Desavenças Às Avessas

Essa garota me tira do sério!


Garota abusada! Ainda não consigo acreditar que ela ousou bater em mim. Em mim! Salvem-se quem puder, pois o apocalipse esta chegando.

Um carro buzina atrás de mim e é recompensado pelo meu dedo médio. Qual é o problema dessas pessoas? Elas não são capazes de compreender que não devem se meter no meu caminho?!

Acelero de tal forma que provavelmente os pneus deixaram uma marca no asfalto, e Davi aperta as laterais do banco até os nós de seus dedos ficarem brancos. Que a verdade seja dita, David ta mais branco que um palmito, e eu me nego a sentir culpa.

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Ok, talvez eu esteja um pouco irritado, mas e dai?! Será que ninguém sabe que são os hormônios agindo sobre mim? Eu sou inocente, a culpa é toda dos hormônios. Sou um adolescente preso em uma crise existencial, que acabou de levar seu primeiro tapa na cara. Além do mais, uma garota me recusou, por assim dizer. As garotas dariam uma perna por um sorriso meu. Esse planeta não faz sentido.

- Pronto, entrega a domicilio concluída.

David pega sua mochila e praticamente se joga para fora do carro. Quando fala, seus olhos estão arregalados.

- Cara, eu não sei que bicho te mordeu, mas até você dar um jeito nisso, eu não quero mais carona contigo.

Franzo o cenho para ele.

- Como assim não quer mais carona? Cara, você é meu melhor amigo, o que as pessoas vão dizer quando perceberem que não estamos mais chegando na escola juntos?

- Que se dane o que as pessoas vão dizer. Eu tenho amor pela vida, ao contrário de você.

Com isso ele se virou e andou em direção à sua casa. Quando o vejo sumir por detrás da porta, suspiro frustrado. Viu só, é tudo culpa da talzinha da Alice.

Esqueço das várias multas guardadas na minha cômoda, e acelero. Vou direto para casa, nem me dando o trabalho de cumprimentar o porteiro. Chego no meu andar, e entro no apartamento. Sou recebido por Bituca, que pula sobre mim. Enfio a cabeça entre seus pelos brancos e macios. Ela é com certeza a gatinha mais linda do mundo, com seu olho azul, e o outro dourado. Acho que ela é a garota da minha vida, já que a mulher que deveria ser minha mãe fugiu com o circo – uma bofetada no ego do meu pai, com certeza – e eu não sou do tipo de namorar, como vivo ressaltando.

- Mas com você eu sou fiel, não é mesmo minha Bituquinha? Minha garota de ouro.

Jogo a mochila em um canto, já sabendo que não iria fazer os temas. Aconchego Bituca em meus braços, enquanto a acaricio, e ela ronrona em gratidão.

Vou para meu quarto e a acomodo na minha cama magicamente arrumada. Que mágica nada, isso se chama empregada, que meu pai fez questão que fosse bem feia, pro meu “próprio bem”, como ele havia dito.

Troco de roupa, colocando um jeans desbotado e uma camisa da cor dos meus olhos. Dou uma mexida no meu cabelo, e quando me dou por satisfeito, pego Bituca da cama e me dirijo à cozinha. Antes mesmo de chegar lá, sinto o cheiro de lasanha, que provoca um ronco constrangedor.

- Oi Dolores.

- Buenos días hijo.

Dolores morou boa parte de sua vida na Argentina, e frequentemente fala espanhol, me fazendo boiar legal. Ela tinha esse hábito de me chamar de filho. E eu não reclamava. Ela era uma espécie de faz-tudo, governanta e mãe postiça. Tudo nela exalava lar e aconchego. Seus cabelos castanhos cacheados e um pouco grisalhos, seu sorriso com dentes grandes e um pouco tortos, sua estatura baixa, incoerente com sua fúria amedrontadora, o fato de estar sempre de avental, geralmente cores alegres. E o mais importante, ela fazia me sentir amado.

