Destinados

17 - Para Casa


— Você precisa comer, Kira. — Mikhil falou suavemente, acariciando os cabelos da moça. — Coma pelo menos um pouco. Por favor.

Silêncio. Kira não esboçou qualquer reação ou emoção enquanto continuava encolhida sobre a cama, agarrada ao travesseiro com lágrimas nos olhos. Já era o quarto dia e nada de ela superar aquela depressão aparentemente sem sentido. Precisaram usar a magia de Rany para fugir do avanço da cúpula de energia e quanto mais longe iam, mais apática a princesa ficava.

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Quando a encontrou machucada no limite da cidade, teve que agarrá-la a força e leva-la rapidamente para longe, Kira só parou de lutar quando os dois chegaram ao alto da colina, onde seus companheiros aguardavam preocupados. A visão da cidade sendo tomada estarreceu a todos e fez com que a moça emudecesse quase imediatamente, entrando em colapso ali mesmo, sem nem esconder as lágrimas de seus primos. Mikhil tivera sorte por tê-la achado no último minuto, pois do modo em que estava, ela também seria pega.

— O que houve lá, Kira? Diga o que aconteceu para eu te ajudar!

— Eu a deixei sozinha… Quebrei minha promessa… — O pranto a pegou novamente, fazendo-a enterrar o rosto no travesseiro e abafar sua tristeza, apesar de já ter chorado muito nos braços do médico. — A deixei…

— Quem?

— Phay… — E ela voltou a chorar.

Mikhil suspirou penalizado e, depois de acariciar brevemente o cabelo prateado, levantou-se e rumou para a porta. Com um “venho te ver mais tarde”, ele saiu do quarto e se dirigiu à sala, deixando-a sozinha com sua tristeza. Infelizmente, por mais que quisesse tê-las nos braços, precisava trabalhar, como todo mundo.

— Tenho trabalho na cidade, então voltarei um pouco tarde. — anunciou para os companheiros. — Cuidem dela, ok?

— Não fazemos sempre? — Dgrov sorriu, acariciando os cabelos de Rany com tapinhas rápidos. — Ela vai ficar bem, cara. Pode ir.

Leo assistiu ao médico transpassar a porta e suspirou quando não mais sentiu a presença do amigo, vendo Lissa voltar ao seu lugar na poltrona e à sua leitura. A indiferença da garota o intrigava, nunca a tinha visto daquele jeito antes. Nem mesmo depois do ocorrido com Melissa. Ele sentia a escuridão penetrando no coração da irmã e sabia que não havia nada que pudesse fazer além de assistir impotente e rezar para que ela enxergasse a resposta sozinha.

— O que você odeia na Kira, Lys? — ele perguntou.

— A pergunta não deveria ser: por que você odeia a Kira?

— Você mão a odeia, você odeia o que ela representa. Você odeia a imagem dela, o caos que se forma ao redor dela, a comoção, a atenção, o modo como as coisas parecem tê-la como centro. Odeia que esteja presa a ela e que se sinta como a lua ao redor do planeta. É isso o que você odeia e ela não tem nada a ver com isso. Você sabe que ela não passa de uma vítima e isso te irrita também. Pois se fosse o contrário, odiá-la seria fácil.

— Se já sabe a resposta, Leo, por que a pergunta?

— Porque esses são os meus motivos. Quero saber os seus. — Ele revelou, esperando sua reação.

Lissa suspirou e colocou seu livro de lado, num gesto comum de sua pessoa quando tinha que explicar algo complicado para alguém que não entendia a simples mecânica de física-quântica. Ela colocou as costas eretas, levantou a cabeça, assumiu aquela pose superior que às vezes irritava quando não solicitada e olhou-o nos olhos. Naquele momento ele conseguiu relacionar a antiga Lissa com a nova, os trejeitos estavam todos ali, até mesmo as entonações da voz e os tiques nervosos. Mas a relação parava aí, infelizmente.

— O que eu odeio nela são as escolhas, principalmente as que não fez. Tem ideia do que pode ter acontecido se ela não seguisse o tal plano? Não estou dizendo para jogar tudo nas mãos do inimigo, mas… É a falta do livre arbítrio que me irrita. Até mesmo você está no mesmo barco que ela.

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— Todos estamos.

— Não eu. Anami me deu uma configuração diferente. Eu posso escolher, Leo. Eu sou o tipo de variável que, se colocada de fora, não interferiria em nada no resto, mas que se inserida, pode mudar o rumo do sistema. E vocês sabem disso. Por isso estão tão preocupados. Vocês acham que vou debandar para o lado negro da força.

— E não pode? Do jeito que te vejo agora, está parecendo uma forte candidata para se tornar a próxima Darth Vader. — Ele suspirou, levantando-se do sofá em que sentara. — Estou com medo por você, Lys. Espero que faça as escolhas certas.

Lissa suspirou e voltou à sua leitura. O grimório que segurava era antigo e fora lhe dado por Kira, pois pertencera à Ceci. Era grande, velho, suas folhas amareladas cheiravam a guardado, a capa era de couro escuro, já pedindo para ser aposentado. Aquelas páginas não ensinavam nada em especial, eram apenas anotações sobre energias e afins, seria apenas um conhecimento acadêmico se, porém, não falasse detalhadamente sobre espelhos.

