Darking Blue

Qual é o teu nome?


Desde os meus 12 anos, fora acatada por uma equipe de marinheiros para trabalhar no porto, perto da floresta. Era um trabalho esgotante, desumano e extremamente mal pago. Se conseguíssemos, ao fim da noite, algumas cascas de batata e côdea de pão podíamos dar-nos por satisfeitos.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Era a única rapariga no meio de homens musculados e mais velhos, muito mais velhos que eu, e era, de longe, também a mais fraca e depressa aprendi que a maneira mais fácil de sobreviver naquela pocilga era manter-me na minha, quieta e despercebida, apanhando os bocados de comida que caíam no chão, passando entre emaranhados de pernas enquanto que, insensíveis e brutos, os marujos lutavam entre si pelos bocados de frango. O mais difícil nessas horas era escapar aos pés enormes, calejados e descalços que passavam por cima de tudo sem qualquer piedade, fossem plantas, pedras ou mesmo pessoas desmaiadas.

Depois, havia ainda o supervisor. Detestado por todos, era ele quem fazia acordar os que desmaiavam de exaustão, que castigava os preguiçosos, que preenchia a cota de baús e caixotes que cada um tinha que transportar por noite, não tolerando qualquer atraso, e era também responsável por «tratar» dos traidores que tentavam avisar a polícia dos maus tratos que recebiam.

No entanto, a vida de ladra não era para mim, muito menos a vida de prostituta e o que mais podia fazer a não ser aceitar a exploração infantil e sujeitar-me às suas duras condições?

Completamente exausta, e vendo que o supervisor estava do lado oposto do porto, deixei de empurrar o caixote com duas vezes o meu tamanho e deixei-me estar encostada a este, limpando o suor da testa com as mãos enlameadas.

A sineta tocou, era hora da refeição! Um dos marinheiros, propriamente ditos, chegou à borda do barco atracado com um barril de despejou-o, como quem se livra dos restos de um banquete.

Surpresa minha, quando, estando tão afastada como sempre, me vi cair nas mãos um pedaço enorme de pão como aquele que eu não via há meses, quase sem bolor algum.

Ia eu abocanhá-lo de uma vez só, quando um dos meus companheiros me deu um forte empurrão e me tirou bruscamente o pão das mãos. Ao cair no chão, senti uma raiva que me colocou novamente de pé, ou melhor, agachada como uma leoa, e, sem refletir nas consequências dos meus atos, saltei para cima dele e mordi-lhe o braço peludo com que segurava o pedaço de pão. O homem urrou de dor e o pão era mais uma vez meu!

Quando pensava que finalmente iria comer alguma coisa, os outros rodearam-me e desataram todos a dar-me pontapés e socos, castigando-me pelo meu atrevimento e insensatez. Provavelmente morreria ali mesmo, com tanta pancada, se uma voz não interviesse:

– O que estão a fazer com a rapariga?

Era uma voz suave e aveludada que eu nunca tinha ouvido antes.

Todos pararam imediatamente de me bater e eu perguntei-me o que os teria levado a ficar tão surpreendidos ou amedrontados a ponto de se manterem imóveis e calados.

Ao erguer a cabeça do chão, vi que à minha frente estava o tal jovem de cabelo prateado e olhos dourados que me olhava com curiosidade e … qualquer outro sentimento que eu não conseguia de todo identificar.

– Levanta-te e vem comigo! – Ordenou.

Eu nem pensei em desobedecer-lhe e ficar ali acompanhada por aqueles parvos. Segui atrás dele, olhando de relance para a cara furibunda dos meus antigos colegas. Não voltaria a vê-los! Depois dessa, não era mais seguro voltar àquele lugar. Pensariam eles que o jovem era seu superior? Era uma hipótese! Decerto tinham-no entendido como alguém importante. Se ele se apresentasse como eu, simples e pobre, eles o teriam espancado igualmente.

Caminhava, a olhar fixamente o chão, mas, de vez em quando, não resistia a olhar de relance o estranho rapaz que me salvara a vida.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Quando já estávamos bastante afastados do porto, ele virou-se para mim e disse:

– Agora compreendo! Trabalhas ali todas as noites?

Eu acenei, sentindo-me uma completa anormal por não encontrar a voz para lhe responder. Além de que não fazia ideia do que ele queria dizer com o «agora compreendo». Talvez ele tivesse apenas refletido parte dos pensamentos em voz alta e não fosse sua intenção que eu lhe respondesse ou percebesse sequer do que ele falava.

– Porque te sacrificas dessa maneira? Onde estão os teus pais? Porque vives por aqui sozinha?

Parecia que ele queria saber o máximo sobre mim no menor tempo possível. Como se qualquer momento um de nós fosse desaparecer.

