Leningrado - 1948

O cair da tarde era sempre a parte favorita de Mailyn. Isso significava que era hora de ir para o restaurante de Tania comer sua sopa de beterraba e tomar chá batizado. Especialmente naquela tarde, depois de passar o dia inteiro na fábrica de sapatos costurando couro para militares. Era extremamente desgastante, ainda mais por lembrar que seu pai havia morrido em campo de batalha, seu irmão havia morrido de fome por culpa dos nazistas e sua mãe estava desaparecida desde então. Tudo o que lhe restava era trabalhar durante o dia e beber durante a noite. Sua sorte era que Tania era muito amiga de seu pai e não reclamava muito de como a garota estava vivendo a sua vida.

Mailyn entrou no restaurante, tirou seu casaco enorme - que a protegia da neve e do frio -, pendurou-o em um cabide próximo a porta e se sentou no bar.

—Dia duro, Mai? - Tania apareceu do outro lado do balcão.

Mailyn não se lembrava desde quando a conhecia, talvez porque Tania sempre estivera presente em sua vida, desde pequena. Só Deus saberia como aquela mulher aguentou tantas guerras e perdas e ainda conseguia se manter de pé. Sua postura era rígida, ela era durona, como uma típica mulher russa. Mas seus pensamentos a entregavam. Toda vez que um homem alto e moreno passava pela porta de seu restaurante ela tinha a impressão de ver seu falecido marido entrar por ali. Ela fantasiava que algum dia ele iria resgatá-la, iria dizer que era tudo um pesadelo e que eles finalmente poderiam ter a família que sempre quiseram ter.

—O que temos hoje no cardápio - A menina perguntou para a mulher.

—Hoje posso te dar pão - brincou Tania - Vou te servir um Borscht quente com uma porção de Draniki.

O estômago de Mailyn roncou só de imaginar a comida. A típica sopa de beterraba com bolinhos de panqueca pareciam perfeitos para aquela tarde fria. Mas antes de ir embora, tania deixou uma garrafa de vodka e um copo para a garota.

—Para distrair o estômago enquanto a comida não chega - Disse ela e saiu para a cozinha.

Mai se serviu uma grande dose de vodka e ficou encarando o copo em suas mãos, que vestiam luvas sem dedo. Ela estava pensativa, imaginando como as coisas seriam se os nazistas não houvessem invadido a cidade ou se o governo fosse diferente. Mas logo seus pensamentos se misturaram ao de outras pessoas.

Haviam poucas pessoas no restaurante, não chegavam a completar uma dúzia. Geralmente os trabalhadores iam para casa depois de um dia cansativo e frio, mas aqueles que estavam ali pareciam estar tristes, assim como ela. Todos estavam se recuperando dos tempos de guerra e rezavam que a paz fosse durar pelo menos um pouco.

Alguém se sentou no bar, estava há duas cadeiras de distância da garota. Ela não precisou olhar para ele para saber que era homem. Um moço que a achava atraente. Tolas eram as pessoas que acreditavam que estavam a salvo com seus pensamentos. Pelo menos esse não tinha pensamentos vulgares. Apenas gostava dos cabelos longos da moça.

Tania apareceu com o prato e o ajeitou na frente da amiga, então se virou para o homem.

—O que o senhor vai querer?

—O mesmo que ela - Ele respondeu - Junto com a vodka.

—Podemos dividir - Mai se pronunciou.

Tania voltou para a cozinha. Mai empurrou a garrafa para o moço e começou sua refeição.

—Nada como uma boa vodka para aquecer um dia frio - Disse o homem.

Mailyn apenas concordou com a cabeça. Ele estava tentando puxar papo, mas a garota não estava nada a fim. Queria aproveitar o silêncio do local.

—Esses são Draniki? - O rapaz perguntou - Puxa, eu não como um desses há tanto tempo.

Mailyn deixou a colher cair no prato ao sentir um nó na garganta. O rapaz não disse nada, mas os bolinhos de panqueca o lembravam de sua falecida noiva. Ela sempre os fazia para animá-lo.

—Tania tem uma ótima mão para a cozinha - A garota se virou para o rapaz - Sou Mailyn, amiga da cozinheira - E estendeu a mão para comprimentá-lo.

— Eu sou Lukyan - Ele a comprimentou de volta.

Lukyan. Ela teve a impressão de conhecê-lo de algum lugar, mas não saberia apontar de onde. Seu rosto era familiar, assim como seus olhos amarelados e seu cabelo loiro. Era um conjunto que ela jurava já ter visto antes, mesmo ele parecendo ser mais velho que ela.

—Você é daqui? - A garota tomou um longo gole de vodka antes de continuar sua sopa.