–-**--

A cidade estava relativamente caótica para um lugar que acabara de ser invadido. Havia soldados aspirantes fazendo ronda pelas ruas de Al Siwey Khal, junto com milicianos e outros déspotas. Mikhil suspirou disfarçadamente e se dirigiu à grande construção perto do templo. Era um amontoado de pedras e barro num formato de quase trapézio, com vários andares e corredores externos, adornados por arcos e entalhes simples. O hospital era dirigido pelos sacerdotes da Ordem da Cura, que também cuidavam do orfanato da cidade. Ficavam todos no mesmo prédio, que já era gigante por si só, mas devidamente separados e controlados.

As lágrimas amargas de Kira não lhe saíam da cabeça. Seu coração se apertava quando o som de seu pranto lhe voltava à mente e a impotência o lembrava que não podia fazer tudo por ela sempre. Nem por ela nem por ninguém. Rany estava ali para provar isso. Não podia salvar quem não queria ser salvo, ou quem não deveria ser.

— Ah, doutor! Que bom que veio! — uma voz fina o tirou de seus pensamentos quando ecoou pelo corredor de entrada do lugar. — Os outros Curadores já chegaram. O senhor é o último.

— Se os conheço bem, devem estar se divertindo no momento. — comentou humorado, cumprimentando a freira com um aceno da cabeça. — Perdoe meu atraso, minha… companheira não estava muito bem. Onde precisam de mim?

— Na outra ala com as crianças. — ela revelou, mostrando o caminho a ele. — Cheque-as para confirmar que não têm ferimentos. Se possível, converse com algumas, soube que tens um toque especial como terapeuta.

—Tenho treinado muito ultimamente. — ele riu. — Mais alguma coisa?

— Bem, sim… — a mulher hesitou um momento e suspirou, retorcendo os dedos entre as mãos. — Queria que examinasse as crianças, mas tem uma em especial que me preocupa e gostaria que desse um pouco mais de atenção.

— Conte-me mais.

— Essa menina… não posso dizer que me agrada revelar isso, mas nunca conseguimos deixá-la confortável aqui. Antes de a mãe desaparecer ela era um doce, muito inteligente e aplicada, estava sempre correndo pelos cantos junto das outras crianças. Acho que toda animafaire tem essa energia contagiante que dá vontade de abraçá-la e dançar com ela o dia todo.

Animafaire, hein? Entendo um pouco sua preocupação. Mas antes da mãe desaparecer? Quanto tempo faz?

— Três anos. Nesse meio tempo ela passou por aqui muitas vezes. Apenas uma ou duas contra sua vontade. A garota é esperta, já a vi ludibriar a guarda várias vezes. Quando vinha, era para curar machucados ou trazer outras crianças. Aproveitávamos e a convencíamos a ficar, mas não durava dois dias e lá se via ela pulando os muros novamente.

— Imagina o motivo?

— Ela liderava um grupo na cidade. Eram outros órfãos que também não se ajustaram conosco. Faziam pequenos furtos para se sustentar. Imagino que não queria deixá-los sozinhos. Felizmente estão todos aqui e ao que parece, não irão embora.

— Conte o caso atual, por favor.

— Bem… A invasão não foi tão dura, mas ainda assim tivemos baixas. Alguns milicianos encontraram-na desfalecida no limite da cidade. Supomos que tentou escapar, mas a barreira do sangue a impediu. Como deve saber, doutor, crianças órfãs não podem sair de suas cidades antes da primeira troca de cores. E como a maioria delas é Mhortens, nunca trocarão as suas, fazendo-os aceitar a vida que têm até completar a idade adulta.

— Acha que ela se machucou tentando atravessar?

— Não o corpo, Doutor, seu coração. — Ela parou de fronte a uma porta grande. — Ela chora, doutor, chora e chama pela mãe. Os garotos disseram que ela respondia diretamente ao Cjal, o segundo no comando da milícia, e isso me dá arrepios. Aquele homem era cruel. Não quero imaginar as atrocidades que fazia com ela.

— Agora entendo. Farei os exames necessários e falarei com ela.

— Espero que possa ajudar a Phay, doutor. — Ela orou um momento antes de abrir a porta.

— Pode repetir o nome? — Mikhil pediu desconfiado.

— Phay. — ela falou novamente. — Phayan. Como em fé.

Enquanto seguia a freira pela sala de cura, a mente de Mikhil trabalhava acelerada. Phay? Esse era o nome que Kira repetira tão dolorosamente. Fora na saída da cidade que encontrara a moça, e por alguns segundos conseguiu vislumbrar a figura que a princesa tentava alcançar, antes da cúpula de Erischen se impor sobre ela. Seria possível que o universo pudesse lhe dar peças que se encaixavam tão perfeitamente? Analisando pelas coisas que aconteceram desde que conhecera Kira: sim.

