pouco eu mesmo, quando tinha sua idade. Embora eu fosse muito mais genioso que Hyoga, eu viva indo de um extremo a outro. Era sempre tudo muito intenso. Podia ser extremamente gentil, educado e simpático para ter algo que queria. E podia ser extremamente rebelde, desobediente e atrevido quando era afrontado. Hyoga não parecia tão consciente disso, mas estava nessa onda. Ou pelo menos tentava estar nela. Provavelmente ele não entendia o que acontecia dentro de si mesmo. Sua instabilidade parecia a reflexão de sua confusão. E eu simplesmente não conseguia não pensar que era por conta da possível pessoa que ele conhecera na Sibéria. Ele parecia não conseguir quebrar aquele laço. Por que? Claramente era alguém que tinha lhe feito mal. Por que ele parecia preso naquilo então? Era muita coisa que eu precisava considerar para entender aquele garoto. Seu trauma com a mãe, a falta do pai e esperança em um dia encontrá-lo, a pessoa misteriosa que havia feito-lhe alguma coisa. Quantas coisas mais apareceriam para assombrar meu pequeno?

Ele comia lentamente. Estava tão absorto em pensamentos que nem percebeu que eu o estava praticamente encarando. Reparando em cada traço de seu rosto, seus cabelos dourados caindo-lhe sob os ombros, aquelas cicatrizes na mão direita. Cicatrizes? Espera, eu não tinha reparado naquilo antes. Pareciam ter sido cortes profundos. O que seria aquilo?

— Hyoga, o que são essas cicatrizes na sua mão? – não me aguentei, tive que perguntar.

— Hã? – ele pareceu meio perdido, mas assim que processou minha pergunta, escondeu a mão para que eu não visse mais. – Não é nada. Caí em uns cacos de vidro quando era criança. – claramente outra mentira.

— Você sabe que não consegue mentir pra mim, não é?

— Então por que não para de perguntar? – foi uma má resposta. Assim que ele percebeu, pareceu se arrepender. – Desculpa, não quis ser grosseiro.

Fiquei sem reação por um momento. Quando ia falar algo, fui interrompido por Camus, que entrou na cozinha.

— Hyoga, precisamos conversar. – disse Camus.

Continua...