Deidade

Capítulo IV: Ainda sobre nós


Finalmente cheguei ao trem, que estava bem menos movimentado do que eu esperava. Achei que boa parte daquelas pessoas no prédio iriam pra algum lugar, mas aparentemente estavam ali só para curtir o ambiente. Não as culpei.

Me sentei próximo à porta pela qual entrei e esperei. Repentinamente, alguns segundos antes da porta fechar, uma garota entrou correndo. As veias saltadas e o suor em sua testa mostrava que ela viera correndo há bastante tempo ou ela era absurdamente sedentária e deu alguns passos rápidos apenas. Fosse o que fosse, ela estava cansada.

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Eu a vi me olhando na hora que entrou, com um sorriso pálido, talvez devido ao cansaço. Suas roupas eram casuais, mas bonitas. Usava uma jardineira jeans que ia até sua coxa e por baixo uma blusa regata cor de rosa. Tinha óculos de armação simples e transparente. Ela era bem legal e bonita.

Seus cabelos eram longos e castanhos, acompanhavam sua silhueta esbelta e curvilínea. Ela realmente era muito bonita, mas sentou distante, o que era o suficiente pra saber que ela não tinha o menor interesse em mim. Uma pena.

Cinco minutos de viagem e eu não conseguia tirar os olhos da garota. Eles refletiam claramente as luzes do trem e do Sol com seu verde acinzentado. Ela agora mexia no celular, sempre sorrindo. Às vezes ela franzia o cenho e se aproximava drasticamente do aparelho pra então recuar com uma cara de alívio. Só havia nós dois no vagão e provavelmente no trem todo, acho que isso a fez confortável em se expressar.

A garota era o completo oposto do garoto da recepção e que entregava comida. Ela possuía tantas expressões que era como se ela estivesse dizendo, com palavras, seus sentimentos.

Mesmo com tantas expressões, seu rosto não possuía linhas ou marcas, era simplesmente branco e liso.

Alguns suspiros aliviados depois, a garota tornou a olhar em minha direção. Dessa vez, no milésimo de segundo em que seu olhar se encontrou com o meu, sorri brevemente e confesso que por dentro estremeci.

Seu rosto já tinha voltado pra tela do telefone quando eu sorri, mas ela percebeu e, assustada, voltou a olhar pra minha cara – ainda sorridente. A garota sorriu de volta, com mais sinceridade do que o anterior. Esse sorriso era de alguém que queria sorrir pra mim e não apenas se livrar de um mico.

Decidi então que era hora de tomar uma decisão. Ventava muito no vagão devido às poucas janelas abertas. O Sol batia forte em meu rosto àquela hora. Minha respiração foi ficando pesada e lenta. Eu conseguia sentir o suor em minha testa escorrendo por cima da sobrancelha. E então uma das minhas manias estranhas surgiu: minhas orelhas começavam a balançar. Não como se fosse alçar voo, mas como se elas tentassem subir e descer. Era vergonhoso demais.

Quando eu tinha uns 15 anos eu fui me declarar pra um garoto da turma. Ele era muito, muito bonito. E eu gostava muito, muito dele. Mas foi um desastre. Quando cheguei para dizer meus jovens sentimentos, ele riu e disse que nunca faria isso porque minhas orelhas balançavam e espalhou pra escola inteira o que eu tinha falado. Essa foi a primeira vez que me dei conta disso e desde então, quando fico nervoso ou tenho vergonha de algo, esse é o único indício dos meus sentimentos pras pessoas.

Enfim decidi me levantar e ir falar com a garota. Enxuguei tanto quanto pude as mãos suadas nas calças e caminhei em direção a jovem. Sempre sorrindo. Na metade do caminho ela já tinha me notado e estava sorrindo de volta, nervosamente. Então notei que ela também enxugou as mãos na parte da frente da jardineira que usava pra então guardar o telefone num bolso da frente.

— E aí. — Cumprimentei, esticando a agora seca mão direita.

— Oi! Tudo bem? — Sua voz era doce e serena, o que eu viria a descobrir que fazia muito sentido.

— Comunicativa. — comentei — Tudo bem sim e contigo?

Ela sorriu, levando a mão desocupada à boca. De perto ela era ainda mais bonita. Deus!

— Estou bem sim, obrigada. E você também é comunicativo, né? Saiu do seu lugar só pra vir falar comigo.

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— Não pude deixar uma pessoa sozinha. Ainda mais uma tão bonita.

— Galanteador. — E novamente sorriu. Dessa vez sem a mão e que sorriso! Era um daqueles que acerta direto no coração e na alma fazendo um ser humano nunca esquecê-lo.

— Então estamos nos adjetivos, né? — Sorri de volta, sentando-me ao seu lado.

— Mas foi você que começou, tá? — Ela recostou a cabeça no banco e suspirou brevemente. Seu cabelo desceu um pouco do rosto, revelando ainda mais suas feições. Era tanta perfeição que por um instante fiquei sem ar e tive que me recobrar pensando em coisas terríveis e cruéis demais pra citar.