— Phay? — A freira chamou a menina deitada sobre um leito, encolhida e deprimida. — Trouxe outro médico para te ajudar. Levante.

Outro?

— Não.

— Mas Phay, você precisa…

— Deixe comigo, irmã. Assumirei daqui. — Mikhil pediu gentilmente, pousando a mala no chão e sentando-se no leito ao lado da menina. — Por favor, quero cuidar disso a sós.

— Estarei com os outros. — E a mulher se retirou após uma pequena reverencia com a cabeça.

Mikhil não falou nada por algum tempo, estendeu a mão a ela e esperou pacientemente que ela a pegasse. Quando a menina, talvez cansada da intrigante presença daquele médico estranho, suspirou ruidosa e sentou-se, dando a ele as mãos que pedira, ele sorriu e depositou nas pequenas palmas um doce enrolado. Ele assistiu a surpresa dar lugar à desconfiança e viu-a analisar o agrado com o nariz crispado, e quando finalmente levou o doce à boca, viu sua aura mudar imediatamente.

— Posso te examinar agora? — pediu gentilmente.

— Vou ganhar outro? — ela pediu com olhos brilhantes.

— Depois. — ele riu da reação contrariada da menina e se colocou a trabalhar.

Phay era uma criança magra, quase a ponto de anemia, tendo seus pequenos ossos se apontando por sua pele. Não apresentara hematomas ou ossos quebrados, somente pequenas escoriações nos braços e cotovelos, provavelmente oriundos da tentativa de fuga. Física e externamente ela estava bem, sem mais preocupações. Entretanto, seria o momento de começar os exames principais.

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— Muito bem, Phay. Por fora está tudo bem. Agora quero que me responda algumas perguntas com muita, muita sinceridade, ok? — Ela assentiu séria e se recostou à parede no fim da cama. — Qual sua idade?

— Nove.

— Tem comido direito?

— Como qualquer criança de rua.

— Já quebrou algum osso? — Ela assentiu. — Tratou?

— A maioria.

— Os que se curaram sozinhos, algum ainda dói?

— Não.

— Ótimo. Você sente dores em outras partes? — Ele perguntou sério, tocando o próprio baixo ventre, para ilustrar o que perguntara. — Aqui, nessa parte da barriga, por exemplo?

— De vez em quando… Mas acho que não vou mais sentir. O Cjal está morto.

— Vou precisar te examinar nessa parte, Phay. Tudo bem?

— Agora? — ela se encolheu, afastando-se dele discretamente.

— Não, não tenho tanta intimidade assim com você. Deixarei para amanhã, ok? — Ele ofereceu-lhe outro doce, que foi aceito de bom grado. — Hoje, vamos falar só do que houve no dia da invasão. Vai me dizer a verdade?

— Você quer saber o que eu estava fazendo lá?

— Sim. Você estava com alguém na divisa, não é? Alguém que estava tentando te tirar daqui.

— Não sei se posso falar dela para você… Minha mãe não me deu permissão.

— Sua mãe? Ela está viva?

— Não mais. Mas acho que foi o melhor. Ela a poupou de mais dor. Devo muito a ela. Assim que receber minhas cores, vou procurá-la!

— A pessoa que te ajudou?

— Sim. Ela foi levada por uma sombra preta. Não sei quem era e não me interessa, só sei que vou sair dessa cidade e vou atrás dela. Perdi uma mãe, não vou perder a outra!

Mikhil não disse nada, apenas observou a forte resolução daquela criança. A freira tinha razão, aquela garota tinha uma energia contagiante, e não podia acreditar na força que ela demonstrava. Por tudo que ela passou, pensara que alguma sequela grave teria se instalado naquela menina. Mas não. Pelo que parecia, Phay passara por todos os traumas e agora era mais forte que qualquer pessoa que ele já conhecera. Incluindo ele mesmo.

— Você quer mesmo ver aquela pessoa novamente?

— Nada vai me impedir de vê-la de novo! Nem que eu precise morrer e renascer!

Antes que Mikki pudesse responder, as portas foram abertas e um grupo pequeno adentrou o salão com pose autoritária e armas à mostra. Não era nada mais que o próprio Erischen e seu comitê. O instinto de Mikhil se aflorou no mesmo momento. Levantou-se num átimo e se postou ao lado da menina, num ato de proteção e ameaça. Não achava que o próprio Tirano estaria atrás dele, mas não podia se descuidar. Não sabia até que ponto ele se envolvia com seus soldados.

— Pode nos dar um minuto, doutor? Quero falar com ela. — O elfo pediu educadamente, sem ao menos dar-lhe atenção. Que alívio.

— Não acho que seja uma boa ideia, senhor. Estou no meio da consulta e, pelo que vi, ela está abalada. Precisa de alguém que confie por perto. — Informou solícito e baixou o olhar rapidamente, ocultando a maior prova de sua identidade.

— Não o atrapalhe. — Um dos capangas ordenou quando o chefe apenas acenou com a mão.