Ok, talvez eu deva parar de pensar essas coisas, ou vou acabar parecendo um gay.

Sento na banqueta, já que a sala de jantar só é usada em “ocasiões especiais”.

- O que tem de bom? – pergunto mesmo sabendo que deve ser lasanha, sua especialidade. Continuo acariciando Bituca até que Dolores faz cara feia para mim.

- O que eu falei sobre essa gata na mesa?

Ela podia soar como quem não gostava da Bituca, mas a verdade era que ela amava a gatinha, mas não tanto quanto eu, óbvio. Suspiro resignado enquanto faço um último carinho na manhosa e a solto no chão. Dolores suaviza sua expressão enquanto põe o almoço na mesa.

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- Você sabe que horas Paulo volta? – criei o hábito de chamar meu pai pelo nome, e agora não consigo me referir a ele como “papai” ou “pai” ou “papito”. Sou homem, oras. Tenho até barba.

- Ele não ligou, então não sei.

Tento não me sentir triste, e logo penso no que fazer à tarde. Dou uma espiada pela janela, beleza, o dia está quente. Ou seja, gatinhas de shorts ou saias, e blusas pequenas. Assim eu espero.

Termino rápido, e dou um beijo de despedida em Dolores, que acaba sendo no topo de sua cabeça.

Quando estou na sala, flagro uma Bituca espichada no sofá, na maior cara dee pau possível. Não consigo esconder o sorriso ao me abaixar e passar os dedos entre seu pelo macio.

- No fim da semana tem banho, não se esquece. Tchau minha linda.

- Miauu.

Quando chego no meu lindo conversível vermelho, paro por um instante, para organizar minhas ideias. Por fim, acabo engolindo meu orgulho e ligando para Davi.

- Alô? Oi, sou eu, o John.

- Meu celular tem identificador de chamadas. Eu sei quem me liga antes de atender.

Credo, o garoto parece estar de TPM.

- Sim, sim, eu sei. Escuta, foi mal por hoje mais cedo, é aquela garota, ela me tira do sério, só de pensar nela, tenho vontade de esmurrar a parede. Mas sério, quer dar uma volta comigo? Ir na praia um pouco? Ver umas gatinhas de biquíni...

Ouço silêncio, ou melhor, não ouço. Mas depois de um tempo, ele suspira.

- Ok, você vem me pegar ou a gente se encontra lá?

Acho me lembrado do meu pequeno show de hoje mais cedo.

- Acho melhor a gente se encontrar lá.

- Ok.

Dou partida, e enquanto dirijo, fico pensando. Mas o problema não é mim – mim, da onde tirei isso?! - estar pensando – pode parecer, mas eu penso tá, não sou tão burro assim - o problema, é em quem eu estou pensando. Naquela garota, que praticamente me humilhou na frente de uma boa parte da escola. Na garota cujos olhos não consigo esquecer. Na garota, que estou com vontade de estrangular. Mas não quero ir para a cadeia, sabe como é, uma beleza como a minha lá, não vai dar em coisa que preste, não mesmo.

Chego sem demora na praia, e logo de cara atraio alguns olhares femininos pra cima de mim. Avisto Davi escorado na sua moto, claramente me esperando.

- E aí Davi, tudo bem contigo?

Ele deu de ombros.

- To aqui, não to?

Nossa, que cortaço.

- Que tal a gente comer alguma coisa ali, naquela lanchonete?

- Eu recém almocei.

Ok, agora eu to começando a ficar irritado.

- Eu também. Agora finge que é uma pessoa legal e finge que ta com fome. Vamos.

Ele deu de ombros e me acompanhou.

Quando sentamos uma garçonete extremante gostosa e sem princípios veio nos atender.

- E ai docinhos, vão querer o que?

- Que tal um pouco de você?

Dou um meio sorriso para ela, que enrubesce.

- Ele vai querer um milk-shake de chocolate e eu um de baunilha. Obrigado.

