– O que quer dizer com ele saiu? – A voz de Alaric agora era alta e precisa, como de um militar estressado.

– Voraz saiu – Repeti as palavras da forma mais clara possível – A droga do quinto satélite saiu!

– Como você pôde deixá-lo ir? – Alaric se aproximou de mim, erguendo seu arpão na altura do meu pescoço. Eu recuei, até ser encurralada por uma das mesas do refeitório que surgiu atrás de mim. Arfei enquanto ergui meu machado e me mantive na defensiva – A nossa única saída daqui, e você simplesmente o deixa ir? – Ele soprou a última palavra com um ar de raiva não contida, enquanto continuava resmungando coisas para si mesmo.

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Esse era Alaric, afinal. Seu jeito tão duro e rude de lidar com as coisas, tão impulsivo imprevisível que chegava a ser respeitoso.

– Acho que deixar que ele decida o que fazer é o certo. Agora que ele sabe de qualquer maneira – Dei de ombros, enquanto senti a respiração pesada de Alaric se suavizar e ele se virar para trás, de repente gritando com os outros dois que estavam ali – Estamos saindo. – Ele informou em um tom gélido e sem emoção – Procurar a droga do satélite que deixamos escapar.

Ele se afastou enquanto procurou impaciente pela aljava de projéteis para seu arpão. Simplesmente o encarei, me afastando sorrateiramente antes que a próxima explosão de raiva dele pudesse ser perigosa.

Nicolle e o outro garoto gordinho que seguiam Alaric de perto se levantaram em um salto. A garota ruiva logo alcançou sua lança quando Alaric deu as ordens, ela estava bem sorridente, enquanto arrumava uma faca no cinto e vestia as luvas de couro, se aproximando de mim no processo.

– Então, sabe pra onde ele foi? – Ela disse com uma voz surpreendente calma.

– Onde estão Theo e Pan? – Perguntei, ignorando a pergunta dela.

– Os pombinhos saíram mais cedo, acho que vamos ter encontrá-los antes de caçar o outro – Alaric respondeu, agarrando a mochila e a jogando nas costas. Seu braço mecânico rangia hora ou outra enquanto ele avançava até a frente de nós, seguido de perto pelo gordinho com um bastão de metal e os dois saíram na frente, tão sérios e determinados como se estivessem indo para uma caçada. – Vamos. – Nicolle murmurou ao meu lado, enquanto nós duas seguimos os dois com certa relutância.

_ _ _

Talvez fosse inútil caçar algo que eu já sabia que estava morto. E não foi por isso que Voraz decidiu se despedir mais cedo, quando soube? É claro, agora mais do que nunca, eu não queria que o rapaz com o pulso em ‘v’ posse tão duro com o seu próprio julgamento. Em outros tempos, eu teria dito que ele foi precipitado ao sair assim, poderíamos ter encontrado a solução, afinal, e ele não precisaria fazer isso – eu não queria que ele o fizesse – Mas como estamos falando de Voraz, posso dizer que seja qual for à decisão que ele tomou, será retratado como um mártir.

E se ele ainda não tomou uma decisão – uma chama de esperança surgiu ao pensar nisso – poderia impedir que ele fizesse o pior. Deveria impedir que fizesse, e não ser fraca e o deixar partir quando tive a chance de impedi-lo. Poderia tentar atrasar Alaric e os outros quando o encontrassem porque era obvio que não iam resgatá-lo para levá-lo para casa: eles estavam caçando Voraz para matá-lo. E uma pontada de dor atravessou meu peito ao pensar nisso.

Caminhávamos por uma fila certa, liderada por Alaric, seguido pelo gordinho, depois por mim e Nicolle por último. A ideia de termos conseguido um abrigo afastado da cidade na qual o resto da fase se passava parecia brilhante: o prédio onde estávamos refugiados era cercado por terrenos baldios e antigas construções quase demolidas e rodeadas por cercas elétricas. Foi quando caminhávamos para o penhasco onde Theo e Pan geralmente se encontravam – o penhasco um pouco afastado, depois de atravessar dois quilômetros do arvoredo fechado de uma mata urbana. Mas antes, passamos pelo jardim.

O jardim onde Voraz enterrou Maysa. Eu o observei cavar a sepultura da garota por um bom tempo, talvez fosse algum tipo de provação que ele devesse para si próprio. Eu nunca pensei que seria realmente necessário enterrar um corpo por aqui, nós nunca sabíamos o que ia acontecer a seguir ou se o próximo corpo seria o seu.

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Nós seguimos uma caminhada silenciosa até onde Alaric dissera que era o penhasco. Demorou um pouco para chegar lá, talvez uma meia hora, e a cada segundo a tensão aumentava com Alaric balbuciando coisas para si mesmo enquanto liderava e olhava para os lados em intervalos regulares, como se esperasse ser apunhalado pelas costas ou algo assim.

– Ele está ficando paranoico com essa história de satélite – Nicolle sussurrou atrás de mim.