Phay se retesou em seu lugar e, por instinto, se ateu à manga do médico, como uma garotinha que se esconde atrás do pai, num lugar cheio de estranhos. Erischen sorriu um momento e fez uma mensura com as mãos antes de se dirigir à menina. Seu tom de voz era calmo e cordial, mostrando alguém muito diferente do que realmente era. Nem parecia que comandava um império inteiro e que queria a cabeça dos “Destinados” numa bandeja.

— Olá garotinha. Sou Eris e esses são meus amigos. Queria te fazer algumas perguntas, se não se incomodar. — Quando Phay assentiu, depois de olhar longamente para o médico, Erischen sorriu. — Que bom. Soube que uma forasteira estava na cidade, antes de eu me instalar aqui, e soube que você e seus amigos a abordaram. O que pegaram?

— Sua bolsa de moedas. Havia bastante dinheiro lá.

— Ela foi atrás de vocês?

— Sim.

— Viu como ela era?

— Era minha mãe. — ela respondeu com convicção.

— Disseram-me que era órfã.

— Não. Ela tinha sumido, mas voltou para me buscar.

— E onde ela está agora?

— Morreu. — ela revelou séria e se calou, recusando-se a falar qualquer outra coisa sobre o assunto.

Erischen não falou mais nada, levantou-se devagar e pôs-se pensar. Mikhil se aproximou mais da menina e tocou-lhe o ombro, dando-lhe força. Podia prever o que ele estava pensando: ter uma animafaire em seu exército, mesmo que ainda criança, lhe daria uma imensa vantagem nas lutas e invasões, sem falar na que teria sobre Kira.

— Sabe, menina, seus dons seriam bem aproveitados no nosso grupo. Será bem treinada. Falarei com os sacerdotes logo mais…

— Com licença, mas não acredito que ela esteja pronta para ir ainda. Não vai querer perdê-la logo nos primeiros dias, vai? — Mikhil interviu, chamando atenção demais. — Ela está anêmica e não se recuperará em menos de uma semana.

— Uma semana então, Doutor. — Erischen decretou ao sair da sala, seguido por seu séquito.

Quando os minutos passaram silenciosos, a freira de antes entrou assustada, correndo o mais rápido que podia com seu passo calmo e a saia cobrindo seus pés. Mikhil ignorou a mulher por um momento e se concentrou na criança. Seus olhos estavam baixos, sua face séria e a desesperança a abatia. Aquela declaração de Erischen aniquilara toda e qualquer esperança de Phay de reencontrar Kira, além da certeza iminente de que morreria assim que iniciasse o treinamento.

— Vocês estão bem? — A freira perguntou aflita.

— Sim, só vieram conversar, felizmente. — Mikhil respondeu, pousando a mão sobre a cabeça da menina. — Querem levá-la.

— Oh, Phay… sinto muito…

— Vai deixar? — A menina perguntou aflita.

— Não há o que fazer, querida. Nem mesmo com o apoio da Ordem poderíamos contrariar o Tirano.

— Não haveria outro jeito? — O médico perguntou.

— Somente um guardião poderia impedir o alistamento dela, mas não há meios… Você nos deu algum tempo para pensar, doutor, mas não acho que consigamos…

— Eu não quero ir! Não quero!

Mikhil assistiu ao triste cair das amargas e desesperadas lágrimas da menina. Tão amargas quanto à da moça em sua casa, daquela que provavelmente ainda estaria sobre a cama, chorando a perda daquela menina. Se pudesse fazer alguma coisa pelas duas… Qualquer coisa…

— Phay… Se alguém te levasse para casa, você iria e ficaria com eles?

— Se forem pessoas boas e eu pudesse procurar minha mãe, sim iria… Mas sei que nunca seria escolhida. Ninguém quer uma mutante em formação…

— Não tenha tanta certeza, menina. — Mikhil sorriu travesso, assumindo sua pose determinada. — Decidido! Está decidido!

— Doutor? — A mulher chamou incomodada.

— Irmã, em quanto tempo ficaria pronto um pedido de adoção? — Perguntou de repente, surpreendendo as duas. — Não me olhem assim, eu gosto de crianças, mas ainda não fui agraciado com uma. Além do mais… Há outra pessoa que se salvaria com esse ato.

–-**--

Kira deu o último grito de ataque e deixou-se desmontar sobre a grama úmida, sendo açoitada pelo escaldante sol desértico. Zeela repousava ao seu lado, parecendo mais pesada e “imanejável” que o costume, com o espírito de sua lâmina sentado pacificamente sobre ela, com toda sua carapaça musculosa e pele quente. Os louros cabelos densos e volumosos do bárbaro se misturavam com a barba espessa e as grandes sobrancelhas. O homem coberto por cicatrizes parecia um verdadeiro urso com toda a ferocidade e amabilidade do animal de verdade. Seus olhos escuros estavam voltados para o céu, observando o límpido azul sem nuvens enquanto sua grande boca inexpressiva continuava na mesma posição.

Desde que o despertara, Zeela veio sendo seu mais confiável professor no quesito manuseio das armas escondidas naquela espada monstruosa e condicionamento físico, e por estar sempre com ela acabou ganhando a posição de Taiga temporariamente. Havia coisas que precisava conversar com alguém, mas nem tudo seria entendido por seus companheiros. Muito menos por Mikhil ou a própria tigresa.