David a dispensou, simples assim. Olho para ele fulo da vida, enquanto a garçonete se afasta.

- Qual é a tua?

Ele da de ombros.

Estava prestes a começar uma briga que acabaria com cabeças decepadas e rolando quando uma gritaria atrai minha atenção.

E adivinha só? Sim, caro telespectador, era ela.

Alice brigando com Anita.

Caramba, briga de garotas. Fui.

- Olha aqui sua desclassificada...

- Desclassificada?! Que merda de xingamento é esse?

- Pelo menos eu não tenho a boca suja.

Eu podia quase ver Alice rolando os olhos.

- Olha Barbie, dá o fora daqui, antes que eu quebre essa tua cara artificial.

Anita pareceu horrorizada.

- Você não faria isso...

Senti um tremor quando vi os olhos da Alice, que pareciam em chamas, aceitando o desafio.

- Quer apostar?

Nossa meu, nem preciso dizer que quase tive um ataque enquanto Alice batia na Anita. Bem que aquela mala tava merecendo, mas eu comecei a ficar com pena da coitada e me obriguei a interferir.

- Opa, opa, o que é isso? Parecem cadelas no cio.

Tudo bem, eu sei que devia ter mantido a boca bem fechada.

- Você. Me. Chamo. De. Cadela?

Porra, agora a coisa fico séria.

- Eu?! Mas é claro que não, aliás, já tava de saída. Beijos pra vocês.

Mas é claro que ela não iria deixa aquilo barato, claro que não.

Ela pulou em cima de mim, igual a um parasita, passando as pernas ao meu redor – sabe que não é tão ruim assim? – e começou a dar socos nas minhas costas. Tadinha, alguém devia contar pra ela que eu faço boxe, e isso não faz nem cosquinha em mim.

Habilmente eu a tirei de cima de mim, e ela parecia estar bufando de raiva, sentada no chão. Antes que eu pudesse assimilar alguma coisa, ela ficou de pé e meteu um chute bem lá.

Será que eu grito? Ou será que eu me encolho até a dor passar?

Contei até dez silenciosamente, com os olhos fechados. O mundo parecia ter pausado ao meu redor. Quando finalmente estava um pouco mais recuperado, abri os olhos, e vi que ela continuava lá, naquela postura diminutiva de desafio.

- Agora você vai vê.

Ela arregalou os olhos quando a joguei por cima dos ombros sem dificuldades. Nem dei bola para os socos nas minhas costas. Sou o Muralha, lembra?

Essa garota mexeu com o pequeno John, agora ela vai pagar.

- Ei! Me põe no chão! Agora! Onde você pensa que ta me levando?

Dou uma risada diabólica, que a faz ficar quieta. Não ligo quando a água do mar molha meus tênis, arruinando-os. Posso comprar outros. Continuo indo em direção ao mais fundo, enquanto ela fica esperneando com sua estatura incrível.

- Pronto, querida, chegamos. Diga oi para o mar. Espero que seu cabelo não fique tão ruim quanto eu imagino e quero que ele fique.

Com a mão livre finjo me dar um tapa na testa.

- Caramba, acho que te confundi. Eu quero que seu cabelo fique uma droga, igual a sua cara.

A última parte foi mentir, mas quem liga?

Jogo ela na água, e a garota afunda. Por um instante fico com medo de que ela não saiba nadar, mas então ela volta para a superfície. Ela joga água em mim, claramente irritada.

- Eu vo acaba com a tua raça!

Ela parece rugir enquanto fala, mas tudo que faço é dar meu típico sorriso cafajeste. Dou meia volta e ando em direção ao Davi, que me olha boquiaberto.

- O que foi? Quer uma foto?

Dou uma piscadinha para a garçonete e entro no carro. Enquanto dirijo, não sei para onde, sou incapaz de parar de pensar na próxima vez que for encontrar a Alice.

Acho que alguém arrumou uminimigo.