Numa clareira onde o arvoredo do bosque se dissipou um pouco, abriu passagem para uma trilha mal feita. As arvores dali tinham as características de uma mata urbana, com as folhas mais verdes e bem cuidadas, os troncos ora ou outra rabiscados com nomes de pessoas e corações, as sombras das árvores mais altas tinham toalhas de piqueniques no chão entre suas raízes. E quando chegamos ao limite do bosque, havia uma cerca que impedia que avançássemos, mas é claro que como Pan, Theo e provavelmente Voraz já tinham passado por aqui, a cerca estava arrebentada.

E podíamos ouvir um choro abafado pelas árvores ao longe.

– Venham! – Alaric gritou ao começar a correr, e todos o seguiram. O choro era alto e desesperado, quase perdendo as forças e a pessoa – provavelmente uma menina – arfava em intervalos curtos com soluços e gritos incrédulos.

E foi então que o céu se partiu.

Foi com um estrondo tão grande que todo o chão tremeu. Nós estávamos correndo para alcançar o choro abafado, e então tudo começo a tremer, o chão parecia ter entrado em colapso, as árvores se agitaram de forma mecânica e uma sirene baixa tocou. A mesma sirene que tocavam em todos os desafios, com o som estridente de metal contra metal. O tremor foi intenso, mas rápido. Todos olharam assustados uns para os outros enquanto se agarravam a uma árvore como se suas vidas dependessem disso.

O sol, fraco por entre as nuvens se apagou, e não se apagou de ‘sua luz sumiu’, mas ela foi substituída. Em um momento o sol brilhava quente e vivo, no outro havia sido coberto por uma imensa nuvem negra e agora novamente o dia havia escurecido. Ninguem disse uma única palavra por um tempo, eu podia apenas ouvir a respiração pesada de Alaric ao meu lado, impressionado.

– Está quebrando – Ele sussurrou, tão baixo quanto uma oração. E então segui seus olhos azuis e encarei o céu: as nuvens brancas e cinzas que cobriam a massa azul celeste do céu ainda estavam lá, mas a diferença era que agora o céu havia sido partido em dois. Isso mesmo. Havia uma rachadura no céu, uma fissura negra que se estendeu por entre as nuvens com um ruído tão alto como o choro dos anjos. A rachadura foi passando de nuvem por nuvem, criando uma linha reta cheia de rachaduras complementares que se bifurcavam como raízes de uma árvore.

‘Era como assistir a uma pintura sendo rachada ao meio por um pintor insatisfeito.’

A linha da raiz negra se espalhou perfeitamente de leste a oeste, separando o imenso céu em dois e deixando uma boa separação escura como o vácuo entre eles. – O céu está quebrando – Nicolle sorria ao meu lado, como se estivesse achando aquilo tudo muito interessante.

– Vamos – Eu disse, no momento em que a raiz se estendeu pelo céu por completo e a sirene parou de tocar.

Segui na frente do grupo tempo o bastante para chegar à clareira do penhasco primeiro do que eles e me deparei com uma cena muito intrigante:

A clareira era um espaço bem aberto e livre de árvores, onde a terra do bosque acabava e dava início a um solo rochoso. Era um lugar pedregoso e aberto, o penhasco em si ficava a menos de seis metros á minha frente e sua beirada era totalmente feita com pedras lascadas, eu não conseguia ver o fundo daquele penhasco, mas pelo que ouvi falar era o que marcava o limite da fase.

Havia algo jogado no chão em um amontoado de roupas. Havia sangue fresco em uma poça escarlate no chão. Demorei a perceber que era um corpo. Voraz? Minha mente gritava, desesperada conforme avancei em direção ao corpo com passos largos, mas os freei quando reparei na garota debruçada sobre o corpo do garoto.

Era uma garota magra, tinha seus braços entrelaçados com o que seria a blusa do garoto, prendendo o tecido ensanguentado contra seu rosto. Ela soluçava alto enquanto arfava de tempos em tempos atrás de ar, incapaz de se separar do corpo caído, em um abraço inseparável com o cadáver. Eu vi o rosto da garota por um vislumbre quando ela levantou a cabeça do peito do garoto para tomar ar: o rosto vermelho e inchado com lágrimas vivas escorrendo por sua face. Seus olhos se apertaram quando ela encontrou os meus. A garota suja de graxa que todos conheciam como Pan agora estava inconsolável – e naquele momento, mesmo sem ver o rosto do garoto eu sabia que não se tratava de Voraz, mas de Theo.

Eu deveria sentir alivio, mas não, tudo o que veio foi dor.

Então Pan caiu novamente contra o peito de Theo, dessa vez em soluços altos e misturados com palavras indecifráveis. Nicolle correu para ajudar Pan, tentando separar ela do corpo de Theo com puxões gentis em seus ombros, mas Pan era relutante e determinada a não soltar o corpo tão cedo.