— Zeela… — Kira chamou. — Me diga…

Ele baixou os olhos um momento, focando-se nela, e voltou a leva-los ao céu. Os pensamentos passavam rápidos por sua cabeçorra e ele ponderava muito tudo o que saia por sua boca. Tanto que ele quase não falava.

— Z?

Você não é fraca, menina. Nunca foi. Seu coração é que está fraquejando pelo peso que carrega. — ele falou sério ainda sem desviar o olhar do céu. — Você não deveria se deixar abater assim.

— Mas…

Fortaleça seu coração primeiro, menina. Não salvará ninguém do jeito que está agora. Nem mesmo a menina que agora lhe importa tanto.

— Poderia tê-la salvado.

Ainda pode, mas não agora. Tem que acabar com o que te ocupa hoje. Sua missão é chegar lá forte, continue fazendo isso.

— Como, se não consegui nem salvar a filha da minha Sombra?

Ache você a resposta. — E ele sumiu em seguida.

Kira bufou exasperada e voltou seu olhar ao céu, focando-se no azul-celeste para ter alguma chance de calmaria. Às vezes Zeela era um tremendo cretino, como no momento, quando mais precisava de um conselho. Mas de certa forma, ele tinha razão: a resposta estava nela mesma e para achá-la, precisava se levantar. Sentou-se pesadamente, pôs-se de pé, pegou e guardou a espada, e voltou para a casa a passos lentos, deixando sua consciência vagar pelo local. Chegou à casa com a cabeça longe e subiu vagamente a escada, rumando para seu quarto e indo para o banheiro.

Um bom banho… Precisava de um bom banho.

–-**--

— Ei, o que estão fazendo? — Mikhil perguntou ao entrar na cozinha, parando à porta e observando os irmãos que faziam a comida. — Pensei que ela quem iria cozinhar dessa vez.

— Quem é vivo sempre aparece! — Leo comentou jocoso, virando-se para encarar o amigo. — Por onde andou por esses dias, cara? Ficamos preocupados!

— Tive coisas para resolver. — ele sorriu, voltando o olhar para cima. — Como ela está?

— Até que melhorou, ela saiu para treinar algumas vezes na sua ausência. Voltou há pouco, deve estar no banho.

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— Que bom… Podem fazer um favor? — Leo concordou com um aceno e não pode deixar de sorrir ao virar-se para trás. — Entre, querida.

Mikhil assistiu as faces dos dois se contorcerem em surpresa quando a menina adentrou a cozinha, de cabeça baixa e expressão taciturna. Sorriu satisfeito e conduziu-a até à mesa, fazendo-a se sentar e virar-se para os jovens abobalhados.

— Amigos, esta é Phayan, ela é uma animafaire, uma espécie de fada que pode se transformar em animais. A partir de hoje, ela vai ficar comigo.

— Espera… Como assim ela vai ficar com você? — Lissa perguntou indignada. — Ela é sua parente?

— Não, até agora. Peguei a guarda dela. Pode-se dizer que sou seu pai. — O sorriso do médico era largo e impagável. — Papai Mikki, pode imaginar?

— Você está louco?

— Eu disse que ninguém ia me querer, Doutor… — A menina comentou triste, baixando mais ainda a cabeça coberta pelo lenço.

— Não ligue para isso, Phay. Não é com você. O problema deles é comigo. — ele sorriu, apertando o ombro da menina. — Além do mais, a casa é minha e te quero aqui.

— Mikhil! Pelo amor dos malditos deuses…

— Olha a blasfêmia, Lys.

— Isso não é brincadeira! — Lissa retrucou exasperada. — Estamos sendo caçados e ameaçados! Podemos morrer a qualquer momento e você trás uma criança para o olho do furacão? Enlouqueceu?

— Por que tomou uma decisão tão importante?

— A situação dela não estava melhor que a nossa. É sempre melhor morrer ao lado dos amigos que acuado sozinho. — Ele replicou sério. — Erischen a queria, não vi outro meio de salvá-la.

— Então você vai adotar cada criança que ver só para ele não a pegar?

— Se fossem casos extremamente especiais, sim, o faria. — Ele suspirou cansado. — Phay é especial, e eu a quero aqui, ok? Tudo vai dar certo.

— E se não der?

— Vai dar. — Ele encerrou o assunto e sorriu cansado. — Olhem-na um minuto para mim, vou ver nossa amiga. Phay, qualquer coisa que quiser comer ou beber pode pegar. A casa é sua agora, ok?

— Tá… — Ela concordou, disfarçando o olhar curioso que lançara aos outros dois.

Mikhil deixou a menina em companhia dos companheiros e seguiu para o andar superior. O quarto de Kira era o primeiro após as escadas, e era a primeira linha de defesa interna superior, caso alguém fizesse a proeza de passar pela proteção e pelas armadilhas espalhadas pelos cantos. Abriu a porta e entrou cauteloso, esperando vê-la encolhida na cama, ainda depressiva. O cômodo estava vazio, mas as roupas da moça faziam uma trilha até o banheiro. O barulho de água o atiçava a entrar, sua imaginação pregando-lhe peças sensuais enquanto comandava seu corpo a se comportar.

