Descobrindo Sombras

Primeira Memória


1923 - Filadélfia

A garota devia ter seus dezenove anos, o cabelo ainda estava comprido e um pouco oleoso pela falta de higiene que havia naquele lugar, ela usava um vestido azul desbotado, típico de hospitais, com mangas até os cotovelos para que não pudesse esconder nada nelas. Ela estava sentada em uma cadeira de metal em uma sala cinza esperando ser atendida pelo doutor. Ela resolveu espiar pela grande janela com grades que se encontrava a sua direita e viu um carro preto chegando e de lá saindo um homem com um terno marrom escuro. Sabia pela agitação que sentia dos outros pacientes que aquele era o novo doutor.

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Era um dia atípico no Manicômio Principal da Filadélfia. Claro que eles não chamavam aquele local com esse nome, mas Mel com certeza havia dado esse apelido, já que era bem parecido com o nome original. Ela ficou em silêncio para tentar ouvir o que se passava ali do lado. Sabia que havia um guarda do lado de fora que não sentia mais medo de trabalhar ali, mas tinha medo que a histeria de sua mulher acabasse a colocando em um lugar como esse.

Mel ouviu passos e logo a porta de abriu. Dois homens vieram. O primeiro era o aspirante a enfermeiro, Karl. Esse ela já conhecia bem. Já havia sido segurada para as sessões de eletrochoque com aquele homem, assim como havia sido despida e jogada na água gelada. Ele dizia que era parte do tratamento, mas ela sabia que não era. Ela sabia que Karl sentia prazer fazendo isso com todos os pacientes enquanto os médicos não estavam presentes, principalmente com as mulheres. Adorava deixá-las sem comer e arrancar suas vestes só para que elas implorassem algo para eles. Ela olhou com raiva nos olhos de Karl, como se houvesse um tom de acusação, enquanto ele pensava que ela iria pagar por aquilo. Ela também já não sentia mais medo daquele lugar e muito menos dele, pois ela o assustava toda vez que dizia em voz alta o que ele estava pensando.

O outro homem se sentou na frente dela e ela parou de encarar o enfermeiro. Era um homem alto de pele bronzeada e cabelos escuros. Seus olhos eram castanhos, mas pareciam avermelhados. Ela tentou olhar para ele e tirar algum pensamento de sua cabeça, mas as tentativas foram em vão.

— Pode nos deixar sozinhos, por favor - Disse o homem.

— Isso, Karl - Disse Mel em um tom de desafio - E pode ir no banheiro se divertir com a sua imaginação perversa pensando em Meredith com a roupa rasgada.

Karl engoliu seco e saiu da sala. Mel olhou para a porta por um tempo, até que o homem lhe estendesse a mão sobre a mesa, tentando cumprimentá-la.

— Meu nome é John Ionahee e o seu? - Ele perguntou com um tom de voz amigável. Um tom de voz que ela não ouvia há anos, desde que fora jogada ali. Pensou que pudesse ser uma isca e não a mordeu.

— Você sabe meu nome - Ela disse e olhou para a maleta que o homem havia apoiado no chão - Sabe toda a minha história. Ela está bem ali, na sua maleta.

Seu olhar era sério e impenetrável. John sorriu e deixou escapar um pouco de ar que estava prendendo.

— Isso é verdade, Melanie - Disse ele - Mas pelo que eu li, acredito que a senhorita não deveria estar aqui.

A moça olhou pela janela de novo e viu as folhas das árvores caindo. Ela ficou triste por adorar tanto o inverno e ter que estar em um lugar onde passaria frio por conta da falta de humanidade das pessoas dali. Mas ela não disse isso e procurou não demonstrar nenhum tipo de reação sobre nada. Era assim que ela havia ficado fora de problemas por alguns meses. Então ela voltou a olhar para o rapaz que estava na sua frente e fez força para extrair algum tipo de pensamento, mas ele parecia um baú com sete cadeados. Ela precisava arranjar um jeito de abri-los. Já havia feito isso antes.

— E você vai fazer o que? Me tirar daqui?

— É isso o que você quer? - Ele perguntou.

— Essa é uma pergunta idiota para quem precisou estudar tantos anos de medicina - Ela respondeu de forma afiada. - Qual tratamento vai sugerir?

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Ele continuava olhando para ela e dava para ver que ele sentiu uma certa tristeza. Ela sentiu isso vindo dele. Menos um cadeado para abrir.

— Se quiser mesmo me tirar daqui, eu recomendo uma lobotomia - Disse ela. O homem se assustou um pouco, mas isso não a impediu de continuar - Foi o que o último médico indicou, mas acabou dando para trás.

John ficou pálido e Mel conseguiu sentir todos os cadeados de sua mente se destrancando um por um, até que a imagem de um homem loiro de olhos amarelos apareceu na mente do rapaz. Os dois estavam na mesma sala de alguma casa ali perto, mas antes que Mel pudesse codificar toda a memória, todos os cadeados foram fechados de novo.

— Você o conhecia - Ela disse, tentando assustá-lo - Você o conhece.

O rapaz tamborilou os dedos sobre a mesa.

— Lúcio Hank? - Ele disse sem estar surpreso, apesar de estar ansioso - Sem, eu o conheço, e é por isso que estou aqui. Para ter certeza de que não vão fazer isso com você.

Melanie bufou com um sorriso irônico no rosto.

— Mas, se você colaborar - Disse John - Eu vou fazer de tudo para te tirar daqui.

A garota olhou no fundo dos olhos dele. Sentiu um calafrio e não sabia se era por conta do frio ou pelo olhar intenso que o médico sustentava.

— Confie em mim - Disse ele.

E por que não? Ela não tinha mais nada a perder.

Voltei da memória num susto, como se eu houvesse ficado mergulhada embaixo da água por minutos. Sentia meu corpo frio, meus dedos estavam pálidos demais, como se eu tivesse enfiamo minhas mãos na neve por um bom tempo. Meu coração estava disparado e eu estava ofegante. E pela sensação que eu tinha no meu corpo, eu sabia que aquilo era real. Eu estava em um manicômio durante a década de 1920. Eu já conhecia John. E pior, eu já conhecia Lúcio.

— Você está bem? - John se sentou ao meu lado, preocupado.

— O que aconteceu comigo depois? - Indaguei.

— Eu não consegui te tirar de lá. - Ele respondeu instintivamente - Eu tentei, mas não tive tempo.

— Por que?

— Mey, acalme-se - Ele passou as mãos pelo meu braço para me aquecer - Por favor, uma coisa de cada vez.

Continuei deitada na cama e senti uma vontade incontrolável de chorar. Deixei meus soluços virem a tona. Mas não era por mim que eu estava chorando, era por Melanie. Era por uma existência minha que viveu em sofrimento e não podia chorar, gritar ou rir sem ser punida. Eu sentia a dor dela, sentia os sentimentos que ela havia sufocado em seu peito e eu pude, finalmente, colocar tudo para fora. John me abraçou e deixou que eu chorasse pela vida dela em seus braços. O pior de tudo era saber que ele havia escolhido aquela memória para me mostrar. Significava que era uma das mais fáceis de lidar.