— Culpado.

— Mais um. Poderíamos passar de adjetivos para substantivos, não?

— Ian. Prazer.

— Rebecca. Igualmente. De onde vem e para onde vai, Ian?

— Venho de minha casa para algum outro lugar. — Gesticulei, digno de atuação shakespeariana. Esboçando apenas um começo de sorriso. — E a senhorita?

— Venho de algum outro lugar e vou para minha casa. — Ela retribuiu com gestos semelhantes.

Sorrimos juntos por alguns segundos.

A conversa fluiu naturalmente por alguns minutos. Quando me dei conta ela estava olhando pras minhas orelhas. Estava acontecendo.

Como de costume minhas orelhas balançaram levemente e eu enrubesci em resposta. Olhei pra ela, com cara de paisagem e ri de nossa conversa. Talvez ela não tivesse notado.

— Suas orelhas fazem uma coisinha engraçada. Você tá nervoso? — Então ela tinha notado. Fiquei ainda mais vermelho e abaixei a cabeça pra me esconder.

— É só uma reação pra quando vejo uma pessoa muito bonita e interessante. — Levantei com um sorriso sedutor e me forcei a ser o mais galanteador possível, escondendo meu nervosismo.

Ela sorriu, sinal de que estava tudo correndo bem. Notei que ela arrastou a mão direita mais pra frente na coxa. E entendi os sinais. Sempre fui bom neles. Coloquei minha mão sobre a dela e a encarei por alguns segundos.

Nossos rostos se aproximaram lentamente, e pude ver seus olhos se fechando, ainda mais lentamente. Eu me mantive de olhos abertos, esse era um momento que eu gostava de apreciar. A conquista do apreço de alguém a ponto de trocarmos saliva e provavelmente alguns germes! É sensacional.

A beijei lentamente, primeiro passando a mão livre pelos seus cabelos, que eram muito sedosos e cheirosos. Depois levando até a nuca e segurando firmemente. Já ela passava a mão em meu peito, descendo até a barriga, levantando minha camisa.

Aproximei ainda mais meu corpo do dela, queria que ela sentisse o meu calor e eu o dela. Quando me encostei senti seus seios no meu peito, suas mãos agora passavam por debaixo de minha camisa em minhas costas com firmeza. Ela cravou levemente suas unhas em mim e arfei em resposta.

A todo o momento eu estava com os olhos abertos, observando suas expressões atentamente, pra saber quando parar de fazer algo e pra quando continuar. Ela sempre sorria quando minha língua fazia um círculo ao redor da dela e quando eu dava uma leve sugada.

Entre arquejos e suspiros, eu a abracei, parando o beijo.

— O que houve? — Ela perguntou, ainda abrindo os olhos, em estase.

— Nada, só precisava respirar. — Sorri pra ela, que agora estava de olhos abertos. Ela retribuiu.

— Ah, desculpa. Às vezes fico meio empolgada com as coisas. Ainda mais porque seu beijo é muito bom. De verdade, me deixou bem animada.

A conversa estava tomando um rumo inesperado, mas prazeroso. Gosto de ter meu ego acariciado, entretanto não gosto que as pessoas saibam disso, então finjo.

— Ah, assim você me deixa sem graça. — continue, por favor, eu pensava.

— De verdade! Eu quero poder te ver mais vezes, de certeza! Me diga seu número e vamos poder terminar o que começamos aqui. Não quero ser pega fazendo sexo num trem que dá pra Central.

De alguma forma essa garota era fascinante, porém muito estranha. Fiquei intrigado e acabei passando meu número.

Continuamos no amasso tanto quanto foi possível. Com o barulho e as mãos bobas necessárias. Mas depois disso o trem não demorou a chegar à Central. A viagem não deve ter demorado mais que uma hora.

Uma voz grossa e calma anunciou nossa chegada. Me surpreendi (mas nem tanto) em saber que a estação do trem era também a própria Central. Quando passei pelas portas, agora sozinho porque Rebecca teve que sair às pressas, o lugar estava fervilhando de pessoas sorridentes e felizes, como num desses musicais. Esperei para que começassem a cantar sobre a grandiosidade da Central e de Boh. Não aconteceu.

Caminhei em direção à bancada de informações, onde notei um padrão. Para minha surpresa e desprazer o mesmo garoto da outra estação estava lá, mas com roupas diferentes. Mas como diabos na terra ele chegou tão rápido aqui?, pensei.

A Central era como um enorme saguão. Ou talvez como um shopping, cheia de escadas rolantes e dois andares além do térreo, com áreas de recreação e praças de alimentação no primeiro andar. No segundo haviam salas, mas estava muito alto pra eu poder ler o que estava escrito.

— Alguém, em algum lugar uma vez disse que uma vez é acaso, duas vezes é coincidência e três vezes um padrão. — Me encostei na bancada encarando o garoto bonito. — Acho que o destino está fazendo nós nos encontrarmos bastante, né?