Isto era no mínimo estranho!

No entanto, se era respostas que ele queria, eu devia fornecê-las como estava em dívida para com ele. Se realmente ele pertencesse ao grupo de perseguidores dos meus pais ou tivesse más intenções, porque me teria salvo? Só se fosse para me fazer sofrer uma morte muito mais dolorosa.

Tentei contudo não me deter muito sobre aquele assunto.

– Eu tenho que arranjar condições para viver e não quero ser ladra ou pior. Por isso tenho que me sujeitar ao que me oferecem de vagas de trabalho infantil e os meus pais morreram há muitos anos. Eu ainda moro na nossa antiga cabana lá para o meio da floresta.

Enquanto falava, aproveitei para observá-lo melhor. Reparei que era bastante pálido e as orelhas eram invulgarmente bicudas. Era, no entanto, realmente bem-parecido.

– Porquê que simplesmente não te entregas para os guardas? Eles levavam-te para adoção. Não é uma vida perfeita mas é melhor do que… isto!

Eu hesitei. Nunca contara a minha história a ninguém e duvidava que qualquer um acreditasse. Na verdade, eu própria quase não acreditava se não tivesse visto com os meus próprios olhos. Custava relembrar tudo aquilo! Como tentar ver um sonho do qual mal nos lembramos.

Enfim, não gosto de mentir mas, pela confiança na minha sanidade mental, precisava de fazê-lo, porque de contrário, o jovem julgar-me-ia louca.

– O meu nome é Satsuki e o meu pai era um perigoso assassino. Decerto ninguém quereria adotar a filha de um assassino.

– Mas não será responsabilidade a mais para uma menina de 12 anos tomar conta da própria vida, completamente sozinha?

Um laivo de desagrado deve ter cruzado os meus olhos.

– Tenho 15!

Sinceramente, a minha altura iria sempre condenar-me.

– E para quem conseguiu sobreviver sete anos com esta vida, até atingir a maioridade não vai ser nada.

O jovem observou-me cautelosamente.

– Mas não te sentes sozinha, Satsuki? Sem família, sem amigos?

– Eu tenho um gato que é meu amigo! Chama-se Kito e é um companheiro inigualável.

– Satsuki, gostava de ver a tua casa!

Eu empalideci ainda mais. Estava desconfiada e desconfiada ao extremo! Mas, se ele queria ver a minha casa, um monte de tábuas empilhadas, tudo bem!

Enquanto caminhávamos ele voltou a falar comigo.

– Porque és tão pálida?

Eu fiquei espantada com a pergunta, afinal ele era ainda mais pálido do que eu.

– Eu durmo de dia e trabalho à noite, por isso não apanho muita luz solar. – Expliquei. No entanto, a resposta era tão óbvia que eu interroguei-me se ele tentava manter um diálogo forçado comigo. Parecia, por vezes, que ele me observava com um estranho brilho nos olhos, aquele mesmo sentimento que eu não conseguia identificar.

No silêncio total, ouviam-se as folhas das árvores que se remexiam com o vento.

– Bem, mas já que eu te contei a minha história, podias falar-me um pouco de ti! – Disse numa tentativa de quebrar o silêncio constrangedor.

– O que queres saber? – Perguntou, muito cauteloso.

– Qual é o teu nome?

– Ren!

– Tens família?

– Tenho os meus pais e duas irmãs mais novas. Uma tem mais ou menos a tua idade e a outra é ainda mais nova.

Aquela conversa sobre família e irmãos mais novos estava a deprimir-me, a fazer-me vir à memória recordações pouco felizes. Pensei que mais valia não ter puxado conversa, porque o silêncio, apesar de constrangedor, não fazia doer tanto.

Ao chegarmos à minha casa veio cumprimentar-me Kito, o meu lindo gatinho preto. Fiz-lhe uma carícia e segui em frente. Kito, no entanto, seguiu-me a mim e a Ren, observando-o com curiosidade e desconfiança. Kito sempre fora um gato muito independente e nada amistoso com gente desconhecida. Ao lembrar-me de tudo o que fiz para ganhar a confiança dele, do imenso tempo que gastei… mas valeu a pena todo o sacrifício, agora ele é o meu amigo mais fiel.

Mostrei a cozinha improvisada e o meu quarto a Ren num minuto. Era um espaço tão pequeno que mal cabíamos os dois lá dentro.

– Bem, não há mesmo muito que ver, não é verdade? A minha casa sempre foi esta, mesmo no tempo em que vivia com os meus pais.

– E esta porta aqui? – Perguntou entreabrindo a porta que estava a um canto da cozinha. Antes que eu pudesse impedi-lo entrou.