O problema era que não queria se comportar com ela.

— Kira? — chamou ao bater na porta. — Está viva?

— Estou… mais ou menos. — ela respondeu e a água cessou.

Mikhil fechou os olhos e se pôs a ouvi-la andar pelo banheiro úmido, farfalhando a toalha enquanto se enrolava. A porta foi aberta repentinamente e ela parou a milímetros do corpo dele, que bloqueava a passagem. Podia sentir os olhos dela sobre ele e seu cheiro molhado inebriava suas narinas, montando aquela bela imagem em sua mente. Precisava. Se. Controlar…

— Mikhil? — A voz dela o atingiu suavemente.

— Desculpe. — ele pediu ao sair da frente dela, dando-lhe passagem, mas sem ceder à tentação de olhar para ela. — sente-se melhor?

— Pelo menos saí da cama, se é o que perguntou… — Ela suspirou enquanto se vestia lentamente… Muito lentamente. — Mesmo com os conselhos de todo mundo… Ainda me sinto um pouco perdida…

— Por quê?

— Não consegui salvar nem uma garotinha! Estou sempre em perigo, sempre machucada, sempre dependendo de vocês… Como espero salvar todo o império? Que poder tenho eu de… Ah! Caramba… Estou ficando depressiva de novo.

— Por que você acha que não está à altura? Por causa da menina? Saiba que não podia fazer nada.

— Até você me diz isso? Então está tudo perdido mesmo…

— Não podia fazer nada, porque você não era a mãe dela. — A confusão dominou as faces da garota e ele não conseguiu reprimir um sorriso. — Crianças ficam presas à sua terra-natal até a maior idade, ou troca-de-cores, elas não podem sair sem um guardião responsável. Essa mágica serve para prevenir raptos e sequestros que resultam em situações realmente horrendas, não que não aconteçam dentro da cidade, mas… Não foi sua fraqueza e sim sua ignorância que a abalou.

— Ah… Oh droga… — Ela gemeu, enterrando o rosto nas mãos para esconder a vergonha. — Eu sou uma idiota.

— Se você soubesse o quão bonitinha está sua cara agora… Vem cá. — Ele riu, puxando-a para seus braços. — Não se culpe por isso. Agora sabe que ela estará te esperando quando for buscá-la. Sabe que ainda há chance. Agora é só correr atrás.

— Supondo que esteja viva e bem quando tudo acabar…

— Otimismo, Kira, otimismo. — Ele sorriu e beijou-lhe o alto da cabeça. — Se você não acreditar que tudo vai dar certo… Quem mais vai? Não esqueça que vocês estão ligados diretamente com esse mundo. Pense nela com você quando tudo acabar.

— Vou tentar… — ela suspirou, abraçando-o com força.

— Vamos descer? Aposto que não comeu nada. — ela concordou com um suspiro e se deixou conduzir pela casa, até ao andar debaixo. — Se prepare.

— Para…

— ‘To feliz por estar aqui, só que... — Aquela vozinha teve o poder de paralisar a moça, que sentiu-se como se aquele mísero corredor não tivesse mais que sete léguas de comprimento. — Não vou ficar por tanto tempo.

— Mas agora o Mikhil é, tecnicamente, seu pai, não? — A voz de Lys irrompeu o lugar. — Não tem que ficar com ele?

— Só até trocar minhas cores… Olha… Não estou sendo ingrata, agradeço a ele muito por ter me salvado, poderia estar morta agora com o Tirano… Mas minha mãe está por aí, em algum lugar e eu quero ela de volta. Não vou fugir do meu benfeitor, mas vou procurar minha segunda mãe em todo e qualquer lugar por onde passarmos. Não vou sossegar até achá-la!

— Você ama mesmo essa pessoa.

— Sim! Ela me ajudou muito! Ela deu todo o dinheiro dela pra gente, mesmo depois que tentei roubá-la! Ela se jogou de um prédio para me ajudar quando caí, cozinhou para a gente, contou histórias… Ela matou o homem que nos fazia mal… E tirou minha mãe de verdade do sofrimento… Ela é minha heroína e vou fazer de tudo para vê-la de novo!

— E se ela estiver morta ou foi capturada?

— Não está! — A menina gritou ao bater na mesa. — E mesmo que estivesse é impossível! Ela não pode morrer! Nunca! Eu vou encontrar ela e não vou mais sair do seu lado! Nunca mais!

Lágrimas rolavam pelo rosto de Kira quando finalmente reencontrou sua habilidade de locomoção. O silêncio tomou conta do cômodo quando adentrou a cozinha e se escorou na porta, trêmula e com a quase certeza de que seus joelhos virariam gelatina a qualquer momento.

Phay levantou-se lentamente da cadeira e ficou ali, parada, olhando para a moça com um misto de descrença e choque. Parecia que a menina tinha se petrificado pelo contato que tivera com os olhos amarelos da moça, como se algo ruim fosse acontecer caso se mexesse.

