Depois que você partiu

Se você precisa ir


Mutação: é a chave para nossa evolução. Foi através dela que evoluímos de organismos simples para a espécie dominante do planeta Terra. Mas o que, além dos poderes, ela muda em nós? Será se nos tornamos mesmo tão mais evoluídos que o Homo sapiens?

A super-força, a resistência, os talentos quase mágicos que temos, as “melhorias” que “compensam” algumas deficiências humanas não nos livram de sua maior limitação, que o acompanha desde sempre: o medo e tudo o que ele causa.

A verdade é que tudo o que fazemos, ou pelo menos quase, é de certa maneira motivado por ele. Por ele nós saímos da água, aprendemos a andar eretos, criamos armas e armaduras, pontes e muros. Por ele evoluímos, avançamos e fugimos. Sempre, sempre fugimos, essa é a saída mais fácil para o medo. As fugas, muitas vezes podem parecer atos de nobreza, mas a verdade é que sempre existe um motivo covarde por trás delas, um medo egoísta.

Por exemplo, você não vai embora, deixando para trás tudo o que você ama, por que tem medo de machucar as pessoas ao seu redor, você tem medo de se machucar. Tem medo do que vai sentir quando vê-los machucados por você. Você tem medo da sua dor, não da deles, caso contrário, também não iria querer machucar desconhecidos ou pessoas que você não gosta, mas você não se importa, porque se você não tem qualquer vínculo emocional com eles, a dor deles não machuca você, então tudo bem. Acho que, se o que você realmente se importa é a dor do outro, o verdadeiro ato nobre seria perguntar a ele se ele quer que você fique – deixá-lo decidir o que é melhor pra ele – e, se sim, ficar, mesmo que isso te faça viver sob o constante medo de si mesmo. É muito mais nobre deixar que outro tenha escolha, mas você dificilmente vai, vai fugir, como sempre, porque, antes do outro, nós queremos cuidar de nós.

E isso não é proposital, muito menos pode ser apontado como errado. É necessário, na verdade. Só nós podemos curar nossas próprias feridas e entender as necessidades de nossa mente. Sentimos a necessidade de cuidar de nós, afinal, quem faria isso melhor?

Isso está impregnado na nossa essência, humanos e mutantes, nos une mais do que qualquer outra coisa e coloca um abismo entre nós.

Agora eu estava ali, diante da única pessoa que tinha estado ao meu lado nos últimos tempos, pronta pra não a deixar escolher se me queria ou não por perto e, bem provavelmente, machucar seu coração, mas eu precisava cuidar de mim e tudo bem.

Nathaly continuava parada, me encarando, seus olhos cor de mel não piscavam, sua boca estava levemente aberta. Ela usava uma calça moletom cinza bem soltinha e uma blusa caramelo de alças finas, seus cabelos negros e de um cacheado “meio aberto” estavam soltos, eles iam até a altura de seus seios.

— Ué, mas, mas... Como? Olha: o Gustavo não passa de um babaca, não liga pra o que ele diz.

— Não é só o Gustavo, Nathy. É todo mundo. Todos ao meu redor. Eu... Eu não sei controlar isso. Eu pensei que estava aprendendo, mas não estou. Agora nem preciso mais tocar pra causar estragos. Eu posso acabar machucando todos aqui, se perder o controle – tentei mostrar-lhe meu ponto de vista, minhas razões, eu sabia que estava certa.

— Todos nós podemos, Vampira. Poxa, somos mutantes. Se qualquer um aqui perder o controle pode acabar machucando todo mundo. É pra isso que estamos aqui: pra aprendermos a nos controlar e pra ter pessoas como nós, que nos amam, por perto, dispostos a nos ajudarem – a esperança em seu olhar me entristecia, ela parecia estar em uma utopia, acreditando que ia acabar me convencendo a ficar, mas não ia, eu não podia deixar.

É comum darmos ouvidos apenas a nós mesmos, é realmente difícil ver as coisas pela ótica das outras pessoas. Sempre sabemos estar com a razão, porque a nossa perspectiva faz todo sentido pra nós, nossos motivos, ações, decisões, tudo nos parece lógico. Aparentemente, quando defendemos um ponto, esquecemos que os outros são seres tão racionais e emocionais quanto nós o somos, que todos têm suas próprias razões. Eu sabia que Nathaly estava certa, eu não era a única mutante descontrolada ou com problemas naquela escola, mas eu tinha certeza da minha decisão, da minha particularidade.

— Eu não posso ficar – disse secamente.

— Não há nada pra você lá fora – ela falou de uma maneira quase agressiva, mas mudar a tática não me faria mudar de ideia.

— Tem razão. Não tem nada pra eu destruir – respondi, contradizendo a mim mesma ao mudar para a tática da indiferença para tentar fazê-la desistir.

— Você estava indo tão bem. Eu pensei que eu estava te ajudando. Pensei... – ela baixou um pouco a cabeça, estava desistindo, com muito pesar, mas desistindo. Era isso que eu queria, fazê-la desistir de tentar me fazer ficar, de acreditar que podia me convencer, porque então meu coração parecia estar sendo esmagado dentro do meu peito?

— Olha: eu preciso disso, preciso dar um tempo. eu preciso estar em um lugar em que eu não viva com medo. Eu... eu preciso ir.

Peguei a mochila e saí do quarto antes que ela começasse a chorar, minha pele começava a formigar de novo. Acho que agora eu entendia melhor o Wolverine. Olhei mais uma vez a hora: 23:01. Duvido muito que todos os pestinhas do Instituto estivessem dormindo, então segui torcendo pra não encontrar nenhum deles. Cheguei à escadaria de dois patamares e comecei a descer.

