Dark as night.

Sobreviventes.


De repente tudo o que eu sentia era o frio repentino com o vento forte. Eu estava surda? Tudo o que ouvia era um som agudo invadindo meus ouvidos, como um apito, ou um grito.

Abri os olhos, estava suando frio. À minha volta todos corriam e gritavam: Gors e Berenes acharam nossa caravana e pegavam as mulheres e crianças. Senti-me perdida por um tempo, como se não entendesse o que estava acontecendo, o ruído ainda prejudicava minha audição. Era irritante.

Fui jogada para o lado quando me sentei e algo se jogou em mim, fazendo-me rolar. Era um homem; o Gor o apanhou em meu lugar, entrei em pânico. Minhas pernas tremiam até que eu tivesse me firmado em pé. Alguém segurou meu braço.

Era meu pai.

— Thena, o que está fazendo aqui parada? Temos que fugir, rápido. – Ele me puxou; não sabia se me desesperava ou me sentia aliviada por ter meu pai ali.

Olhei em volta.

— Onde está Serna e as crianças? – Questionei tomada novamente pelo pânico.

— Beryo a levou na frente com as crianças. Vamos logo.

— Eles conseguiram fugir? – Eu ainda estava empacada, sem conseguir mover os pés.

— Eles já foram, Thena. Nós também temos que ir ou morreremos.

Um braço passou voando entre nós, engoli em seco. Ao virar o rosto observei um Berene devorar um de nossos homens.

Berenes são piores que Gors. Pele negra e dura como o casco de uma tartaruga, dois metros é o mínimo de altura que alcançam, possuem uma boca no lugar do rosto e o que se sabe é que não enxergam, mas sentem o cheiro de qualquer criatura viva que estiver próxima. Quatro braços no tronco, dois deles sendo semelhantes a pinças que injetam o veneno paralisante, os outros dois com mãos humanas maiores do que deveriam ser. Suas pernas tinham pelos grossos que mais pareciam espinhos.

Seus gritos fazem parte dos pesadelos não só de crianças, mas também de adultos.

Eu não reconheci o homem, mas quis chorar assim mesmo quando seu último pedaço foi mastigado.

Meu pai me deu um tapa no rosto, fazendo-me despertar.

— Thena, me ouça e vamos embora daqui agora.

Nada falei. Minhas pernas se moveram no mesmo segundo que o Berene virou em nossa direção.

Durante toda minha vida corri, mas sabia que teria que correr mais que nunca se quisesse realmente escapar daquele monstro.

Uma rocha foi lançada em nós por um Gor, saltei para um lado e meu pai para outro. Rolei sobre a terra e me levantei abruptamente para retomar a corrida, meu pai havia feito o mesmo. Conforme corria, as cenas de horror não passavam despercebidas por meus olhos: homens, mulheres e crianças sendo destroçados e devorados, seus gritos me invadiam os ouvidos e o sangue espirrava em todas as direções.

— Papai, cuidado! – Gritei ao notar um Berene correr até ele.

Girando o corpo e jogando-se num punhado de feno, papai desviou e pegou impulso para continuar a correr. Tentei me focar em minha própria sobrevivência. Continuei correndo, focada, até ouvir o berro desesperado de uma mulher sendo devorada exatamente ao meu lado.

Não havia muito a ser feito e eu continuaria correndo se não fosse a pequena garota que notei encolhida, chorando a ponto de soluçar, assistindo a própria mãe ser reduzida a nada por um monstro. Meu pai notou minha distração. Parei de correr.

— Thena, não! Pare! Deixe-a!

— Se eu puder salvar uma vida, já vai ser muito. – Gritei, ignorando-o e indo até a menina.

Os cabelos loiros estavam colados em seu rosto, ela não devia ter mais que quatro anos.

— Mamãe! – Chamou a menina assim que a peguei no colo, ela mantinha os olhos fixos na criatura que devorava sua mãe.

Eu não poderia, jamais, imaginar a dor de perder a mãe, mas não deixaria a garota ter o mesmo fim tão precocemente.

— Thena! – Meu pai me chamou.

Agarrei a menina e segurei-a como o caçador segurou o ovo de dragão na história que meu pai sempre me contava. Pus-me a correr novamente, ela era leve, mas ainda dificultava minhas passadas.

Senti calor. Uma flecha passou ao lado de meu rosto: meu pai disparara contra um dos olhos do Gor que estava em meu encalço e eu sequer notara, não o havia matado, mas foi o suficiente para atrasá-lo. Notei que o calor há pouco sentido era graças às chamas que tomavam os restos de nossas casas, de nossa família.

Alcançamos a floresta, meu pai me puxou repentinamente para dentro de uma caverna e cobriu-nos com uma gosma esverdeada. Acredito que meu rosto denunciou minha dúvida, pois ele disse:

— Ervas e folhas batidas e misturadas com um pouco de água. Gors e Berenes não são vegetarianos, são? Não vão nos notar tão facilmente com isso.