—Sou de Moscou, mas me mudei depois da guerra.

Tania apareceu com a refeição e um copo para o rapaz. Olhou bem para ele, mas logo foi para o salão conferir como estavam os outros clientes.

O rapaz encheu seu copo com vodca e completou o copo de Mai, que já estava ao fim de sua refeição. A garota agradeceu, pegou seu copo e se virou para ele.

—Engraçado - Ela tomou mais um gole, que começou a queimar sua garganta - Você tem um rosto tão familiar.

—Eu sou um homem russo e loiro - Ele riu e começou a comer - Com certeza já deve ter visto muitos de mim por aí.

A garota sorriu. Ele tinha um bom ponto, mas não bom o suficiente. Ela tinha uma sensação esquisita quando estava perto dele. Como se ele fosse amigável, mas ao mesmo tempo ela devesse tomar cuidado. Seus pensamentos eram neutros e cotidianos, ele não parecia estar tenso. Ele era um rapaz neutro, cansado do dia de trabalho, cansado do frio e com saudades do sol. Nada muito além disso, até onde ela poderia perceber.

—Eu sou daqui - Disse ela - Tudo o que eu mais queria era dar o fora - E virou seu copo.

—Deixe-me adivinhar - Ele a serviu mais uma grande dose - Memórias que não lhe agradam, certo?

A garota deu um sorriso irônico. Tomou ainda mais vodca. O álcool estava subindo e ela começava a se sentir tonta. Ele tinha razão. Eram muitas memórias que ela queria esquecer.

—Eu saí de Moscou pelo mesmo motivo - O rapaz havia terminado sua refeição e se virou para a moça - Mas parece que as memórias nos perseguem onde quer que vamos. Não adianta fugir.

A garota tomou uma dose grande de vodka de uma só vez, tentando desfazer o nó que sentia em sua garganta.

—Tania - Ela gritou - Quarenta rublos. Amanhã eu te pago.

A mulher acenou com a mão, afirmando que a garota não precisava se preocupar com aquilo.

—Muito bom de conhecer, Lukyan -Mailyn lutava contra o nó em sua garganta - Mas eu devo ir agora.

Mailyn saiu do balcão, desajeitada por conta do álcool, pegou seu casaco e foi andando pela cidade. A noite estava caindo, o álcool parecia subir à sua cabeça a cada passo que ela dava. Ela andou até chegar às margens do Rio Neva. Do outro lado do rui havia uma floresta coberta por neve. Era um pedaço da cidade que era bem isolado, poucas pessoas passavam por ali. Ela foi até a margem do rio, estando bem próxima da água que estava começando a congelar, com uns pedaços de gelo boiando e descendo o caminho do rio. Ela ficou ali, com as botas quase tocando a água. Estava com raiva da fala de Lukyan, dizendo que as memórias perseguiam as pessoas. Aquilo não poderia ser verdade, se não, aquilo queria dizer que as memórias de sua família a perseguiriam para sempre e ela nunca teria a chance de mudar nada. O nó na garganta não queria ir embora e a tontura em sua cabeça aumentava. Mailyn se ajoelhou no chão, enterrou seus dedos na neve e gritou com todo o ar que tinha em seus pulmões. Gritou até ficar sem fôlego. Gritou até sua raiva esvair-se de seu corpo por completo e uma lágrima - apenas uma - caiu de seu olho esquerdo. Ela limpou seu rosto e levantou.

Ao se levantar, percebeu que havia uma criatura do outro lado do rio encarando-a. Um lobo tão grande que mais parecia um urso. Mailyn se perguntou se o tanto de vodka que havia tomado fez com que ela começasse a ter alucinações. O lobo ainda a encarava, com as orelhas em pé, atento para cada movimento que ela fazia. Ela estava paralisada. O lobo se virou e correu para o meio da floresta. E nesse mesmo momento uma mão a puxou pelo braço e ela levou um susto.

—Meu Deus - Disse ela.

—Desculpe - Lukyan havia puxado-a para longe da margem do rio. - Parecia que você iria escorregar.

—Você viu aquilo? - A garota se virou para a floresta - Você viu o tamanho daquele bicho?

—Que bicho? - O rapaz a olhava confusa.

Ele não havia visto?

Mailyn se sentiu enjoada. Percebeu que seus dedos estavam roxos por conta do frio.

—Eu não estou me sentindo bem - Disse ela.

—Deixe-me te ajudar. Onde você mora?

— Me leve de volta para o bar - Foi tudo o que ela conseguiu dizer.

Então ela se virou de costas para ele e apoiou suas mãos nos joelhos. Ela estava tonta e enjoada demais para conseguir chegar ao restaurante antes de uma tragédia embaraçosa.