— Vampira – a voz atrás de mim me chamou sem fazer muito alarde, não era a voz da Nathy, mas eu já havia a ouvido em algum lugar.

Eu já estava no topo do primeiro patamar, um degrau mais largo, de onde a escada se dividia em duas: uma ia para a direita, lado dos dormitórios masculinos e a outra para a esquerda, onde as alunas dormiam.

Me virei vagarosamente, o formigamento na minha pele aumentara devido ao susto, como uma espécie de instinto de proteção. A garota estava, curiosamente, no topo da escada da direita, a reconheci imediatamente: era uma das meninas no grupinho do tal do Gustavo quando ele me provocou, ela havia dito repetidas vezes pra ele parar. Ela tinha a pele clara e os cabelos com cachos meio abertos que iam até seu ombro, de um loiro dourado, os olhos castanho-médio, era pouco mais baixa do que eu, usava um short solto de algodão de cor azul claro e uma camiseta regata preta, estava descalça, provavelmente para não fazer barulho pelos corredores.

— Não chega perto de mim – eu disse quando ela começou a descer em minha direção.

Eu ia começar a descer a escada, mas estava paralisada, olhei para ela, seus olhos, costumeiramente castanhos, estavam e um tom de azul turquesa quase florescente.

— Tá tudo bem, eu só quero conversar. O Gustavo foi um idiota.

Tentei me soltar de novo, mas não consegui. Minha pele estava claramente ativando um modo de autodefesa. Eu só conseguia pensar em sair dali.

— Me deixa em paz – senti uma onda entrar em meu corpo tão repentinamente quanto vi a garota de cabelos dourados cair na minha frente, aos meus pés.

Me afastei dela imediatamente. Cobri meu nariz e boca com minhas mãos instintivamente e comecei a chorar. Minha pele parara, tarde demais, de formigar. Puta merda, o que eu tinha feito?

— Vampira? – a voz de Nathaly ecoou em meus ouvidos, seus olhos arregalaram um pouco ao ver a garota caída no chão. Ela desceu imediatamente em minha direção.

— Eu não queria. Não queria machucar ela – disse entre lágrimas enquanto Nathaly examinava os batimentos, pulso e respiração da garota – Ela chegou perto de mim, me paralisou, eu disse pra ela se afastar eu... Eu não consegui controlar, ela não se afastou. Eu não queria machucar ela, não queria machucar ninguém.

Nathaly se levantou depois de ter examinado a garota. Se aproximou de mim e, pra minha surpresa, me abraçou. Comecei a soluçar em seu ombro enquanto repetia baixinho que “Eu não queria machucar ninguém”, naquele momento, aquele abraço era, definitivamente, o melhor e mais seguro lugar do mundo.

— Tudo bem, tá tudo bem – ela disse depois de um tempo e se desvencilhou de mim – Ela vai ficar bem. Eu só não sei como vou explicar pra Ororo mais uma pessoa desacordada na enfermaria em menos de 24 horas, mas vai ficar tudo bem, não se preocupe. Agora pegue isso e vá – ela disse me entregando uma chave de carro com um chaveiro de gatinho peludo rosa, olhei-a, confusa. Ela deu de ombros – Se você precisa mesmo ir.

— Mas, é o seu carro – Eu continuava perplexa.

— Presente dos meus pais – ela disse, dando de ombros mais uma vez – Dezoito anos. Tão clássico – revirou os olhos – Já faz algum tempo que estou tentando sair debaixo das asas deles. Ele não vai me fazer falta. Só tira o GPS dele, pra não te localizarem. Ah – ela tirou quatro frascos pequenos com um líquido transparente do bolso da frente de sua calça moletom e colocou na minha mão – leva isso, também – olhei-a, tentando entender – Cura. Eu sei que disse que não é a melhor opção, mas não é muito seguro você perambular por aí com poderes em descontrole sem algo pra te ajudar a se controlar. Ficamos com algumas amostras depois que tudo aconteceu, pra pesquisas. Não se preocupe, ainda tem um pouco no laboratório, mas não deu de trazer mais que isso. Só não exagere. Tome apenas quando sentir que as coisas vão sair de controle. Cada um é uma dose, mas acho que o efeito não vai durar por muito tempo agora que seu organismo aprendeu a combater. Mas, em geral, vai te dar um tempo.

— Por que está fazendo isso?

— Você disse que precisava ir – sua voz começou a embargar – Às vezes é preciso deixar as pessoas irem, não é?

— Obrigada – a abracei, meus olhos também começavam a se encher de lágrimas.

Virei as costas e saí em direção a garagem, sem coragem de olhar para trás.

— Vampira! – parei e me virei para a garota de olhos cor de mel – Eu vou estar aqui.

Esbocei um leve sorriso traindo a dor do meu peito e segui até a garagem, apertei o botão de destravar do chaveiro e consegui encontrar o carro pelo barulho e a luz que piscou em resposta. Para minha sorte era um carro preto e popular, não iria chamar atenção. Abri a porta e entrei, jogando minha mochila no banco do carona. Respirei fundo com as duas mãos no volante e finalmente o liguei e saí. Tiraria o GPS mais tarde, mas não muito longe. Era melhor que eles não em encontrassem. Eu não tinha certeza se ia voltar e, se fosse, não sabia quando. Estava pensando no agora e agora eu precisava de um tempo comigo mesma, precisava encontrar respostas que não encontraria ali. Precisava me encontrar de novo dentro de mim.