Não disse nada, apenas segurei a menina com um só braço e espalhei eu mesma aquela mistura em nós duas.

— Teremos que ficar aqui até amanhã. Alertou-me meu pai.

— Tudo bem.. – A menina apertou os braços em volta do meu pescoço repentinamente.

— Mamãe.. – Choramingou entre soluços.

— Shhh.. Fique calma, vai ficar tudo bem. – Não era algo que eu poderia garantir, mas era o mínimo que podia fazer naquele momento.

— Ela vai nos entregar. – Papai resmungou.

— Não vai. Eu cuido dela. Não é, pequena? – Grandes olhos verdes assustados me encararam. — Venha, vamos descansar um pouco. – Eu não havia notado, mas ainda ofegava.

Com um olhar de reprovação, meu pai arrastou algumas pedras até a entrada da caverna e a fechou enquanto eu me deitava em um canto qualquer e aninhava a menina em meus braços. Ela não parava de soluçar, mas aos poucos cedeu ao sono e cansaço e, enfim, relaxou.

Meu pai sentou ao meu lado.

— Ela está bem?

— Vai ficar, pai. Deixemos que durma um pouco.

— Deve ter mais cuidado, Thena.

— Estou enferrujada, o senhor não me deixa mais acompanhá-lo nas caçadas. Me treinou tanto quando mais nova para que eu fique sentada contando histórias para crianças?

— É perigoso, Thena.

— Pai, todo lugar é perigoso. Você viu o que aconteceu. Você viu! — Eu queria chorar, minha voz ficou embargada, mas me recuperei em alguns poucos segundos.

— Dessa vez foi pior. Eu e os outros homens chegamos muito depois do início do ataque, ainda estou me perguntando como não te pegaram.

— Pai..

— Perdemos mais pessoas dessa vez que no outro ataque, e eles estavam em maior número..

— Vamos atrás de Serna e dos outros, vamos conseguir refazer a caravana, talvez encontremos uma nova.. Não podemos desistir, pai.

Ele me afagou o rosto e sorriu calmo.

— Você é tão otimista e confiante, tal como sua mãe.

Engoli em seco, sem palavras. Não conheci minha mãe.

— Vá dormir, aposto que essa menina te deu trabalho até aqui. Descanse.

— Tudo bem. – Murmurei, virando-me cuidadosamente com a menina no colo até ficar numa posição que me fosse agradável.

Tentei dormir, mas dessa vez não consegui.

Passei o resto da noite e parte do amanhecer inquieta, até que a pequena em meus braços acordou.

Quando ela me olhou e começou a chorar, fiquei sem saber o que fazer por um momento.

— Ei, ei, calma! Não precisa chorar, estou aqui, eu vou cuidar de você. – Limpei suas lágrimas e comecei a tirar a crosta esverdeada que lhe cobria a pele.

— Mamãe.. – Murmurou ela.

— Não. Tia Thena. – Forcei um sorriso. — Repita comigo, vamos: Tia Thena.

— Ena. – Tentou ela.

— Tia Thena. – Falei novamente.

— Thena. – Disse a menina.

— Ótimo! Isso. Tia Thena. – Sorri, festejando. A menina riu.

— O que está fazendo? – Meu pai surgiu ao meu lado, sequer havia notado sua ausência.

— Ensinando a ela meu nome.

— Thena. – Demonstrou ela, sorrindo orgulhosa de si mesma.

— E o seu nome, qual é?— Meu pai perguntou a ela.

A expressão no rosto da menina deixou claro que ela não havia entendido.

— Thena..— Meu pai apontou para mim. – Callec..— Então para si. – E...— Deixou um ar de pergunta ao apontar para ela.

— Neah! – Ela levantou os braços, exibindo os pequenos dentes em um sorriso.

— Neah. Ela é filha do Belen, lembro-me dele. – Comentou meu pai.

— Ele está vivo? – Murmurei.

Meu pai me respondeu com um aceno negativo. Suspirei.

— Bom, Neah. Tia Thena vai cuidar de você, tudo bem?

— Precisamos partir, Thena.

— Certo.. Venha, Neah.

Meu pai retirou as pedras uma a uma, ajudei-o com algumas e logo depois apanhei Neah no colo, ela se agarrou ao meu pescoço e saímos da caverna. Ao longe podíamos ver as cinzas e ainda a fumaça de todo o fogaréu que devastou a caravana. Neah esticou a mão e eu a segurei, ela me encarou e eu vi que queria chorar. Sorri, encorajando-a.

— Tia Thena..— Sussurrei para ela.

— Tia Thena.. – Repetiu ela.

— Vamos procurar comida e água primeiro, vocês precisam de um banho, depois andaremos até conseguir um lugar para passar a noite, mas sempre evitando rastros de quaisquer criaturas. Você conhece os rastros, Thena.

— Perfeitamente, pai.

— Vamos.

Recomeçamos a caminhada, tínhamos que ser fortes.