Ele me olhou dos pés a cabeça, clinicamente, analisando cada ponto de meu ser. Senti de longe que ele estava desconcertado, mas não demonstrava. Talvez eu tenha pisado em uma ferida ou um gatilho emocional nele.

— Não tenho ideia do que você está falando, garoto. — Finalmente ele respondeu, apaticamente. Se virou para seus papéis, me ignorando e encerrando a conversa.

Soltei um grunhido leve de insatisfação e voltei a cabeça pra minha esquerda, em direção a saída. Vi que estava chovendo lá fora, mesmo que há alguns minutos o céu estivesse limpo.

— Ei, mano. Vou ser direto contigo. Eu queria saber se tem alguma chance do Todo-Poderoso salvador do planeta Terra e da raça humana, criador do Sol e da Lua, o raio que criou o fogo, Alfa e Ômega, Início e Fim, a corda que sustenta o firmamento me receber pra uma conversa e talvez um socão na boca. — Disse seriamente.

— Desculpa, como é que é? — Ele virou sua cabeça em minha direção, com um olhar direto e profundo.

— Você ouviu. Quero poder falar com Boh. Tem alguma maneira disso acontecer?

Ele demorou um pouco pra responder, ainda me encarando, acho que testando minha seriedade. Mas eu não titubeei nem por um instante e continuei sério, mesmo que por dentro estivesse rindo muito.

— João 7:37.

— Hein?

— “Se alguém tem sede, venha a mim, e beba”. Mesmo que não se trate diretamente de Boh, as bíblias e livros sagrados deste mundo são bem propícios para certas situações.

Por mais que a forma com que ele falasse fosse esquisita pra caramba, entendi a mensagem e, sinceramente, no fundo eu concordei. Mas não é como se eu pudesse admitir isso.

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— Basta pedir para falar com ele no quadragésimo andar deste prédio e ele vai te atender. — Continuou.

— Quadragésimo? Mas aqui só tem dois.

— Dois visíveis. Suba as escadas em direção ao segundo andar, procure o elevador e entre nele. Peça, educadamente, para ser levado ao quadragésimo andar e você vai chegar onde quer ir. — Ele terminou de falar e voltou novamente a atenção aos papéis.

— Obrigado, eu acho.

Então segui as direções que me foram dadas mais uma vez. Andei em direção ao segundo andar, que era mais parecido com um prédio de escritórios. Portas de vidro transparente para todos os lados, pessoas de terno entrando e saindo das salas a todo o momento. Comecei a sentir o efeito da bolha social ali. Pessoas completamente diferentes de mim, vivendo suas vidas, e eu, estranho àquele ambiente comecei a ficar desconcertado com toda a finesse do lugar.

Andei rápido em direção ao elevador, torcendo para ir sozinho. Um mero sonho. Assim que cheguei perto, um grupo de uns quatro homens fardados como policiais estava se aproximando. Não peguem o elevador, não peguem o elevador, não peguem o elevador, recitei como um cântico satânico em minha cabeça, na esperança de que eles não pegassem o bendito elevador.

Eles pegaram o elevador. Decidi esperar o próximo a me submeter entrar naquele cubículo com quatro policiais... Só depois notei que aquilo era um sonho que poderia ter se realizado e eu perdi a chance.

Quando o elevador seguinte chegou eu estava sozinho. Entrei, as portas se fecharam atrás de mim e uma vez falou comigo. Era a voz de sempre. Grossa e forte.

Por favor, diga para onde deseja ir.

— Quadragésimo andar.

Educadamente, por favor.

Grunhi mais uma vez e cruzei os braços.

— Se você quiser me levar para onde eu quero ir, você o fará de qualquer jeito. — Senti o elevador começar a se mover e a sensação de vitória queimando no meu peito. Deixei um sorriso maligno e travesso escapar.

Demorou uns três minutos até que o elevador parasse de novo.

Quadragésimo andar. Tenha um ótimo dia e reunião.

Como ele sabia que eu ia ter uma reunião? E por que eu estava me importando com o que um elevador tinha a dizer?

Quando as portas se abriram, havia um corredor enorme com tons de marrom e portas pretas, com várias salas. Parecia infinito e talvez fosse mesmo. Não havia curvas ou interseções, era reto e longo. Com um espaço para no máximo três pessoas passarem lado a lado. Caminhei nesse extenso corredor, sempre olhando se havia alguma indicação na porta. Nada. Apenas portas e mais portas. O corredor era tão longo que eu não podia ver seu fim e isso estava começando a me deixar meio tonto. O teto parecia estar ficando mais baixo e eu diminuindo junto com ele. Mal pude esperar para um gato sorridente aparecer e começar a falar comigo em enigmas e então sumir de novo.

Caminhei por alguns minutos, e já estava começando a ficar cansado, então olhei pra trás. O elevador tinha sumido. Provavelmente eu fui drogado em algum momento, sussurrei. Decidi então tomar coragem e entrar em uma das salas. Qualquer uma. Entrei na que estava à minha direita. Abri a porta cautelosamente, evitando fazer ruídos.