Comecei a andar em direção a eles. Não percebi quando exatamente meus joelhos cederam, mas cai ajoelhada ao lado do corpo de Theo, com o machado agora jogado no chão ao meu lado. Theo, pensei segurando a mão ensanguentada – e fria - do garoto.

Havia uma faca jogada a centímetros da mão direita dele, e um único corte no pescoço, profundo o bastante para que ele tivesse uma morte rápida, talvez. Ele se matou, pensei com um terrível pânico.

– O que aconteceu aqui? – Alaric gritou atrás de mim, levantando o arpão para Pan – Traidora – Ele cuspiu.

– N-Não – Pan soluçava, de repente se pondo em pé com a ajuda de Nicolle – Theo... Theo tentou matar Voraz, eu... Eu....

– O que? – Nicolle e eu perguntamos ao mesmo tempo, agora eu também me levantei.

Uma lágrima escorreu pela bochecha de Pan – Ele... Ele empurrou Voraz no abismo... E... – Ela gesticulava com a mão do abismo para o corpo de Theo, tentando criar palavras para descrever o que havia presenciado – E depois ele se matou! Eu tentei, eu juro que tentei evitar, mas ele estava fora de si, os dois estavam fora de si! – Ela gritava á medida que sua mão tremia, até que sua voz falhou em uma saraivada de soluços.

Ele empurrou Voraz no abismo. Theo empurrou Voraz no abismo? Como... Como assim? Eu senti meu rosto e meu corpo ficando quentes, minha mão começou a tremer. Depois de algum tempo percebi que as lágrimas começavam a escorrer pelo meu rosto de forma quase incontrolável. Voraz havia caído... Havia caído no abismo. Não... Não era possível. Ele estava vivo, estava apenas fugindo para ganhar tempo. Estava apenas fugindo para pensar... E-Eu... Eu iria encontrá-lo, sim, e iríamos sair daqui juntos, como ele havia dito... Como, como...

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A realidade me atingiu como um soco no estomago. Não sei ao certo quando, ou como, mas quando percebi estava ao lado do penhasco, encarando sua magnitude de forma hipnotizante. Com o dia novamente escurecido, eu não conseguia ver o seu fundo. As pedras deixavam impossível a luminosidade chegar até lá. Lágrimas escorriam de meu rosto, de tristeza e de raiva. Eu não iria ver o garoto com o pulso de ‘v’ nunca mais. Nunca. Nem dar a ele o que ele deu a Maysa, um enterro digno. Não, não podia... Ele estava inatingível agora, tanto fisicamente quanto espiritualmente. Ele se foi. Ele se foi e não cumpriu com sua promessa... Nós não saímos daqui juntos como prometera... Ele não descobriu a verdade. Ele morreu como se nunca tivesse existido, exatamente como Nicolle temia.

Ele me abandonou.

E Theo era o traidor.

O garoto que ele quase havia morrido para proteger havia tentado matá-lo. O fraco garoto que ele chamava de amigo. E Pan... Ah, Pan. Imagino o que ele deve estar sentindo agora. Será que Theo mentiu para ela sobre ser o traidor?

Não sei quanto tempo fiquei ali, observando o abismo com total perda dos sentidos. Eu estava entorpecida demais para sair dali. E foi somente quando eu percebi que tudo estava terrivelmente quieto foi que olhei para trás. Nicolle puxou meu braço com força e me tirou de perto do abismo na hora em que o chão voltou a tremer.

Os ventos começaram. Um tempestade de ventos selvagens bagunçavam as folhas das árvores com violência. O som de algo pifando, como um curto circuito foi surgindo no ar junto com o cheiro de queimado. E então o incêndio começou.

As árvores do bosque entraram em chamas em um piscar de olhos. O céu começou a se apagar, de cinza para preto deixando a rachadura quase invisível.

– CORRAM! – Alaric gritou, e disparou entre as árvores em chamas na nossa frente, com Pan e o menino gordinho atrás. Nicolle e eu custamos a segui-los, o fogo lambendo nossa pele conforme atravessávamos o incêndio. Tínhamos que ser rápidos antes que o fogo começasse a se alastrar e a ficar mais selvagem e indomável.

Eu senti calor intenso no meu rosto e meu corpo suando, ao mesmo tempo que o fogo tocava minha pele eventualmente e eu estremecia. Por um instante, Voraz, Tommy, Theo e Maysa sumiram da minha mente e eu me importei apenas em sobreviver. Em sair dali e em ser forte o bastante para honrá-los.

O chão não parou de tremer conforme corríamos, saímos do bosque com sorte, todos muito queimados e com as roupas chamuscadas. O olhar de advertência de Alaric chegou a ser perigoso quando ele falou – Agora esse lugar vai ser destruído, e temos que sair daqui RÁPIDO!

Começamos a correr no instante em que uma luz vermelha se acendeu sobre nós. Não era uma lâmpada qualquer, nem um poste. Era o céu que havia mudado para a cor vermelho escarlate, a cor do sangue.

E aquele foi o momento em que o céu sangrou.