— Oi, Phay… — Kira sorriu chorosa, abrindo os braços para a menina. A emoção tomou conta do lugar quando as lágrimas da menina brotaram e ela se jogou nos braços da moça, abraçando-a tão forte que um ou outro osso estralou alto.

— Pensei que nunca mais ia te ver! — A menina chorou.

— Eu também!

— Como é que está aqui? Eu vi aquela sombra te levando!

— A sombra era o Mikhil me levando para longe da invasão. — Ela parou um momento, voltando seu olhar para o médico. — O que você aprontou?

— Isso é jeito de falar com o “pai” da sua filha? — Ele riu, acariciando os cabelos cobertos da menina.

— O que?

— Sou o pai dela agora. — ele sorriu, deliciando-se com a confusão da moça. — Fui fazer um serviço naquela cidade, coisas da Ordem, e acabei me deparando com ela… E Erischen. Foi o jeito de ajudar essa gatinha e tirá-la da mira do Tirano.

— Você a adotou para salvá-la de alguém que vamos encontrar na batalha final? — A confusão dela era impagável.

— Falando assim parece estranho.

— Foi o que dissemos. — Leo se pronunciou.

— Mas agora as coisas fazem sentido… — Lissa comentou entendida e um tanto amarga. — Mais outra coisa que ele fez por você, Kira…

— É… Mais essa. — Kira concordou, sem desviar dos olhos díspares do médico.

— E como se diz? — ele encorajou jocoso.

— Teremos guarda compartilhada, quando tudo terminar ela passará os finais de semana comigo, e eu vou escolher a escola. — Ela sorriu sacana, apontando para ele. — Não vou deixa-la sozinha com você.

— Mas o que? E eu esperando um agradecimento… — Ele riu.

— Quero detalhes, mas mais tarde. — Kira decretou, voltando-se para a menina. — Está com fome, Phay? Vamos comer e quero saber o que houve depois.

— Tá! — A menina concordou animada.

–-**--

Quando Phay adormeceu nos braços de Kira, enquanto Mikhil contava o ocorrido na cidade e as mirabolantes saídas que ele achara para tirar a menina do lugar debaixo do nariz do Tirano, perceberam que o dia já tinha ido há muito. Lissa já tinha se recolhido e Leo seguiu o exemplo pouco antes do casal decidir levar a menina para cima. Foi decidido que ela ficaria com Kira até ter seu próprio quarto (compras seriam a prioridade na próxima cidade).

Kira observou Mikhil pegar a fadinha de seu colo e aninhá-la nos braços, ainda estendendo a mão para ajudar a moça a levantar-se. Subiram as escadas em silêncio e entraram no quarto, o médico baixou a menina na cama e afastou-se para a moça embalar a menina na cama, que se embolou com o travesseiro e começou a ressonar baixinho com um sorriso no rosto.

Ficaram ali, observando a menina por alguns minutos antes dele se virar para sair. Kira o seguiu e parou à porta, fechando-a atrás de si com delicadeza.

— Não vai curtir a “filhota”? — ele perguntou com um sorriso.

— Você não vai? — ela retrucou ao cruzar os braços.

— A hora de dormir é o melhor momento para as mães. Não quero atrapalhar.

— Você não é tão sensível assim. — ela acusou desconfiada. — Por que a trouxe, Mikhil? Com tantos problemas que a faremos passar…

— Eu prometi cuidar de você, não? — Ele sorriu, levando a mão ao rosto dela. — Só estou cumprindo minha promessa. Vocês duas precisavam disso.

— Acho que… ainda não te agradeci. — ela falou após um tempo em silêncio.

— Não, não agradeceu. — Ele suspirou baixando a cabeça e pousando as mãos na cintura. — E eu que achava que o trabalhão que tive seria…

Ele não terminou de falar. Num rápido movimento, Kira o pegou pela camisa e o puxou em direção a ela, colando-se ao corpo dele e enterrando os lábios nos dele. O beijo foi lento, proveitoso, um ato que foi saboreado doce, física e calmamente. Estavam conscientes de suas mãos encaminhando-se para os lugares certos, deixando-os presos num abraço sensual. Estavam cientes de suas respirações entrecortadas, entoando um pouco alto demais para alguns “amassos” no corredor.

Mas quem disse que estavam ligando?

— Por mais agradecimentos assim. — ele sussurrou quando se separaram o suficiente para respirar o sabor da pele um do outro.

— Se continuar acertando desse jeito, “Papai”, não vai precisar fazer muito. — ela sussurrou corada, afastando-se um pouco mais para olhá-lo nos olhos. — Parece que estou sempre te agradecendo por algo… Obrigada, Mikhil…

— Shh, vem cá. — ele pediu puxando-a para seus braços e conduzindo-a para o andar debaixo. — Me agradeça mais desse jeito lá embaixo, no meu escritório de preferência.

— Você é um doente pervertido.

— Um doente médico pervertido, você quis dizer. — ele riu.

–-**--

O barulho no corredor finalmente havia acabado e agora Lissa podia se concentrar melhor no feitiço que estava tentando fazer. Mas isso se tornara uma tarefa difícil quando se estava enjoada com toda a doçura da relação daqueles dois. Vê-los brincar de casinha a estava irritando tão profundamente que às vezes pensava em jogar tudo para o alto e seguir para o tal lugar sozinha.

Sentou-se em frente ao espelho novamente, acendeu a vela, abriu o livro e se concentrou, entoando baixinho o feitiço escrito. Com sua mão de poder, desenhou os símbolos no ar e uniu-os por uma linha contínua, formando algo mais que um círculo, algo parecido com uma cabala. Viu em sua mente o desenho se iluminar e pairar sobre seus dedos, moveu-os um pouco e mandou-os para o espelho, entoando algumas palavras de comando. A superfície brilhou intensamente por um momento e se apagou, conservando ainda a energia que ela o impregnara.

Levantou-se e se colocou em frente ao grande objeto, observando-se de corpo inteiro. Seu reflexo não a agradava, não a aparência, mas por todos aqueles sentimentos ruins que afloraram nos últimos dias… Não, semanas. Realmente, sentia falta da antiga Lissa. Com um movimento da mão, a imagem ondulou e mudou, revelando um espaço rústico e pouco iluminado. Parecia uma tenda, já que as paredes tremulavam um pouco e a parca luz que vinha era do aquecedor do canto. Do ângulo que estava, dava para distinguir a ponta de uma mesa pesada e ao fundo a sombra de uma cama ocupada.

Aquele feitiço servia para espionar, levar sua mente até um ponto usando o reflexo mais próximo. Apesar de ser um feitiço comum, poucos sabiam executá-lo bem a ponto de “saírem” pelo lugar. Teve só uma semana para aprender e testar esse feitiço, mas pelo que tudo indicava, tinha sido um sucesso. Observou a cama por alguns momentos e constatou que não era seu ocupante que estava enterrado num sono pesado e sim o amontoado de cobertas que a enganaram. Afinal, ainda era cedo e Erischen deveria estar preso em algum conselho de guerra.

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Respirou fundo e levantou os braços, tocando a superfície do espelho e forçando-o até sentir a resistência sumir. Forçou mais um pouco e finalmente se viu do outro lado daquela superfície, ouvindo o pequeno craquelar de sua forma vítrea. Observou em volta e constatou suas impressões anteriores. Além da mesa, da cama e do aquecedor, havia uma banheira com água morna atrás do espelho, coisa que não podia ver estando limitada a um ponto de vista. O cheiro de banho e papel se misturava com o calor da lenha queimando e o da tenda. Era aconchegante para os aposentos de um maluco tirânico homicida.

— Olá Lysvrill. — a voz de Erischen soou sedutora do canto mais escuro, perto da cama, enquanto um tilintar de aço sendo guardado o acompanhou. — Estou honrado por sua visita.

O susto quase a fez perder o controle do feitiço, mas ficou razoavelmente feliz por saber que podia mantê-lo em condições difíceis, mesmo sabendo que não devia. Virou-se lentamente para ele e o encarou atentamente, desmistificando a imagem que seus olhos assustados gravaram na memória naquele dia de perda.

Ele era mesmo alto, com seus músculos discretos se pronunciando sob a camisa leve, que contrastava com a calça justa ao terminar abaixo de seu quadril. Parecia que tinha acabado de sair daquele banho. Seu rosto parecia menos malvado do que se lembrava, mas ele, com certeza, podia mascarar qualquer traço malévolo de sua personalidade. O cabelo louro-esverdeado estava úmido e um pouco maior que a última vez, mas ainda deixando as orelhas pontudas aparentes. E aqueles olhos gelados… Nunca pensara que podia sonhar tanto com olhos que a faziam ter arrepios à noite.

— Você está tão bonita… Não esperava que ganhasse suas cores logo.

— Como sabe que sou eu? Mudei demais para reconhecer. — ela respondeu séria e cautelosa.

— Eu sempre vou te reconhecer, Lysvrill. Sempre. Nunca esqueceria esses olhos de mar.

— Já viu esta forma antes? — Ele confirmou com a cabeça. — Onde?

— Num doce sonho que me foi arrancado. — Ele sorriu para a confusão dela. — Se me der uma oportunidade, querida, gostaria de lhe contar a história.

— Que garantia eu tenho de que o que sai de sua boca não seja nada além de mentira?

— Nenhuma, mas se está aqui é para ter alguma resposta, e eu posso dá-las. É só sentar ao meu lado e conversar. Só isso. Não tentarei nada.

— Jure.

Pelo ar em meus pulmões, o fogo que me aquece, pela terra sob meus pés e a água em minhas veias, juro pelo cosmos e o éter que toda e qualquer palavra que eu dirija a você, Lysvrill, seja unicamente verdadeira e minhas ações para contigo sejam puras e protetoras. — ele recitou em sua língua natal, cruzando o peito em seguida. — Eu juro, Lysvrill. Nada de mal vai acontecer a você.

— Tá, vamos conversar.